Chacina do Pavilhão 9 (Massacre do Carandiru)
Ao abordar uma das principais tragédias dos anos 1990, quiçá do Brasil pós ditadura num todo, este verbete sobre o Massacre do Carandiru (conhecido também como Chacina do Pavilhão 9) inaugura, no Dicionário de Favelas Marielle Franco, uma mudança na linha de verbetes sobre chacinas, tirando um pouco o foco exclusivo do Rio de Janeiro para expandir para o resto do país. Assim, explicita-se que, desde o começo, o fenômeno das chacinas é algo comum a todo o Brasil, não apenas à realidade fluminense; e que, embora nem sempre ocorra em favelas, as chacinas tendem a aniquilar majoritariamente pessoas negras, quase sempre oriundas de favelas e das classes populares num geral. O massacre do Carandiru é um marco incontornável e aqui apresentamos um pouco de como tudo ocorreu e as consequências básicas do fato.
Autoria: Matheus de Moura
Contexto
O Massacre do Carandiru, na Casa de Detenção de São Paulo, no bairro Carandiru, ocorreu em 2 de outubro de 1992: 7 anos depois da reabertura democrática do Brasil — após os 21 anos de Ditadura Militar —, 3 anos desde a primeira eleição direta para o cargo executivo na esfera federal e no exato dia em que Fernando Collor, o então primeiro presidente eleito por voto direto, foi afastado do poder para iniciar o processo de impeachment após os inúmeros escândalos de corrupção.
Após uma disputa eleitoral acirrada com o candidato petista Luís Inácio Lula da Silva, Collor, oriundo de uma forte dinastia política de Alagoas, elegeu-se com uma popularidade calcada em discursos políticos anti-corrupção e anti-establishment que tão logo se deteriorou quando ele começou a desenvolver algumas das piores políticas econômicas do Brasil recente, como, dentre as mais polêmicas, o confisco da poupança dos cidadãos brasileiros. Portanto, o impeachment apresentou-se como possibilidade sólida quando Pedro Collor, irmão do presidente, concedeu uma entrevista à revista Veja revelando um esquema de corrupção envolvendo Fernando e seu chefe de campanha de eleição, Paulo César Farias, vulgo PC Farias.
A democracia brasileira mal havia renascido e já sofria das piores crises, o que afetava a possibilidade de instituição de credibilidade e legitimidade estatal nas mais diversas instâncias. A desconfiança para com um estado que até ontem era literalmente ditatorial, instituindo aprimoramentos técnicos nas práticas gerais de tortura e assassinatos. As polícias civil e militar carregam uma acúmulo histórico de ações repressivas contra populações negras e faveladas, o que vai piorando ao longo de nossa história republicana, chegando assim, nos anos 1990, na nova democracia, com marcas das ditaduras de Vargas e, posteriormente, da Militar.
Juntemos tudo isso à crise inflacionária do período, e temos na redemocratização a marca da manutenção da instabilidade e do medo para pessoas racializadas e/ou pobres. Em artigo acadêmico, Iwi Onodera pondera que "foi também na década de 90, que o número de civis mortos pela polícia cresce assustadoramente. Só em 1992, a PM deixou 1.428 pessoas mortas em supostos tiroteios no estado, incluindo os 111 presos massacrados no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo".
O presídio
Em 21 de abril de 1920 São Paulo inaugura a Penitenciária do Estado, inspirada no Centre Pénitentiaire de Fresnes, na França. A ideia é que a prisão funcionasse com boas condições sanitárias e infraestruturais a fim de "regenerar" os criminosos. Em reportagem da Folha de SP, fica destacado: "E por alguns anos foi assim. Tanto que o escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), que lá esteve em visita ainda nos anos 1920, escreveu em 1936 em seu livro Encontro com homens, livros e países: 'A limpeza e a higiene exemplares faziam com que o presídio se transformasse numa fábrica de trabalho. Eram os presos que faziam o pão, preparavam os medicamentos, prestavam os serviços na clínica e no hospital, plantavam legumes, lavavam a roupa, faziam pinturas e desenhos e tinham aulas'."
A superlotação, todavia, chegou em duas décadas e se manteve para sempre. Em 1954, então, o governador de SP Jânio Quadros inaugura ali a Casa de Detenção e, com isso, aumenta para 3250 a capacidade máxima de presos. O sonho do presídio modelo morreu. Em seu livro seminal "Estação Carandiru", o médico e escritor Dráuzio Varella descreve que, à época de suas visitas nos anos 1980-1990, a Casa de Detenção contava com sete mil detentos, já tendo chego a nove mil nos piores momentos.
