Territórios periféricos como patrimônio cultural
Entre os becos e vielas das mais de 11 mil favelas espalhadas pelo território nacional, existem histórias que entram na soma das identidades dos nossos “brasis”. Há também moradores desses territórios que se empenham para que essas memórias sejam preservadas e disseminadas, para que cada vez mais pessoas conheçam as lutas e potências protagonizadas por favelados.
Autoria: Beatriz de Oliveira[1].
Matéria
Alguns desses marcos são reconhecidos como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Isso, em tese, possibilita a parceria entre poder público e comunidades para a proteção das expressões culturais. Mas, conforme apurou o Nonada, o tombamento nem sempre é o suficiente para que determinados bens sejam preservados. Em paralelo, há diversas memórias que sobrevivem apenas por meio de iniciativas populares.
“Eu sinto falta da minha cidade ter uma memória sobre a população favelada. Quem vai tratar e quem cuida desse espaço das favelas? A importância delas como solução não só para moradia, mas também para resistência, estratégias de sobrevivência e de reexistência”, afirma Hugo Oliveira, artista da dança, educador, pesquisador, gestor cultural e criador da Galeria Providência, projeto de murais de arte urbana no Morro da Providência, no Rio de Janeiro (RJ).
Para a doutora em Sociologia Palloma Menezes, a memória das favelas interessa a toda a sociedade. “A preservação e a difusão dos conhecimentos sobre a história das favelas é fundamental não só para os moradores desses territórios, que merecem e precisam ter suas histórias contadas, mas também para moradores de outros territórios da cidade que precisam entender cada vez mais que favela é cidade e que os moradores são fundamentais para construção da cidade e do cotidiano da cidade”, pontua a integrante do Dicionário de Favelas – Marielle Franco, projeto que visa a preservação da memória e identidades coletivas dos moradores das favelas através produção de conhecimentos sobre esses espaços.
Patrimônios culturais ligados às favelas
“Bens imateriais são afetados por recortes de raça, gênero e classe social. Sendo assim, devemos nos atentar para as complexas dinâmicas desses recortes sobre a definição do que seriam bens imateriais inerentes às favelas”. Assim começa a nota do Iphan enviada após pedido reportagem sobre relação de bens tombados ligados à favela.
A nota aponta também que as periferias são diversas ao se considerar as realidades do território brasileiro, ao ponto que o termo favela é normalmente relacionado às comunidades que se formaram no Rio de Janeiro no início do século XX. “Podemos elencar alguns bens que são associados de alguma forma a comunidades consideradas, por processos históricos de segregação social e racial no país, periféricas”, continua o texto. A partir disso, o órgão cita os seguintes patrimônios culturais: Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira.
Em relação às matrizes do samba, por exemplo, os favelados são protagonistas. O ritmo se originou de tradicionais reuniões musicais em casas, morros e ruas do Rio de Janeiro. Já as rodas de capoeira são historicamente ligadas à comunidades negras e marginalizadas, além de ser símbolo de luta contra a opressão.
Além disso, o órgão lista bens ligados à comunidades rurais, mas que estão presentes nas periferias devido a processos de migração e urbanização. São eles: Jongo no Sudeste, o Frevo, o Maracatu Nação e o Maracatu de Baque Solto, o Tambor de Crioula no Maranhão, o Cavalo Marinho, o Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, o Complexo Cultural do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano. “Destacamos que esta lista é apenas exemplificativa e não exaustiva de bens que, em maior ou menor grau, estão relacionados às comunidades periféricas”, finaliza a nota do Iphan.
O jongo é uma dança de roda que chegou ao Brasil por meio de africanos escravizados. A tradição se manteve através das gerações de familiares dos jongueiros, que vivem em regiões marginalizadas. A carioca Lazir Sinval integra o Jongo da Serrinha e lembra de quando o Jongo no Sudeste foi definido como patrimônio cultural pelo Iphan em 2005. “Desde então, a gente [comunidades jongueiras] está sempre se encontrando, tanto para rodas de jongo, quanto para reuniões de salvaguarda de patrimônio do Iphan, e ouvindo os mestres jongueiros”, conta.
Apesar disso, as dificuldades de se preservar esse patrimônio estão presentes no dia a dia; faltam recursos para manter o Jongo da Serrinha, que também atua como um projeto social voltado para jovens na comunidade de Madureira. “É como se a gente tivesse que lutar constantemente para que o jongo seja conhecido”, diz.
