Democracia é Saúde

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Sérgio Arouca (Presidente da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz) durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde em março de 1986.
Sérgio Arouca (Presidente da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz) durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde em março de 1986.

Discurso de Sérgio Arouca (Presidente da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz) durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em março de 1986.

Autoria: Sérgio Arouca (presidente da 8ª Conferência Nacional de Saúde).

Biografia[1]

O sanitarista Sérgio Arouca foi um dos principais teóricos e líderes do chamado "movimento sanitarista", que mudou o tratamento da saúde pública no Brasil. A consagração do movimento veio com a Constituição de 1988, quando a saúde se tornou um direito inalienável de todos os cidadãos, como está escrito na Carta Magna: "A saúde é direito de todos e dever do Estado".

Morto aos 61 anos, em 2 de agosto de 2003, Arouca é reconhecido por sua produção científica e a liderança conquistada na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi presidente da Fiocruz em 1985, professor concursado da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), além de chefe do Departamento de Planejamento da Escola.

A tese de doutorado de Arouca, intitulada O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva, forneceu fundamentos teóricos estruturantes para a constituição da base conceitual da saúde coletiva.

Internacionalmente, foi consultor da Opas/OMS, contribuiu diretamente para o planejamento do sistema público nacional de saúde da Nicarágua e participou de diversos outros projetos estratégicos da Organização, incluindo trabalho de consultoria no México, Colômbia, Honduras, Costa Rica, Peru e Cuba.

Mesmo no período de censura à imprensa por parte do governo militar, Sergio Arouca defendia o acesso de toda a população às informações científicas. Com a abertura política e a redemocratização no país, essa postura se intensificou. Quando nomeado presidente da Fiocruz, abriu as portas da instituição para a sociedade. Acreditava que os cientistas deviam participar da vida social e divulgar para os meios de comunicação suas atividades, muitas vezes financiadas pelos impostos dos próprios cidadãos.

Discurso

É com o maior prazer e satisfação que estou aqui para falar na 8ª Conferência Na­cional de Saúde sobre "Democracia é Saú­de", numa mesa que conta com a presença do Dr. Mosconi, que revitalizou a Comissão de Saúde da Assembleia, e do Dr. Ronei, que vem dando um papel inovador à Presidência do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

Inicialmente, gostaria de dizer que, infelizmente, por condições arquitetônicas, há um fosso entre a Mesa e a plateia, quando, na realidade, nossa intenção, ao contrário de colocar jacarés, crocodilos e demais espécies peçonhentas no fosso, foi sempre a de se conseguir uma integração clara, transparente e objetiva na discussão das questões da política de saúde. Por isso, gostaria de solicitar que pudéssemos nos abstrair desse fosso e imaginarmos que, na realidade, estamos o mais próximo possível nessa discussão sobre política de saúde.

Em segundo lugar, gostaria também de pedir licença aos sanitaristas, aos médicos, aos profissionais da área, aos pesquisadores, aos funcionários do Ministério da Saúde, para destacar um convidado especial, um participante que conseguiu um lugar nesta Conferência com bastante sacrifício: a sociedade civil brasileira organizada. É para ela que gostaria, hoje, de dedicar estas palavras. Creio ser bastante significativa a presença, na 8ª Conferência Nacional de Saú­de, de representantes de confederações nacionais de trabalhadores, de associações de bairro e outras entidades da sociedade brasileira, como a CNBB, a ABI, a OAB; de estarem aqui, reivindicando direito a voz e voto, membros do movimento popular pela saúde do Recife; enfim, o conjunto de entidades representativas, que conseguimos identificar num mapeamento quase que exaustivo da sociedade brasileira. A eles, que considero membros privilegiados deste encontro, quero dedicar a discussão sobre a questão "Democracia é Saúde".

Para este debate, pareceu-me que nada melhor do que iniciar com o conceito de saúde e doença que vem sendo, nos últimos anos, colocado pela Organização Mundial de Saúde. Conceito muito criticado, talvez porque ficasse em termos muito genéricos e abstratos, e não conseguisse servir de base para a determinação de quantas pessoas têm ou não têm saúde em um certo país. Mas, neste momento de transição, é importante voltar a colocar esse conceito sobre a mesa: de que saúde não é simplesmente ausência de doença, não é simplesmente o fato de que, num determinado instante, por qualquer forma de diagnóstico médico ou através de qualquer tipo de exame, não seja constatada doença alguma na pessoa. Para a Organização Mundial de Saúde, é mais do que isso: além da simples ausência de doença, saúde deve ser entendida como bem-estar físico, mental e social.