A infraestrutura, ele continua na obra, era composta por prédios velhos e mal conservados, cinzentos e com cinco andares (contando o térreo); o ambiente contava com ampla circulação de presos por boa parte do dia. O ambiente era insalubre, com pouco acesso a saneamento, ampla disseminação de doenças como tuberculose e HIV e instabilidade quanto à violência interna — algum grau de autogestão entre presos fazia com que as piores desavenças fossem resolvidas na "Rua Dez", que nada mais era do que um trecho da galeria "oposto à gaiola de entrada do andar, do outro lado do quadrado, longe da visão dos guarda, que, para atingi-la, são obrigados a percorrer as galerias laterais", conforme descreve Varella. Lá, casos graves eram resolvidos na paulada e facada, reduzindo drasticamente a chance de sobrevivência da vítima do acerto de contas — coisa feita normalmente em grupos grandes contra uma ou duas pessoas, raramente, para não dizer nunca, resolvido no um a um.
Apesar das condições decrépitas e da tensão constante de um ambiente consideravelmente violento, havia algo de calmo na Casa de Detenção. O trânsito com certo grau de liberdade fazia com que os detentos pudessem se expressar e desenvolver alguma sociabilidade pacífica. Armas de fogo, por exemplo, eram muito raramente encontradas escondidas com os detentos. Ao longo de 12 anos até o dia do massacre, apenas cinco haviam sido encontradas, segundo o livro "História de um Massacre: casa de detenção de São Paulo", ou seja 0,4 armas por ano eram apreendidas no interior do presídio.
O Pavilhão 9
Um dos pavilhões mais lotados da Casa de Detenção, o Nove chegava a ter dois mil detentos. Tal como o pavilhão Oito, ele tinha celas consideradas grandes, com quase cem metros de comprimento.
"No [Pavilhão] Nove, existem duas celas de triagem com um número de prisioneiros que pode chegar a trinta, dormindo no chão, espremidos, tomando cuidado para não encostar o rosto nos pés do companheiro", descreve Dráuzio Varella em sua obra.
Esse era um dos pavilhões mais violentos do Carandiru. O motivo residia na quantidade de gente nova por lá. O pessoal de triagem vivia passando por ali e, assim, sem ter acesso às regras de convívio e ainda embebidos nas emoções dos desafetos e afetos extra-muros da prisão, era comum que, ao se deparar com um novato por quem nutria desgosto nas ruas, a porrada comesse — e por porrada estamos falando de facada, paulada etc. É por isso que muitas vezes alguns presos mais experientes eram mantidos no convívio do Nove, a fim de controlar minimamente as tensões dos novatos.
O dia
Dia 2 de Outubro de 1992.
Pela manhã, no pátio do presídio, um jogo de futebol que começara amistoso terminou em um conflito que enveredou pra agressão física após o jogo. Barba e Coelho, dois detentos de times rivais, entraram em embate por questões relacionadas ao uso do varal. Coelho o desaforou durante a pelada dos presos, o que, mais tarde, dentro do pavilhão, foi retribuído por Barba com um soco no meio da face do outro. A agressão tréplica veio com uma paulada de Coelho.
Os agentes prontamente interviram, socorrendo Barba e espancando Coelho e o retirando do recinto. Segundo descrito no Relatório elaborado pela Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru:
"O portão que dá acesso ao segundo pavimento foi trancado pelos guardas, fato que causa a reação dos presos, que quebram a fechadura e iniciam o tumulto. Um amigo de 'Barba' considera a agressão covarde e desafia um comparsa de 'Coelho' para brigar. Um agente penitenciário tenta apartar, mas é ameaçado por outros detentos, que querem que a briga continue. O tumulto cresce. O sentinela PM Leal vê o agente penitenciário no meio do grupo e, mirando o fuzil, ordena que soltem o carcereiro. Um outro agente penitenciário grita para que o alarme seja acionado. O alarme soa. Pelo telefone da guarita, o PM Leal comunica o Batalhão da Guarda alertando que há rebelião no Pavilhão 9. Às 13h50, carcereiros tentam sem sucesso conter as brigas entre os presidiários. Não há possibilidade de fugas dos detentos, não há reféns e tão pouco reivindicações por parte dos presos. Às 14h00, os carcereiros haviam abandonado o local...
