Cleonice Dias, a aprendiz da Cidade de Deus (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Gabriel Nunes.
Cleonice e Nísia no lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na Fiocruz, em 2019.
Cleonice e Nísia no lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na Fiocruz, em 2019.

Entrevista

Transcrição

Apresentação

Eu sou Cleonice, da Cidade de Deus, hoje eu não moro lá, mas eu continuo vinculada. Hoje eu considero uma vinculação de forma secundária, porque eu tenho uma relação com algumas instituições e faço parte de outras, então já tô na fase do conselho. Mas eu já tive ativa e sou uma cidadã do mundo, avó, agora com 70 anos, e pedagoga e professora com muito orgulho e militante dos movimentos sociais. Tive meu curso de aperfeiçoamento, aprendizado e especialização na Cidade de Deus, então tudo o que eu sei e o meu entendimento de todos os conceitos, hoje, passam por um aprendizado coletivo na Cidade de Deus. Eu não sou sozinha. Eu sou um monte de gente que juntou para trabalhar junto e compreender a realidade, e estudar junto. Se tem uma característica interessante da minha vivência na Cidade de Deus, é que eu participei de vários grupos. Nunca fui liderança, a gente não aceita muito essa coisa de liderança. Participei, mas a gente estudava. A gente procurava entender o que a gente estava fazendo dentro de uma situação maior, dentro de uma realidade local, nacional e internacional. Então a gente sempre, tanto na rádio comunitária quanto no movimento associativo, como na proposta de desenvolvimento comunitário, agência de desenvolvimento comunitário, tudo passava por estudar refletindo a nossa prática numa conjuntura maior. Pronto, acho que eu fiz a minha apresentação do meu método de aprendizagem.

O amor e a chegada na Cidade de Deus

O amor veio primeiro [que a Cidade de Deus], porque eu sou mineira de São João del Rei e meu marido, quando eu o conheci, ele estava em São João del Rei fazendo uma revalidação de filosofia porque ele estudava no seminário para ser padre, não pode ordenar por uma questão de saúde, aí lá na faculdade onde estudava, quem deixou de ser padre fazia revalidação de filosofia lá em São João del Rei. E eu o encontrei lá, fazendo um curso de férias encontrei com ele, e, assim, foi amor à primeira vista, porque ele morava na Cidade de Deus, veio da Praia do Pinto, e eu, fruto do movimento da Teologia da Libertação, tinha a opção preferencial pelos pobres. Eu era pobre, sabe, mas tinha essa coisa da Teologia da Libertação. Então quando eu cheguei na Cidade de Deus eu conheci um ano de namoro por cartas, visita uma vez por mês, quando eu fui eu tive que esconder da minha família que morava lá.  E eu encontrei a Cidade de Deus, em 1975, dividida, conforme o filme Cidade de Deus mostra, dividida em quatro áreas, com quatro gerências diferentes do tráfico, e a proibição de circular por toda a comunidade, e meu primeiro contato de organização foi na Igreja Católica, a Teologia da Libertação, né, o primeiro vínculo. Mas meu marido, ele era muito bem quisto. Uma palavra antiga, mas era isso que ele era, todo mundo adorava porque o conheceu como seminarista e acompanhou. Ele morava na quadra do pessoal que veio da Praia do Pinto, não é, porque na época ele morava na igreja, lá com o Padre Júlio, então todo mundo gostava dele, todo mundo. E o pessoal chamava ele de Padre Dirceu. Eu ganhei a afetividade que ele tinha como herança e legado, e eu fiquei viúva um ano e três meses depois do casamento. Ele morreu. E o amor que a comunidade, que as pessoas.... Quando eu falo comunidade, o pessoal da igreja, porque até então era o único lugar que eu tava atuando, né, nas Comunidades Eclesiais de Base. Eram os grupos de reflexão onde a gente exercia o ver, julgar e agir, ver, julgar, agir e rever, e a gente ia discutindo as questões da comunidade na ótica da Teologia da Libertação. Os meus vizinhos, que eram da Praia do Pinto, quando meu marido morreu, eles me ofereceram a solidariedade de ajudar a criar meu filho, né[...]