Sérgio Arouca (Presidente da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz) durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde em março de 1986.
Sérgio Arouca (Presidente da 8ª Conferência Nacional de Saúde)

Nos debates que antecederam a Conferência Nacional de Saúde, algumas pessoas, entre as quais o Professor Cinamon, da Escola Nacional de Saúde Pública, falaram também em ausência do medo. Talvez seja interessante a gente pensar um pouquinho sobre o que significa isso, o que significa esse conceito de saúde, colocado quase como algo a ser atingido. Não é simplesmente não estar doente, é mais: é um bem­ estar social, é o direito ao trabalho, a um salário condigno; é o direito a ter água, à vestimenta, à educação, e, até, a informa­ções sobre como se pode dominar este mundo e transformá-lo. É ter direito a um meio ambiente que não seja agressivo, mas, que, pelo contrário, permita a existência de uma vida digna e decente; a um sistema político que respeite a livre opinião, a livre possibilidade de organização e de autodeterminação de um povo. É não estar todo o tempo submetido ao medo da violência, tanto daquela violência resultante da miséria, que é o roubo, o ataque, como da violência de um governo contra o seu próprio povo, para que sejam mantidos interesses que não sejam os do povo, como aconteceu, infelizmente, na última década, na América Latina, e continua ainda a acontecer em alguns países (se bem que a maioria da América Latina conseguiu, nos últimos anos, libertar-se das ditaduras). Vimos, agora, com alegria, países como o Haiti e as Filipinas libertarem-se da dita­dura. Mas ainda somos obrigados a conviver com a ditadura chilena.

Conviver sem o medo é conviver com a possibilidade de autodeterminação individual, de liberdade de organização, de autodeterminação dos povos e, simultanea­mente, com a possibilidade de viver, como hoje já foi colocado, pelo amanhã, sem ameaça da violência final, que seria uma guerra exterminadora de toda a civilização.

Em alguns dos encontros preparatórios desta Conferência, realizados praticamente em todos os estados e territórios deste País, tivemos a oportunidade de assistir a depoimentos da maior sabedoria, algumas vezes de uma sabedoria maior do que a de muitos acadêmicos.

Por exemplo, em uma pequena cidade no interior do Paraná, durante uma reunião de uma comissão de saúde, um camponês chegou ao microfone e disse o seguinte: "Saúde é a possibilidade de trabalhar e ter acesso à terra".

Desse modo, a saúde começa a ganhar uma dimensão muito maior do que simplesmente uma questão de hospitais, de medi­camentos. Ela se supera e quase que significa, num certo instante, o nível e quali­dade de vida, algumas vezes qualidade de vida ainda não conseguida, mas sempre desejada.

Há algum tempo, também, surgiu à tona um conceito do ciclo econômico da doença, muitas vezes criticado, inclusive até por mim mesmo. Neste momento, talvez seja até importante trazê-lo de volta, porque é uma noção que deve ser entendida e pensada com simplicidade. Esse conceito de saúde/doença diz apenas o seguinte: se uma pessoa ganha pouco e não consegue comprar aquilo que é fundamental para a sua sobrevivência, ela não consegue recuperar toda a energia que está gastando no trabalho, e, portanto, se enfraquece; se alguém mora mal, não consegue que a sua casa seja uma proteção contra as agressões do meio ambiente; se não tem acesso à educação, não consegue ter aquele conhecimento que lhe permite controlar a natureza. Tudo isto, finalmente, leva à conclusão de que se uma pessoa não come aquilo que é o mínimo necessário e adequado à reprodução da vida, ela se enfraquece, e, se enfraquecendo, perde a luta contra a agressão e adoece. Adoecendo, não trabalha e nem pode mais vencer todas as lutas que uma sociedade competitiva lhe coloca. Portanto, trabalha menos, fala menos, mora pior, tem água em piores condições, se alimentam pior e adoece mais.