"O Coronel Ubiratan Guimarães, Comandante do Policiamento Metropolitano tomou conhecimento dos acontecimentos na Casa de Detenção por meio do rádio do Comando de Policiamento (Copom), que havia sido avisado pelo Dr. Ismael Pedrosa, Diretor da Casa de Detenção. Dirigiu-se ao local e foi informado sobre a situação, pede auxilio ao Comando do Policiamento de Choque de São Paulo, Tenente Coronel PM Luiz Nakaharada, que envia reforço. O Cel. Ubiratan Guimarães se reúne também com os juízes Ivo de Almeida e Fernando Antônio Torres Garcia para avaliar a situação. Cel. Ubiratan Guimarães conversa por telefone com o então Secretário de Segurança Pública, Dr. Pedro Franco Campos, que entra em contato com o Governador do Estado de São Paulo, Luis Antônio Fleury Filho. Às 14h51, avalia-se que a situação é grave e é oficializada a passagem do comando da decisão para a Polícia Militar. Autoridades superiores ao Cel. Ubiratan avaliam a necessidade de uma invasão a Casa de Detenção. Às 15h30, a tropa de choque, sob o comando do Cel. Ubiratan, estaciona do lado de fora da muralha. De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, apesar do grande tumulto e de sinais de fogo, não havia perigo de fuga. Com a chegada da Polícia Militar, os presos começaram a jogar estiletes e facas para fora, demonstrando que não resistiriam à invasão. Alguns colocam faixas nas janelas, indicando um pedido de trégua.
"As autoridades reunidas decidem que, antes da invasão do pavilhão 9, o diretor da Casa de Detenção, com um megafone, iria tentar uma última negociação. Entretanto, soldados do Grupo de Ações Táticas Especiais quebram o cadeado e correntes do portão do pavilhão 9, enquanto o Cel Ubiratan se reúne com os comandantes dos1º, 2º e 3º Batalhões do Choque da Polícia Militar. Não houve negociação alguma. As tropas da Polícia Militar afastaram do caminho o Dr. Pedrosa e invadiram o pavilhão 9 sob o comando e instrução do Cel Ubiratan Guimarães, às 16h30, ação que seguiu até às 18h30. Trezentos e vinte cinco policiais militares ingressaram no pavilhão 9 sem as respectivas insígnias e crachás de identificação.
"Os PMs dispararam contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente a cabeça e o tórax. Na operação também foram usados cachorros para atacar os detentos feridos. Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares."
O livro História de um Massacre explica que a matança pode ser dividida em três partes: primeiro com a invasão, quando se matou a maioria das pessoas nas celas; depois quando as pessoas foram retiradas para o pátio; e por fim quando os presos sobreviventes foram obrigados a carregar os corpos para fora da cela, sendo que alguns foram mortos durante a função. "Cada preso recebeu em médio 4,04 disparos e houve alguns que receberam 16, 13, 9, 8, 7, 6 ou 5 tiros", descrevem os autores.
Ao moverem os cadáveres para fora das celas, os policiais conseguiram adulterar a cena do crime e dificultar a investigação contra eles.
A chacina em si só foi divulgada mais de 24h depois, uma vez que ocorreu nas vésperas das eleições municipais e corria risco de afetar o desempenho da direita, que visava retirar o PT da prefeitura da capital de São Paulo.
Consequência
O massacre do Carandiru, em última instância, terminou sem punições para os agentes de estado que cometeram a chacina. O coronel Ubiratan chegou a ser condenado em primeira instância: 632 anos de pena. O julgamento mais longo do judiciário de SP até então, com a maior pena da história da justiça brasileira até aquele momento. Ainda em 2001, ele, que já era deputado estadual pelo PTB, entrou com recursou, o qual respondeu em liberdade.
Segundo reportagem do UOL: "Beneficiado pelo foro privilegiado da condição de parlamentar, em 2006 -- ano em que preparava a reeleição --acabou sendo absolvido pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que entendeu que o policial agiu, durante a rebelião, no “estrito cumprimento do dever legal”. Meses depois, em 9 setembro de 2006, o PM foi assassinado a tiros em seu apartamento nos Jardins, área nobre de São Paulo. "
Referências bibliográficas
- DE LIMA VEDOVELLO, Camila. Quem sangra na fábrica de cadáveres?: as chacinas em São Paulo e RMSP e a Chacina da Torcida Organizada Pavilhão Nove. 2022. Tese de Doutorado. [sn].
- MACHADO, Marcello Lavenère. História de um massacre: Casa de Detenção de São Paulo. Ordem dos Advogados do Brasil, 1993.
- ONODERA, Iwi Mina et al. Estado e violência: um estudo sobre o massacre do Carandiru. Dissertação, Mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. Link, 2007.
- Relatório elaborado pela Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru.
- Relatório n 34/00 Carandiru - Comissão Interamericana de Direitos Humanos - 2000.
- SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia: Com novo pós-escrito. Editora Companhia das Letras, 2015.
- VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. Editora Companhia das Letras, 2005.
- Carandiru, que faria cem anos, foi de prisão modelo a palco de massacre
- Após ser condenado a 623 anos por massacre, coronel Ubiratan foi absolvido e assassinado em 2006