Em Recife (PE), Bernardino da Silva, também vive no cotidiano a luta para não deixar que um patrimônio caia no esquecimento. Ele é integrante do Maracatu Nação Pernambuco, “um trabalho que tem uma função social, cultural e artística; mas basicamente hoje o nosso objetivo é revitalizar a trajetória do maracatu em Pernambuco”, explica. O Maracatu Nação, reconhecido como patrimônio cultural em 2014, é uma expressão cultural que evoca coroações de reis e rainhas do antigo Congo africano através de um cortejo musical percussivo.
“É bom ser lembrado e ser reconhecido pelo legado com função social e histórica, e que o Estado chegue junto, mesmo que acanhado, para ter esse reconhecimento. Mas eu ainda acho que a atenção dos poderes municipal, estadual e federal deixa muito a desejar. Porque dar um título de patrimônio para o Maracatu Nação e outros legados é uma coisa. Lutar para esses grupos se manterem é outra coisa.”, relata.
“Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela”
Para além dos bens citados pelo Iphan, identificamos outros patrimônios que podem ser relacionados às favelas. É o caso do “Rio de Janeiro – Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar”, reconhecido como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A paisagem, tombada em 2012, inclui, segundo o Iphan, o Monumento Natural Pão de Açúcar, Morro do Leme, Corcovado, Floresta da Tijuca (Parque Nacional da Tijuca), Aterro do Flamengo (Parque do Flamengo), Jardim Botânico, Enseada de Botafogo, Praia de Copacabana, Arpoador, além da entrada da Baía de Guanabara, e os monumentos Forte do Leme e Forte de Copacabana.
Apesar de não constarem na descrição do órgão, favelas como a Santa Marta e a Babilônia estão presentes na paisagem tombada. Para Hugo Oliveira, isso se deve ao fato de que na época ainda não se tinha um número significativo de intelectuais periféricos discutindo o tema; ao passo que havia, de modo geral, a deslegitimação da imagem das favelas. Para elucidar a explicação, o pesquisador lembra da música “Rap da Felicidade” de Cidinho e Doca.
“Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela”
Também no Rio de Janeiro, há o Cais do Valongo, porto que recebeu milhares de escravizados durante o período colonial e se tornou o maior porto receptor de escravos do mundo. Revelado em 2011 durante obras na cidade, o local foi definido como Patrimônio Mundial em 2017.
Apesar disso, o sítio arqueológico permaneceu por anos abandonado e com problemas de conservação. Em março de 2023, o governo Lula reativou o projeto de valorização do local, incluindo a pretensão de construção de um museu. O planejamento das ações no Cais do Valongo conta com um comitê gestor, do qual, inclusive, o pesquisador Hugo Oliveira faz parte.
Para ele, a relação do cais com a favela é nítida, mais especificamente com o Morro da Providência – comunidade próxima ao local e reconhecida como a primeira favela do país. “Eu faço uma conexão direta, no pós-abolição essas pessoas [ex-escravizados que viviam na região] subiram para a Providência”, afirma.
“É importante que nossos rostos sejam lembrados, estamos falando de uma população favelada, não só uma população numericamente mencionada. Quase um milhão de pessoas chegaram pelo Cais do Valongo. Mas quem eram essas pessoas? Elas tem nomes, eram reis, rainhas, pessoas comuns”, pontua.
O olhar do poder público para as memórias das favelas
Segundo definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), favela é um “aglomerado subnormal formado por um conjunto de domicílios com no mínimo 51 unidades que ocupa, de maneira desordenada e densa, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e que não possui acesso a serviços públicos essenciais”. Para Aruan Braga, coordenador de Políticas Urbanas do Observatório das Favelas, a própria definição elucida como o poder público olha para as favelas: a partir das faltas.
“A percepção do poder público reproduz uma perspectiva negativa e pejorativa sobre as favelas e periferias. Essa dinâmica já nos dá uma dimensão de como é a abordagem sobre patrimônio nesse território, de desconsideração sobre as potências. Não é por acaso que as políticas públicas que chegam com investimento e equipamentos de ponta são as políticas de segurança, de extermínio da população moradora de favelas”, afirma.
A pesquisadora Palloma Menezes aponta outra característica da visão do Estado em relação aos patrimônios das favelas: a descontinuidade. Segundo ela, faltam projetos permanentes para tratar desse assunto. Mas isso não vale apenas para a área de patrimônio, é visto de forma geral nas políticas que chegam às favelas, inclusive as de segurança pública.