Este conceito, na sua simplicidade, é quase como dizer que, quanto piores as condições de vida de um povo, mais se entra em um ciclo vicioso. Quanto pior é a possibilidade de se ter assistência médica, pior é a possibilidade de se ter condições de trabalho dignas e decentes, que não troquem por dinheiro a intoxicação e a morte do trabalhador. E cada vez mais esse povo será mais doente.

Ao contrário, cada vez que um povo consegue ter direito a uma educação condigna; a uma habitação que não seja a casa do barbeiro nem um mangue com seus caranguejos, mas um lugar que permita ao camponês condições dignas de existência; a uma alimentação que possibilite e garanta a reprodução humana saudável, para que este País não se transforme numa nação de pigmeus (como já foi até denunciado); cada vez, enfim, que tais direitos são assegurados há uma população que luta mais e com maior consciência para transformar essa sociedade, visando a um nível de vida melhor, um bem-estar condizente com o crescimento acelerado da civilização tecnológica. Isto é o que queremos.

Nesta Conferência Nacional de Saúde, parece-me ser fundamental ter claro duas ideias: primeiro, que a saúde não é simplesmente ausência de doença, mas é bem­ estar físico, mental, social e político; em segundo lugar, que as sociedades criam ciclos que são ciclos da miséria ou ciclos do desenvolvimento. Finalmente, que ao acontecer o ciclo da miséria, é vital que ele seja transformado, rompido.

Infelizmente, o Brasil, nos últimos anos, conseguiu romper com uma das leis mais consolidadas da história da civiliza­ção; a de que quando cresce a riqueza de um País melhora o nível de vida do povo. No auge do seu chamado "milagre econômico" quando este País conseguiu aumentar sua riqueza, conseguiu também aumentar o índice de mortalidade das suas crianças, o número de pessoas que passam fome, a miséria da grande maioria da população e o número de marginalizados. Enfim, aumentou a riqueza e diminuiu o tamanho do nosso povo. Isto precisa ser vencido e derrubado.

E foi neste sentido que se cunhou uma frase da maior importância: "Saúde é democracia". Isto é, passou-se a perceber que não era possível melhorar o nível de vida da nossa população enquanto persistisse, neste País, um modelo econômico concentrador de renda e um modelo político autoritário. Para romper o ciclo econômico que levava nossa população a viver cada vez mais em piores condições, um passo preliminar era a conquista da democracia. O problema não era técnico, não era imaginar que não tivéssemos conhecimentos, técnicas e profissionais para resolver o problema de saúde. O problema era de decisão política, e a política não colocava como prioritária a questão social. O que a política colocava como prioritário era o enriquecimento e a concentração de renda, mas nunca a melhoria de vida do nosso povo.

Portanto, o lema que surgiu dentro do sistema de saúde durante os últimos anos - "democracia é saúde" - significava que para se conseguir começar, timidamente, a melhorar as condições de saúde da população brasileira, era fundamental a conquista de um projeto de redemocratização deste País.

Essa luta teve repercussões em todos os níveis, na área médica, com a criação dos movimentos de renovação médica, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Teve impacto praticamente em todas as áreas de profissionais de saúde, com a conquista de associações e sindicatos que, antes, não representavam os interesses da categoria; permitiu que o papel do Legislativo, através das suas Comissões de Saúde, fosse recuperado como influenciador de uma política mais efetiva. Criou-se o Parlamento da Saúde, uma associação das Comissões de Saúde das Assembleias Legislativas Estaduais; os sindicatos dos trabalhadores formaram os Departamentos Sindicais de Saúde do Trabalhador; a univer­sidade participou de uma forma efetiva, gerando um conhecimento que permitisse fazer a crítica desse sistema de saúde.

E todo esse movimento acabou desembocando, simultaneamente, com a luta pela democratização deste País, no segundo semestre de 1984, numa luta pela redefinição de uma política de saúde, tendo em vista que, no contexto da redemocratização, era fundamental, também, a mudança no setor saúde, como seria fundamental uma mudança no setor urbano, agrário, financeiro e econômico.

