Sobre discursos e práticas da brutalidade policial: um ensaio interseccional e etnográfico (resenha)
Autora: Thaís Cruz
Referência
Breve Contextualização
O ensaio etnográfico faz parte do Dossiê Temático “Os Homens Negros no Brasil: questões e perspectivas sobre as relações entre raça e gênero masculino” da Revista ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros/as), publicado na edição de Setembro-Novembro de 2019. O texto é uma importante contribuição e reflexão para compreender os discursos, práticas, símbolos e uma certa representação do eu policial.
Com autoria de Flávia Medeiros, Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF) e professora substituta do Departamento de Segurança Pública (DSP) do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC/UFF). Medeiros também é pesquisadora do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC/PROPPi/UFF) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP).Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Teoria Antropológica e Antropologia do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: burocracias, conflitos, polícia, segurança pública e mortos.
Resumo dos principais argumentos
O ensaio está subdivido em sete seções, as quais são, respectivamente: “De pai para filho”, “Desigualdade jurídica e violência policial”, “Os outros”, “Armas”, “Coisas de polícia”, “Risco e honra” e por fim a “Brutalidade policial”. Cada seção é mediada pela experiência da autora nas visitas à Divisão de Homicídios (DH) e entrevistas com a equipe de policiais do Grupo de Local de Crime (GELC). Com o objetivo de discutir sobre as formas pelas quais os agentes estatais atuam normalizando a violência.
Como primeiro ponto de análise tem-se que a experiência pessoal atravessa a experiência policial, sugerindo um dos processos de normalização da violência e reforçando o imaginário masculino como único reprodutor legítimo da violência. Com a fala de um dos policiais ao mencionar que seu filho de seis anos já estava fazendo treinamento de tiro, enquanto sua filha mais velha, de dezenove anos, nunca tinha ido ao stand de tiro, isso porque, segundo o policial, ela não teria a mesma “vocação” que o filho. Dessa forma, a autora sugere que o uso da arma reforça as relações de poder e papéis sociais hierárquicos, baseados em valores de masculinidades e virilidade. Além disso, a noção “de pai para filho” enuncia uma interpretação da herança de moralidades e apreciação por conhecimentos técnicos e práticos sobre as armas. Em seguida tem-se a leitura dos instrumentos bélicos como demarcação de fronteiras entre os seus pares, aqueles que “compartilhava[m] de uma ética comum”. Essa ética comum diz respeito a uma série de valores, moralidades, aparato técnico-burocrático e práticas como o uso do monopólio da força física como imposição de regras. Destarte, tornam-se representantes legítimos da violência e “empreendedores morais” (BECKER, 2008 apud MEDEIROS, 2019), os quais ditam as normas de acordo com seus interesses e crenças, operando, sobretudo, na reprodução do racismo estrutural e na construção do racismo institucional. Nesse contexto, promove uma desigualdade jurídica, a qual, por sua vez, garante a reprodução da desigualdade racial e social evidentes nas práticas, discursos e dados sobre segurança pública e saúde. Como consequência, há a contínua e progressiva vitimização de jovens negros periféricos, os quais são categorizados como “os outros”. Para exemplificar a autora ressalta o perfil das vítimas de homicídio no país, o qual é formado por jovens negros e pobres (73%). Esse mesmo perfil também está presente no quadro de testemunhas, suspeitos e de acusados de crimes. Medeiros identificou que a relação entre os policiais e esses “outros” reproduziam, de forma consciente ou não, o racismo estrutural. De acordo com a autora, a categoria “outro” por um lado constrói a imagem de certos indivíduos baseado em marcadores sociais da “(in)diferença” e por outro, reforça o reconhecimento de posições estruturais e desiguais. Diante disso, certos sujeitos são posicionados em níveis mais baixos da hierarquia social e estruturalmente vistos como “subalternos” (SPIVAK, 1998 apud MEDEIROS, 2019), enquanto os agentes estatais se configuram como uma “elite”.
A autora ressalta que há “coisas de polícia” que são concedidas pelo Estado para dar legitimidade a essa “elite”. Destaca-se a “carteira funcional” (documento de identificação do “status social de policial”), distintivo e arma, que conjugados garantem o “status social do policial”. Medeiros também aponta os símbolos da corporação, que não devem ser “simplisticamente interpretados como uma reprodução fiel da ideologia policial”, mas como uma “iconografia, orgulhosamente disposta nas roupas dos oficiais, apresenta algumas pistas de como eles veem suas vidas em relação ao seu público” (FASSIN, 2013: 8 apud MEDEIROS, 2019). Estes símbolos ficam distribuídos em seus uniformes, dentro e fora das instalações, nas viaturas e nos documentos oficiais. Convém ressaltar um importante significado do brasão da Polícia Civil do Rio de Janeiro, entre as duas tábuas brancas se encontra um fasces lictoris de ouro, é uma espécie de machado, o qual simboliza a justiça e o poder sobre a vida e a morte. Toda essa materialidade e bens simbólicos fazem parte da manutenção de um status social e de valores de masculinidades, mas também como forma de diferenciação dos demais. Segundo a autora, os policiais consideram que as diferenças entre eles e os outros vai além do horário de serviço, se estende por todo o dia e por todos os lugares. Nesse contexto, os agentes julgam como perigoso “viver uma vida comum”, sendo assim, leem algumas situações e locais como “arriscados” e “inseguros”. Essa constante sensação de “risco” indica também a interlocução entre os demais sujeitos, especialmente os “clientes” (os bandidos). Para Medeiros, o medo e a incerteza na/da Polícia operam reforçando a solidariedade grupal, protegendo o segredo profissional e justifica a reciprocidade. Apesar dessas tensões, a autora salienta que os policiais demonstravam forte coesão interna, o que ela chama de “política da polícia”. Além disso, como parte do Estado, a polícia exerce a violência organizada.
Dessa forma, cabe ressaltar a noção polissêmica de violência policial. De acordo com Medeiros, a ação violenta é a finalidade social, política e histórica da polícia, sobretudo contra corpos e territórios negros e periféricos. Isso porque, embora não seja explicitada, há uma filtragem racial como forma de mobilização da violência. A autora usa o argumento do "colorblindness" de Kimberly Crenshaw, para retratar como a violência do estado age de maneira racializada, o que acaba produzindo um padrão de comportamento desigual, indignificando e desrespeitando os direitos desses indivíduos que são criminalizados e mortos pelos agentes estatais. A autora interpreta essa ação da polícia como forma de reafirmar os valores de masculinidade e laços de honra, para reduzir os riscos e demarcar fronteiras simbólicas e morais entre aqueles considerados os “outros”.
Apreciação crítica
O ensaio, sem dúvidas, é um importante referencial para refletir sobre o padrão de comportamento dos agentes estatais, o qual tem como base valores de masculinidade, violência e racismo estrutural e institucionalizado. Isso porque a etnografia permite o enriquecimento de uma análise sobre a descrição e o reconhecimento de práticas, discursos, símbolos, categorizações e posições estruturais na atuação e interlocução nas/das polícias.
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