Mas há perspectivas de melhorias no horizonte. Com a eleição de deputadas e vereadoras negras e periféricas, a partir do caso de Marielle Franco, o debate tem ganhado espaço nessa esfera de poder. “Nomes que já estavam atuando muito fortemente nas favelas, mas que agora, no parlamento, conseguem pautar esses debates de maneira diferente”, diz.
Nós por nós
No início dos anos 2000, surgiram nas favelas movimentos de valorização da memória, com a criação de iniciativas ligadas ao tema. O contexto inclui o avanço de projetos de urbanização desses espaços. “Se fortalece o discurso sobre qual é o lugar das favelas na cidade, a favela é cidade, então ao contar a histórias das cidades é preciso contar a história das favelas”, pontua Palloma.
Há ainda o aumento da entrada de moradores de favelas nas universidades, a partir de políticas públicas executadas durante o primeiro governo Lula. “Esse processo foi importante para criar uma nova geração de pesquisadores que são moradores de favela, que vão juntar o conhecimento acadêmico com o saber cotidiano de uma maneira muito original e potente”, explica.
Ao reivindicar o direito à memória, esses movimentos colocaram em questão o próprio conceito de patrimônio cultural. Já que o tema é geralmente tratado a partir de um olhar hegemônico, privilegiando as histórias das classes dominantes. Aruan Braga explica que no panorama popular de patrimônio os aspectos sociais e culturais são priorizados em detrimento dos elementos concretos; ao contrário da ordem hegemônica.
Dessa forma, é possível entender os próprios moradores das favelas como detentores das memórias desses territórios. Muitos carregam histórias marcantes de suas comunidades, integram lutas como o acesso à direitos básicos ou mutirões de construção de casas. E são várias as iniciativas populares que valorizam esses saberes.
Uma delas é o Museu de Favela (MUF), localizado no conjunto de favelas Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro. Trata-se de um museu territorial, que não tem espaço físico, mas se utiliza de todo o território da favela como acervo. Para visitar, é necessário agendar com lideranças da iniciativa, que fazem um tour pelos principais pontos de memória do local, além de incentivar o consumo nos comércios locais.
Alini Rangel é uma das integrantes do projeto e explica que: “a proposta é esse museu vivo com um acervo vivo, que são os moradores e suas histórias de vida, toda história de formação da favela e manifestações culturais”. Na cidade carioca há outras iniciativas de museus localizados em diferentes favelas, é o caso do Museu da Maré, na favela da Maré, e do Museu das Remoções, na Vila Autódromo.
Em São Paulo, foi inaugurado no fim de 2022 o Museu das Favelas, uma iniciativa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo com a participação de pessoas periféricas. Ainda em processo de constituição do acervo, o museu conta com o Centro de Referência, Pesquisa e Biblioteca (CRIA), setor que prevê a preservação de dados e arquivos digitais relacionados às favelas do país.
O museu está localizado no Palácio dos Campos Elíseos, no centro da capital paulista, que já foi sede de governo. Segundo Carla Zulu, porta-voz e Coordenadora de Relações Institucionais e do Centro de Empreendedorismo, a escolha pelo local tem a ver com reparação histórica. “Sabendo o contexto social da época de construção deste palácio, podemos presumir que sua construção foi realizada através da mão de obra de pessoas recém alforriadas e migrantes recém-chegados ao Brasil, todas pessoas da classe trabalhadora, cuja entrada não fora permitida neste espaço, após ele ser inaugurado. Dessa forma, o primeiro momento de reparação se dá pela possibilidade dessas pessoas adentrarem esse palácio, pela porta da frente, como convidados, desfrutando da experiência de ver as suas histórias sendo contadas neste palácio”, afirma.
É pela possibilidade de criar novos futuros que se deve preservar as memórias. Para o pesquisador Hugo Oliveira, a luta no presente protagonizada pelas iniciativas populares vai ecoar no amanhã. “A gente quer sonhar com coisas que não remetam só a nossa dor, a gente quer fabular sonhos, a gente quer gerar imaginários lúdicos e estéticos para os nossos”.
Ver também
- Museu da Favela do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho
- Memórias e museus em favelas (debate)
- Direito à memória nas favelas em tempos pandêmicos (live)
- Memória e identidade dos moradores de Nova Holanda (livro)