Durante esse período fizeram-se muitos diagnósticos. Tentou-se entender por que os profissionais da área de saúde estavam concentrados nos grandes centros urbanos; por que a maioria dos serviços de saúde estava situada nas Regiões Sul e Sudeste; por que a nossa indústria farmacêutica foi totalmente sucateada, como aconteceu, também, com a grande maioria dos serviços públicos, que não receberam nenhuma prioridade durante os últimos anos. Como foi possível, durante esse período, liquidar com a capacidade de produção dos nossos laboratórios nacionais, e não só os de medicamentos? Há dois dias, participava eu de um con­gresso nacional de municípios em que, quase que em forma de consenso, todos estavam preocupados com a questão do soro antiofídico. Porque é uma coisa muito grave não existir soro antiofídico no interior do País, para ser usado numa pessoa picada por cobra. Isto está ocorrendo, simplesmente, porque os laboratórios de produção do soro antiofídico também foram liquidados. Como foi possível elaborar uma política de recursos humanos que levou as pessoas que desempenham funções iguais tenham salários diferentes? Como foi possível, praticamente, liquidar com a capacidade de investigação da nossa universidade? Como foi possível estabelecer relações tão difíceis, para não usar uma palavra pior, com o setor privado? Enfim, como foi possível, durante esse período, montar um sistema tão perverso de saúde, que não atende aos interesses de ninguém?

Mas, hoje, não é mais o momento de repetir diagnósticos. Esta análise do sistema de saúde pôde, com outras palavras, ser repetida pela grande maioria das pessoas presentes. Ela está clara para o usuário, que encontrava centros de saúde funcionando só meio período, onde os profissionais que são contratados por seis horas trabalham só duas; onde a falta de higiene transforma o local numa verdadeira pocilga; onde falta medicamentos; onde o indivíduo não é tratado com o mínimo de dignidade humana, isto é, alguém com nome e sobrenome; onde todos os homens são transformados em "Zé" e todas as mulheres em "dona Maria".

Da mesma forma como esse diagnóstico pôde ser feito pelo usuário, ele está sendo discutido por todos os técnicos e políticos efetivamente comprometidos com as mudanças no sistema de saúde deste País. Então, o momento da Conferência, na realidade, não está sendo pensado como o da continuação do diagnóstico, mas em quais são as possibilidades reais e concretas que temos de montar um sistema de saúde, hoje, no Brasil. Este é o porquê da Conferência. E assim ela nasce, no instante em que o debate sobre a reformulação do sistema de saúde no Brasil, infelizmente, quase que ficou restrito a uma simples reforma administrativa, com a discussão da transferência ou não do INAMPS para o Ministério da Saúde. Só que não é esta a questão. O que está em questão é uma coisa muito mais séria, muito mais profunda do que uma simples reforma burocrática e administrativa.

Para que não ocorresse nenhuma mudança durante o ano de 1985 - e essa ideia foi muito importante, surgiu uma crítica bastante séria de que o conjunto das propostas em que estava baseada a reformulação do sistema de saúde ainda não havia sido debatido o suficiente pela sociedade brasileira e que qualquer mudança no sistema de saúde não podia ser feita simplesmente por uma lei. Tinha que haver uma mudança a partir do instante em que existisse uma consciência nacional tão profunda, tão séria, que se transformasse em desejo político, num desejo político irreversível, eu diria quase que suprapartidário, que levasse à noção de que o sistema de saúde brasileiro tem que ser mudado.

Quando se teve esta compreensão, chegou- se a uma consciência de que tinha que ser convocada uma Conferência Nacional de Saúde, que permitisse a ampliação, a nível nacional, de todo o debate que durante o ano de 1985 aconteceu nas capitais e em alguns setores da sociedade brasileira. Então, essa Conferência Nacional de Saúde não podia ser igual às outras sete que a antecederam. Precisava ter uma natureza e um caráter absolutamente distintos, devia representar quase que um apelo à sociedade brasileira para que esta apresentasse suas críticas ao sistema existente, a partir do seu desejo, a partir da sua cultura. Por que o problema aqui não é o de buscar um modelo de saúde que seja adequado à nossa cultura de brasileiros, tirado do bolso de uma hora para outra, mas sim o de se buscar um sistema de saúde cuja experiência tenha sido gerada nas vivências do trabalho comunitário de bairros, nas práticas dos sindicatos, da Igreja, das secretarias de saúde, estaduais e municipais, que tanta coisa têm enfrentado no sentido de transformar esse sistema. baseados no conhecimento, inclusive, de pessoas que, por assumirem mais a convivência com esse sistema perverso, foram para algum lugar do País e começaram uma experiência concreta, na tentativa de modificá-lo.

