Maria Zélia Carneiro Dazzi (entrevista)
Material de pesquisa do Projeto do Campus Fiocruz da Mata Atlântica em parceria com a Cooperação Social, gentilmente cedido ao Dicionário de Favelas Marielle Franco.
A entrevista faz parte do projeto "Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Neste episódio, a conversa é com Maria Zélia Carneiro Dasy, Presidente da Associação de Moradores e Pescadores do Arroio Pavuna.
Entrevista
Transcrição da entrevista
Maria Zélia Carneiro Dazzi, 71 anos, Presidente Associação de Moradores e Pescadores do Arroio Pavuna.
A chegada em Arroio Pavuna
Cheguei aqui em 1966, com meu namorado José Carlos. Ele era marítimo. Aqui as pessoas gostavam muito dele, por causa das histórias. Ele era muito querido por todos. E quando nós começamos a namorar, a primeira coisa que ele falou foi do Arroio Pavuna. Quando vim aqui me apaixonei. Me casei e passei a lua de mel aqui. Uma lagoa maravilhosa, água limpa, pássaros, peixes, jacarés, capivaras e tatus. Isto era uma floresta, não tinha estradas, cortada de riachos e córregos. Pra chegar lá na Estrada dos Bandeirantes, a gente tinha que ir pelo mato, e ficar lá. Se chegassem à noite não dava para retornar.
Em 1966 eu decidi morar aqui, e gostei cada vez mais. Fui morar num barraco, que tive que sair, porque precisavam trazer a água de Curicica porque quando chovia alagava tudo. Eram manilhas enormes. Iam passar no meio da casa. Eles queriam levar a gente pra longe. Esta é uma pratica de muitos anos. Meu marido não aceitou e eles construíram do outro lado.
Antes a comunidade já existia, era na Praia das Pedrinhas. Na foz do Rio Pavuna tinham pescadores. Na época, Getúlio ia ceder a terra para construir um hangar, mas em 1988 nós fomos trazidos para aqui, bem na foz do Arroio Pavuna. Como não foi concretizado o trato com os alemães, em 1945 a aeronáutica tomou posse da terra. Tinham criações de aves e porcos e ficaram por muitos anos, como fazenda. Terminaram a fazenda, a aeronáutica continuou tendo o domínio desta área até o aeroporto: são 90 mil m².
O nosso território aqui, da nossa comunidade, só tem 5 mil metros. A aeronáutica é que fiscalizava, e não podia construir alvenaria, era só madeira.
Mas num deles nós enfrentamos esta questão porque teríamos que viver em barraco o resto da vida. Nós e dona Maria construímos casas de tijolos. Nós ficamos sabendo que eles mesmos nos denunciaram para a Capitania dos Portos, mas o tiro saiu pela culatra porque a Capitanias dos Portos nos incentivou a regularizar nossa situação. Pagamos a taxa de ocupação, tiramos o documento de ocupação e aí todo mundo criou coragem de fazer suas casas.
Aqui tinha um sargento que morava na beira do rio e sempre implicava. E assim mesmo, sabendo que morando nas terras da União. E aí a gente passou a ser reconhecido.
As lutas
O primeiro embate foi com o DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem). Depois veio em 1982, quando surgiu a primeira empreiteira que construiu o (Condomínio) Rio 2, demonstrando que nós incomodávamos. Como na época, ainda tinham muitos barracos, e muitos pescadores velhinhos, começaram os conflitos. Naquela época a gente não tinha conhecimento de que havia Defensoria Pública ou Ministério Público, a gente recorria aos políticos. Eles vinham, faziam reuniões, aí depois eles sumiam. A gente se acalmava.
Em 92, um pouco antes da ECO, outro embate com as empreiteiras - ainda não era a prefeitura. Nós recorremos ao Saturnino Braga. E depois se acalma e a gente segue a vida.
Quando foi em 2006, o embate foi mais forte. Retiraram parte da comunidade. Embora as pessoas falassem que foi por causa do PAN (Jogos Panamericanos), não teve nada a ver com o PAN: retiraram parte da comunidade, para fazer o acesso para o condomínio Rio 2 e para o que estão construindo agora, o Cidade Jardim.
