Outra economia é possível! (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Janete Nazareth[Notas 1].

Ao longo desses 20 anos de trabalho, sempre tivemos o foco  no empoderamento feminino, entendendo a emancipação econômica como algo primordial para romper com as correntes da violência. A partir daí, acreditamos que tudo é pelo direito à vida. No  meio dessa caminhada tinha uma pandemia, sem manual de sobrevivência ou sem vacina. Ao nosso redor, morte e incerteza, pessoas  sem trabalho e tantas outras sem comida.

Foi automático pensar no que poderia garantir a sobrevivência de nosso coletivo. Dividimos o pão naturalmente, num processo silencioso, fraterno. Logo estávamos distribuindo tudo o que ganhávamos, pensando a questão da segurança alimentar de forma coletiva,  com o risco iminente do COVID-19 ao redor. Em cada passo, em cada casa que chegávamos, nós deixamos um pouco de alimento, mas também um pouco de nós. Buscamos atender o maior número de pessoas possível, defendendo em nossas ações a segurança alimentar como um debate indispensável nesses dois últimos anos.

Mulheres de máscara sentadas em volta de uma mesa.
Coletivo Mulheres do Salgueiro tem focado em ações para fortalecer a emancipação econômica de mulheres para romper ciclos de violência. Foto mulheresdosalgueiro

Em meio a tantas idas e vindas, participamos nesse tempo de movimentos e debates para fortalecer a nossa resistência no território do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Lugar onde o discurso de mulher preta ganhou  um novo sentido, o  direito à vida com foco na comida na mesa. O “meu“ configurado em nosso; pelo nosso direito de ser sujeitos de direitos, de  criar relações humanizadas, com afeto e empatia.

No primeiro ano da pandemia, quando tudo precisava parar, nós estávamos em um movimento inacreditável pelo direito à vida, de uma forma diferente. Fomos para a máquina de costura e fizemos máscaras para doar e vender. Com o apoio dos parceiros, preparamos e distribuímos kits de higiene, contendo também sabão de reaproveitamento de óleo usado. Isso tudo, com uma costura emocional, num momento de tanto cuidado e necessidade de afeto.

Mercado Solidário: Quilos necessários

Em 2021, surgiu a Chamada Pública para Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro da Fiocruz. Daí pensamos em fortalecer e ampliar nossas ações de combate ao COVID-19 e, ao mesmo tempo, buscar novas relações humanas em meio ao caos pandêmico. Nascia assim, o projeto Mercado Solidário: Quilos necessários, com algumas particularidades. A primeira era atender realmente quem estivesse em situação de vulnerabilidade social. Para isso criamos uma rede de apoio com a participação de importantes atores, da assistência e saúde do território, como o CRAS Itaoca e Salgueiro; o PSF, articulando o mapeamento de 200 famílias. Definimos coletivamente que os perfis dos atendimentos seriam: acamados; idosos com nenhuma e/ou pouca mobilidade; mulheres em situação de violência doméstica; gestantes; desempregados e mães solos. Para algumas famílias fizemos as entregas em domicílio, devido a ausência e/ ou dificuldade de mobilidade das pessoas.

Informação e prevenção

Sabemos que informar a população periférica sobre os riscos à saúde apresentados pela COVID-19 e combater as fake news é importante, bem como a difusão de medidas de proteção e distribuição de alimentos. Portanto, em parceria com a UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente com o grupo de pesquisa LIQUENS – Grupo de Leituras e Investigações sobre  Questões de Ensino de Ciências e Sociedade, elaboramos e distribuímos kits informativos sobre COVID-19. Neles explicamos de forma simples os usos e diluições de água sanitária para a higienização dos ambientes e, também, a utilização de máscaras e a higienização das mãos. Desenvolvemos com essa parceria, materiais de divulgação de informação científica em linguagem simples que dialoguem com a comunidade sobre os temas: vacinação, contaminação e modos de prevenção. Informações precisas e confiáveis permitem que as pessoas tomem decisões conscientes.

Salgueiro Salva, a primeira moeda social de São Gonçalo

No item de aquisição dos alimentos, também queríamos que nossas ações fossem  na contramão do sistema capitalista. Nada de comprar dos grandes empresários, que vão aos bancos e conseguem empréstimos, que ganham com o trabalho alheio. Nosso compromisso era negociar preços dentro do território, fazer o dinheiro circular aqui e, assim, fortalecer a economia local. Lançamos a primeira moeda social de São Gonçalo: Salgueiro Salva. Cada família recebeu uma, garantindo a aquisição de alimentos e suprindo uma necessidade básica por comida.

Nosso desejo é que o projeto tenha de fato a perspectiva de produção e consumo responsáveis. Combater o abismo da desigualdade social,  promovendo um modelo de organização econômica periférica e criando sinergia entre o comércio local, os produtores da agricultura familiar e a população do Complexo do Salgueiro. Uma outra possibilidade de relação, de consumo, de ser sujeito de direito, dentro de um território urbano. Assim, conseguimos articular com o  comércio  da região, argumentando com o preço,  a qualidade dos produtos e a solidariedade. Não foi nada fácil trazer essa nova lógica para a pauta do nosso território.

Uma possibilidade incrível foi a parceria com a Associação da Agricultura Familiar de São Gonçalo, do Assentamento da Fazenda Engenho Novo/São Gonçalo.  Fizemos compras de alimentos agroecológicos, aproximadamente 775 kg de alimentos cada com itens como repolho, abóbora, pepino, inhame, berinjela, quiabo, couve, batata doce, limão, banana e ovos da roça. Com essas boas práticas, estamos fortalecendo a economia local e os produtores da agricultura familiar do município.

Crianças em uma horta em meio a plantas e bananeiras, com uma senhora acompanhando-as e outra senhora apontando para uma planta e explicando algo.
Fortalecimento da economia local e produção agroecológica andando de mãos dadas no Complexo do Salgueiro. Foto @mulheresdosalgueiro.

A nossa moeda social, Salgueiro Salva, não tem a intenção de substituir o Real, mas estimular a circulação do dinheiro dentro da comunidade, ou seja, a riqueza gerada em uma comunidade específica. Infelizmente não possuímos um banco comunitário para fortalecer essa ação, mas acreditamos que um passo importante foi dado para o desenvolvimento local.

Sonhamos em poder expandir a moeda social para outras comunidades, sensibilizando as pessoas acerca de novas relações humanas e com a natureza, a partir de uma alimentação saudável, sem agrotóxicos, cultivada com o manuseio harmônico entre o homem e a natureza, onde o tempo tem seu papel importante no desenvolvimento do alimento,  combatendo à pobreza e à desigualdade social. Queremos construir uma sociedade mais responsável, harmônica e solidária, com o desenvolvimento sustentável vivenciado também em um território de favela urbano.

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Notas

  1. Janete Nazareth é pedagoga, mulher preta, ativista dos direitos humanos, militante do movimento de economia solidária e coordenadora do Coletivo Mulheres do Salgueiro.