É disto que estamos falando. Como recuperar, num certo instante, a cultura nacional, a experiência acumulada por aquelas instituições que trabalharam sério, por aqueles que têm algo a dizer, que podem nos alertar sobre o que não funciona e o que não vale a pena tentar. É para isto que foi convocada esta Conferência. Portanto, ela não podia ser uma reunião de funcionários, um encontro de empresários, simplesmente.

Há uns dias atrás, algumas entidades ligadas ao setor privado se retiraram da Conferência, alegando que, como representavam uma grande percentagem dos serviços de saúde prestados ao País, deviam ter maior número de delegados. Mas se equivocaram. No meu entender, essa proporção de serviços prestados não corresponde à proporção da população brasileira. E esta é uma Conferência da população brasileira e não uma Conferência dos prestadores de serviços.

Mas eu lamento profundamente a sua ausência, porque nesta Conferência está se tratando é de criar um projeto nacional que não pretende excluir nenhum dos grupos envolvidos na prestação de serviços, na construção da saúde do povo brasileiro. Assim, a eles queria deixar uma mensagem: que, mesmo na sua ausência, vamos estar defendendo os seus interesses, desde que estes não sejam os interesses da mercantilização da saúde. Portanto, todo aquele empresário que está trabalhando seriamente na área da saúde, na qualidade da sua competência técnica e profissional, não precisa se sentir atemorizado, porque aqui ele vai ser defendido.

Gostaria também de dizer aos senhores que a Conferência superou as nossas expectativas. Quando foi convocada - e é fundamental que isso seja colocado aqui -, pensava-se numa Conferência que se realizaria durante cinco dias, de 17 a 21 de março, e com três temas fundamentais, aqueles que vamos debater a partir de hoje. O primeiro seria sobre se a saúde é ou não um direito do brasileiro. Isto levanta uma discussão muito séria. Por ser uma necessidade da pessoa humana, a saúde deve corresponder a um direito, que precisa ser defendido."

E o brasileiro, como pessoa humana, tem direito à saúde. Mas se a saúde é um direito, a quem cabe garanti-lo? Qual é a organização do serviço de saúde que, de acordo com a nossa cultura, com o nosso País, de acordo com a nossa experiência acumulada e com a estrutura dos serviços de saúde que temos vai permitir melhor a garantia desse direito? E como financiá-lo? Era isto que queríamos discutir e imaginamos que cinco dias seriam suficientes.

Ao mesmo tempo, tínhamos absoluta certeza de que esta Conferência deveria representar a voz da sociedade brasileira e não ser simplesmente um encontro de funcionários. Assim, iniciou-se todo um movimento de discussão a nível dos estados, para que a Conferência pudesse representar os mais variados segmentos da sociedade. E, de repente, apareceu uma ideia que inicialmente não havia sido pensada: as Pré-Conferências Estaduais de Saúde. Elas nasceram num movimento quase que próprio, quando os estados começaram a ter interesse em se preparar para a Conferência. E as Pré-Conferências estaduais aconteceram, quase superando a própria Conferência Nacional, porque o que estamos fazendo hoje é um plenário de uma Conferência já iniciada.

A Conferência teve seu começo nos encontros municipais de São Paulo, nos debates no Pará e em Alagoas, no interior do Paraná. Todo esse debate se iniciou na CONCLAT, nas instituições sindicais, nos conselhos regionais de profissionais de saúde que, durante os três últimos meses, de uma forma ou de outra, discutiram a situação de saúde. Talvez não tanto como queríamos, mas, de certa forma, este debate superou todas as nossas expectativas, resultando em uma primeira conquista de grande importância na reorganização do Sistema Nacional de Saúde, com a criação de uma figura até hoje não existente: a das Conferências Estaduais de Saúde. Em alguns lugares aconteceram de uma maneira mais fácil, em outras, as forças políticas existentes não criaram nenhuma condição de diálogo. Mas elas acabaram ocorrendo praticamente em todos os lugares deste País, ou convocadas pelas comissões de saúde das assembleias legislativas, por plenários de entidades ou pelas secretarias estaduais, junto com superintendências e com as delegacias de saúde.