A comunidade, embora não fosse mais barracos e com casas até com piscinas, eles tiraram. As terras - antes eram da aeronáutica - nesta época já existia o ITERJ, mas a prefeitura veio derrubar e o ITERJ não fez nada. Saíram 68 casas. A comunidade foi sendo dividida aos poucos, com o ponto de madeira, concreto, depois outra. Em 2006, lá então foi demolido.
Meu marido era um homem politizado desde a ditadura. Eu participava das lutas com ele. Em 2007, quando a prefeitura veio fazer o mesmo que fez do outro lado - porque sempre foi o desejo lá do outro lado que a gente saísse - eu já estava prevenida. Primeiro passo, depois que vieram fotografar, foi tirar medidas das casas, e a assistente social fazendo cadastro. Eu perguntei pra quê, ela não respondeu. Enquanto isto um funcionário da prefeitura entrou na casa, fotografando tudo. Eram 8 horas da manhã, meu marido ainda estava na cama. Entrou sem falar nada. Aquilo me deu uma revolta tão grande! E do meu lado, enquanto eu respondia as perguntas, estava um guarda municipal, com os braços cruzados pra traz, me olhava o tempo todo, como se eu fora uma criminosa.
Choro até hoje, isto me marca profundamente.
Depois, troquei de roupa, e fui pra SPU (Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União), porque se nós pagávamos uma taxa de ocupação há mais de 30 anos, eles é que tinham que dizer para nós sairmos, e não a Prefeitura. Ela tinha que dizer se estava dando, vendendo, alugando as terras, não adiantava discutir com a Prefeitura. Eles vêm com um contingente enorme de guardas, policiais, porque guarda municipal é policia, e uma velha ignorante na frente. Eu senti que não dava para impedir, eu tinha que me municiar de outra maneira.
Eles ainda estavam na comunidade quando eu fui para SPU. Cheguei lá, relatei o que estava acontecendo. Quem me orientou falou para eu ir para policia fazer uma queixa. Como não tinha Associação, era preciso fazer uma carta, documento, "dê entrada e solicite resposta". Fiquei o dia todo. O delegado chegou 5 horas, e foi pesquisar na lei como fazer o documento. Achou “Assecuratório de Direitos Futuros”. Depois fiz a carta.
Quando veio a resposta, a SPU afirmou que pagávamos a taxa e que não tinha conhecimento de nenhuma ação, que não tinha cedido a terra, e que nós éramos registrados com certidão de ocupação. E me encaminharam para Defensoria. A partir daí, quando eles vinham na porta eu não deixava, e começamos uma verdadeira guerra. E assim, 5 anos, 6 meses, 3 dias de guerra.
Em 1988, nós tínhamos a Associação de Pescadores, que era no Riocentro. Como não tinha caminho, estrada ou picada, a gente ia de barco pagar a mensalidade. Para construir o Riocentro eles destruíram com tudo. A comunidade onde morava a Maraci, a Associação, tudo foi demolido. Nós éramos ligados à Z10. Hoje está na Ilha do Governador. Todas as capacitações que meu marido fez, era carimbado e certificado pela Z10.
Linha do Tempo
1910 - Era colônia de pesca.
1938 - Houve o distanciamento da Associação porque também já não eram todos pescadores.
1980 e 1990 – Quem nos ameaçava eram as empreiteiras.
1990/1996 - Retirada da Via Parque, retirada do Marapendi e Canal do Cortado.
2006 – A Prefeitura chegou com toda força, mas ela está com a Construtora Carvalho Hosken. Onde eles tiraram as pessoas, tem grana. É limpeza social: tirar mesmo para embelezar o espaço deles.
Depois entra Eduardo Paes, com o apelo dos Mega Eventos, e construíram a ponte. Mas ficamos.
2007 – Quando fui para Defensoria, elaborei o estatuto para criar a Associação, e registrei como Pessoa Jurídica. Todo ano fazemos a declaração de imposto de renda.
2013/2016 - Eduardo Paes, megaeventos e as empresas.
A associação de moradores
Fiz uma reunião com os moradores e todos aprovaram. Já faz 4 anos, e fizemos eleição nova. E como nós ganhamos – porque a Prefeitura queria nos tirar - ficamos. No tempo de Cesar Maia, também queriam a "revitalização", mas a Defensoria foi muito caprichosa e o Juiz nos deu ganho de causa.