Depois, apareceu um fato também da maior importância: durante a organização da Conferência, imaginávamos que determinados temas não poderiam deixar de forma nenhuma de serem debatidos, como, por exemplo, a questão da saúde do trabalha­dor, tão maltratada na história do Brasil; a questão das grandes endemias, contra as quais ainda estamos perdendo a batalha; a questão de uma política de sangue que possa liquidar com esse vampirismo acelerado e mercantilista dos bancos de sangue neste País; a questão da política de equipa­mentos, vacinas e medicamentos, que nos leve à autossuficiência e à independência nacional; a questão da política de recursos humanos, que recupere a dignidade do trabalho na área de saúde, com plano de carreira e capacitação permanente.

Enfim, nossa proposta inicial era de que a Conferência Nacional tratasse, simultaneamente, dos três grandes temas - Saúde como Direito, Reformulação do Sistema de Saúde e Financiamento do Setor - e de vinte temas específicos, tais como política de sangue, política de equipamentos, política de medicamentos, controle das grandes endemias, saúde da mulher e da criança, saúde do trabalhador.

Contudo, várias instituições e compa­nheiros da área de saúde nos alertaram para o fato de que, no instante em que passássemos a conviver aqui, discutindo simultaneamente os temas fundamentais e os específicos, estaríamos correndo um grande risco, o de esvaziar os primeiros. Chegou-se, então, a outra solução: se o objetivo da Conferência Nacional de Saúde era o de colocar a questão da saúde na esfera da Constituição, não se podia limitar o debate a poucos dias. Além das Pré­ Conferências e destes dias de um grande plenário nacional, ela deveria ser expandida para que, de março até outubro deste ano todos esses temas fossem discutidos. Na realidade, temos que enfrentar a ques­tão das grandes endemias, de uma política científico-tecnológica, da saúde da mulher e da criança. Assim, a partir de março, os debates dos temas específicos vão-se desdo­brar nacionalmente.

E a Conferência deixou de ser um acontecimento de poucos dias para se tornar um grande processo que, mobilizando durante todo o ano a sociedade brasileira, a ciência, a academia, os profissionais, efetivamente possa caminhar para a construção de um grande projeto nacional na área da saúde, um projeto nacional que, imbuído de consciência, (podendo ser, inclusive, suprapartidário), num grande gesto de desejo e força possa ser irreversível.

E que esse projeto nacional, que não exclui o setor privado, deve ser federado, obedecendo, portanto, às diversidades de todas as regiões do País, pois existem responsabilidades específicas da União, dos estados e dos municípios; que possa ser formulado como uma verdadeira reforma sanitária, assim como foi possível, por um grande gesto de coragem, a instituição de uma reforma econômica e da mesma maneira que todos desejamos seja implantada uma efetiva reforma agrária. É fundamental, ainda, caminharmos para profundas reformas urbana e financeira.

Nós, do setor de saúde, sabemos que a saúde é determinada, antes de tudo, pela economia, pela política, pela sociedade, e temos, como grande responsabilidade, a construção desse projeto. Cabe a nós, profissionais, técnicos, romper o muro e o fosso do setor saúde e abrir canais de comunicação com a sociedade brasileira, inclusive aprendendo a falar com ela. Temos que começar a transformar nossa linguagem e a mudar nosso ouvido, para que, quando uma associação de bairro ou um sindicato falar, a gente entenda, E quando a gente disser que é importante acabar com as doenças transmissíveis neste País, isto possa ser expresso de uma forma simples e objetiva, para que o nosso povo entenda.

Esse novo pacto, essa nova aliança, é o que estamos chamando de uma profunda reforma sanitária neste País. Esta deve supor uma reformulação no sistema de saúde, baseada na inserção, na Constituição, de que a saúde é um direito do brasileiro e um dever do Estado. Mas que Estado? Temos aqui também que diferenciar entre Estado e governo. Estado pressupõe território, um povo e um governo. Muitas vezes, durante o período autoritário, Estado foi confundido com governo, e se estabeleceram leis de segurança do Estado que, na realidade, eram leis de segurança dos governantes. Não é disso que estamos falando, mas de uma nação, com um território e, dentro dele, um povo, que pretende ter um governo que represente seus interesses. Portanto, é a esse Estado - Estado como povo, como território, como nação - que cabe garantir o direito à saúde do seu povo. Esta é a primeira grande questão.