Agora, com Eduardo Paes, aí veio muito mais forte. Os três Governos juntos: estamos aí e este é o resultado.
Morar com saúde é ter água potável, esgotamento sanitário. Aqui não temos. Temos fossa. O solo aqui não permite a construção de poço. Tem o problema da água, porque não somos regularizados. E as casas, com espaço e quintais grandes – ar que corre, as crianças têm liberdade de brincar. Esse ar! Mas agora teremos poluição por causa da Trans(olímpica). Temos a Lagoa para trazer a brisa, mas não vamos poder evitar a poeira do asfalto. E as casas ficaram fechadas.
Aqui temos uma vida saudável. O que me move - o respeito pelo local, pelo que já foi um dia: um pequeno paraíso – por tudo que nos dava. Eu tive aqui um pequeno bar, usava o quintal para as mesas – via os peixes chegando fresquinhos, sentados na mesa vendo os guaiamuns vindos do mangue, ver uma galinha d’água com doze pintinhos, olhar a lagoa e ver as garças. Porque eu vim pra cá, minha lua de mel vivi aqui. Eu tenho um amor, uma paixão. Eu me emociono, porque até 1988 eu tomava banho no rio, branquinho, com o fundo de areia, e hoje está poluído.
Eu sou muito amarrada no que foi, e não vejo como eu transformar. Eu não sei se vou estar viva para ver o Arroio Pavuna como eu conheci. Dizem que vão dragar a lagoa, mas é uma utopia. Minha relação é afetiva e emocional, de respeito pelo espaço. Tive um pequeno comércio, tirando da lagoa meu sustento, ajudando meu marido, e criando minhas filhas, dando uma boa educação. Hoje estão bem estruturadas. E veio tudo daqui.
Quando viemos pra cá, tinha uma grande preocupação com educação. A maioria dos pescadores eram analfabetos. A escola mais próxima era a Leila de Brito na Estrada dos Bandeirantes. Quem tinha barco levava os filhos até próximo a escola. E foram melhorando e foram indo embora. Não queriam mais permanecer. Não tinha luz, estrada, a gente andava pelo mato. E foi chegando pessoas que não tinham vinculo. Mas eu tenho esperança de ver isto mudar. A gente tinha uma relação muito boa com as animais, jacarés, guaiamuns, borboletas – os bichos desapareceram. Por causa das mudanças, um transtorno.
Botei eles na justiça. Me pediram provas, eu mandei as fotos do aterro no mangue – eu tirei fotos como era e como ficou – semana passada, liguei para saber o que a Andrade Gutierrez vai fazer a compensação ambiental. Aí trouxeram o Moscatele, mas eu quero saber da Gutierrez. Estão deixando um capim invasor que é uma praga.
Nunca me senti ameaçada. A de retirar era constante à minha pessoa. Não, porque todos sabem que eu falo: não me intimidam. Eu olho no olho. Do outro lado, eles fazem os prédios e constroem áreas de lazer até a margem, e os bichos ficam sem espaço.
Em 1980, cometeram um crime ambiental, porque retiraram o fundo da Lagoa, para aterrar o Rio 2. Os engenheiros comentavam, tiravam o fundo da Lagoa para aterrar. Retiraram e as consequências vieram. Sumiu o biguá, a garça cor de rosa sumiu porque não tem comida. Eles comiam a savelha. Caraúna (peixe que bota ovos na lama), robalo tinha em abundância, acabou, pitu tinha muito, acabou. Eu ia no meu porto e via o linguado. Era tão limpo que dava para ver. Acabou. E por fim esse aterro. Ninguém se incomoda. Por isso eu entrei na justiça.
A Gutierrez trouxe o Moscatele, que sempre acusa as comunidades de poluir as lagoas. Eu não quero saber dele. Só criminaliza as comunidades. Em toda comunidade existe os que querem ficar e os que não querem. Justamente, os especuladores, que não moram. E os vizinhos ricos – falam – e os que moram aqui – eles comentam que devíamos viver em apartamentos. E quando sabem que vamos ficar, ficam admirados.
É como se a gente não pertencesse à cidade, como se nosso direito fosse só o de trabalhar pra eles.
Mas nós estamos aqui prontos para enfrentar toda guerra para ficar aqui.
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