Outra grande questão é que a reforma sanitária deve ser ampla. Não pode ser confundida com reforma administrativa nem apenas com a transferência burocrática de instituições ou com a simples mudança da direção dessas instituições. A reforma sanitária pressupõe a criação de um organismo que, reunindo tudo o que existe a nível da União, possa, a partir de um grande fundo nacional de saúde, promover uma política de distribuição desses recursos mais justa e igualitária, alcançando, assim, a universalização, isto é, garantindo a cada pessoa neste País o direito aos serviços básicos de saúde.

É por essa reforma que estamos brigando. E ela não pode ser um projeto da minha cabeça ou da cabeça dos profissionais; ela tem que ser construída, desejada, montada, inventada pela sociedade brasileira, mesmo que o resultado final não seja aquilo que muitos de nós estamos querendo que seja. O que nos interessa nessa reforma sanitária, imaginando que ela seja um projeto nacional? Não é uma modernização administrativa das instituições, nem simplesmente mudar o desempenho das instituições (se bem que isto seja da maior importância); não é simplesmente acabar com fraudes (embora isto seja fundamental); nem somente recuperar a dignidade de um serviço público. É como se estivéssemos andando numa maria fumaça ofegante, lenta, soltando fumaça, quase que caindo pelas beiras da estrada e, sem parar, a transfor­mássemos numa grande locomotiva que nos levasse para o futuro.

É fundamental, portanto, que, ao mesmo tempo, se modernize, se lute contra a fraude e se melhore o desempenho institucional, mas sem perder de vista o projeto. E este só aponta para um sentido: a melhoria das condições de vida da população. Se não alcançarmos tais condições, o projeto terá falhado.

Que morram menos crianças; que o nosso povo viva e cresça mais e que tenha menos medo; que trabalhe melhor e participe cada vez mais da criação do nosso futuro; que esta Nação se autodetermine e crie um grande projeto brasileiro. É para isso que apontamos. Este é o nosso compromisso, e por isto esta Conferência foi convocada.

Deste modo, gostaria de colocar uma última questão. Esta Conferência tem como representantes delegados, já que não queríamos que houvesse qualquer possibilidade de influência econômica na mesma, que uma entidade, por exemplo, por poder trazer um maior número de pessoas aqui, influenciasse no destino desta reunião. Queríamos garantir que os usuários pudessem expressar de uma forma absolutamente autônoma a sua posição e garantimos, então, vagas para várias entidades: CONTAG, CUT, CONCLAT, CONAM, etc. Pode ser que tenhamos errado em muitas coisas, mas na medida do possível, durante a própria Conferência, vamos tentar reverter os erros feitos em termos de representatividade. Mas o fundamental era garantir uma representatividade, garantir que alguém que viesse aqui na Conferência, eleito ou indicado por uma confederação que representa milhares de trabalhadores deste País, que não fosse confundido com o voto que pudesse ser trazido pelo poder econômico. Para tanto, a representatividade era fundamental. Mas, ao mesmo tempo, não queremos, de maneira alguma, excluir alguém. Todas as pessoas que chegarem aqui podem manifestar suas opiniões e participar de forma democrática das decisões que serão tomadas.

Gostaria de chamar atenção para o fato de que todos estão de olhos voltados para o que está ocorrendo nesta Conferência. Esta é a primeira vez em que se encontram o setor saúde e a sociedade. Pela primeira vez, os usuários estão representados numa Conferência Nacional de Saúde. Então, nosso papel na formação da política de saúde é da maior importância.

Talvez fosse mais fácil e, inclusive, mais tranquilo, uma Conferência com um pequeno número de delegados. Provavelmente as filas dos sanitários não seriam tão grandes e não haveria dificuldades para se telefonar porque acabaram as fichas. Realmente, o número de presentes superou em muito as expectativas. Mas acho que é exatamente este o caminho. Temos que aprender a viver com a diversidade, com o coletivo. E será assim que vamos construir nosso projeto, sabendo que, embora muitas vezes possamos errar, não vamos errar nunca o caminho que aponta para a construção de uma sociedade brasileira mais justa.

Vídeo

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