Então, assim, e a minha atuação foi um vexame no início, sabe, porque na igreja, por exemplo, quando a gente discutiu a questão do lixo, eu vim com aquela ideia do interior de Minas Gerais, né. Você faz o.… coloca o lixo no plástico, separa as coisas, e o pessoal, primeira frase que eu falei, o pessoal dava gargalhada, não esqueço. Eles tinham muita liberdade, o pessoal (RISOS) falava muito na cara, eu também não tava acostumada com isso, então eles riam muito e falavam: Aqui não tem coleta, aqui não tem lugar pra colocar, aqui a gente se não colocar na rua fica dentro de casa, vai dar bicho, varejeira, não sei o que. Então os moradores tanto me acolheram na ausência do meu marido, como me ensinaram a realidade, sabe. Então eu não era de muito escutar não, porque eu achava que eu sabia mais. Eu tive que aprender a ficar calada, eu ouvi na marra. Foi a primeira lição que a Cidade de Deis me deu. Você que chegou agora, estrangeira, tem que ouvir primeiro. Não dá pra falar porque você não sabe da nossa realidade. Então foi esse um grande aprendizado. Quando meu marido morreu eu tive que fazer o inventário. Procurei a justiça gratuita e fui fazer o inventário da minha casa, e aí eu descobri que a minha casa não existia. Os moradores da Praia do Pinto foram alocados numa quadra que era pra ter equipamento comunitário. E nesse lugar eles construíram, a toque de caixa, o terreno era do município, a casa era da CEHAB e ninguém era dono de nada. Era tudo no nome de CEHAB. Então eu fui fazer inventário, o inventário está lá até hoje, já tem... eu fiquei viúva em 76. Eu passei a minha casa pra outro morador quando saí de lá, não tem escritura, tá no nome da CEHAB, o terreno é da prefeitura, e essa é uma situação de vulnerabilidade de mais 23 quadras na Cidade de Deus, entendeu. Que não tem e, se tiver, qualquer tipo de remoção as pessoas podem lutar, porque luta, na Cidade de Deus o pessoal é valente, mas se for buscar na justiça um direito é por uso capião, porque o que está na documentação é não receita nosso direito. Então outro aprendizado foi esse. Por causa disso eu consegui convencer os moradores da quadra buscar outras quadras que estavam na mesma situação e buscar o Conselho de Moradores da Cidade de Deus. Aí eu saio do campo da Igreja e vou para o campo do movimento comunitário pra resolver um problema que era de quadra. E assim que começa meu envolvimento nas outras lutas.

A alegria da vida comunitária

Ó, eu fiquei viúva aos 23 anos, né. Fiquei viúva com 23 anos e eu vivi o processo de passagem das gerências independentes do tráfico. A história do tráfico tem uma marca muito importante na identidade da Cidade de Deus, né. A resistência dos moradores e a ingerência do tráfico e a inoperância dos serviços públicos marca a identidade porque eu vivi esse processo das gerências, que tavam divididas e disputavam, pro início da Falange Vermelha, que é antes do Comando Vermelho. A unificação. Então, por exemplo, eu vivi na Cidade de Deus porque tava na igreja e podia circular, porque a igreja, a capoeira, as religiões, podiam circular, mas os moradores, os jovens de um lugar não podiam ir no baile de outro lugar. Não podia, era proibido, e os pais não deixavam. Então eu vivi esse momento, que era um momento de muito medo, né, tinha uma coisa também na Cidade de Deus que fazia muito medo, que eu passei muito medo, né, logo que eu fiquei viúva, que era a tal da Mão Branca, que era uma força de polícia vinculada à Ditadura Militar, não é. E aí o pessoal chamava de mão branca, que matava nas comunidades. Então eu passei por esse medo, passei pela alegria de ter samba na rua, sabe, de sexta feira ficar num bar, junto com outras pessoas, observando o samba, conheci de perto muito traficante que fazia sucesso, bonito, conheci o Valzinho de perto, e tal.  Assim, que tinha essa convivência na comunidade porque nessa época o pessoal que comandava o tráfico era criado na área, todo mundo conhecia a mãe, a família, eles iam no baile, sabe, todo mundo tinha aquela reverência, né. Eu também tava lá. Ia lá, gostava de mocotó (RISOS) gosto dessas coisas, então participava. Tinha teatro na Cidade e participava. Tinha discussão do Movimento Negro com o pessoal do Agbara Dudu, lá de Madureira, que ia fazer show e depois debate político, eu também participava, não é. Então esse início da minha mocidade ainda, mas já viúva, né, então..., mas eu trabalhava na Tijuca, sabe, eu trabalhava no Colégio Marista São José, então era uma realidade de um dualismo muito grande, sabe. Na Cidade de Deus eu vivia, tinha alegria de viver, encontrava com pessoas maravilhosas. Sabe quantos afilhados eu tenho na Cidade de Deus, por causa da religião? Eu tenho 28 afilhados de crisma e de batismo e tenho 16 de casamento, sabe. Então eu tenho muita comadre, muito compadre, porque a minha militância, ela vem de uma convivência assim, de bater papo, de saber das pessoas, sabe, de tomar cafezinho, de ir, de fazer comida boa na minha casa e os vizinhos virem comer. Tinha uma macarronada que eu fazia as vezes, uma vez por mês, que era um negócio assim, era uma mistureba, o pessoal adorava. Os meus vizinhos iam todos para a minha casa (RISOS) pra gente comer junto. Na festa junina a gente fazia festa junina junto, sabe, eu tinha essa vida social.

Lutas

[Eu] entrei na luta por moradia pra resolver uma questão de quadra, passados uns oito meses eu estava na coordenação da luta de habitação do Conselho de Moradores da Cidade de Deus. Passado um ano e uns meses, eu já estava disputando na chapa pra ser vice-presidente e depois fui presidente do Conselho de Moradores, não é, e do Conselho de Moradores pra Zonal da FAMERJ. Aí fui da coordenação da luta por transporte, da luta por educação, saúde, sabe, uma coisa vai levando à outra, e pra FAMERJ, aí participei da luta na FAMERJ da habitação. Mas é tudo misturado, daqui assim, foi misturando, eu fui ampliando minha visão, fui aprendendo ao mesmo tempo que eu percebi que tem uma limitação na luta comunitária. Na época em que eu estava na luta a gente fazia muito denúncia. O forte era fazer a denúncia, o discurso legal era fazer denúncia, aquela coisa toda, e a gente era bom de fazer denúncia na Cidade de Deus, a gente já fez secretário do governo chorar, já passou aperto, prefeito e tal, mas nos grupos de estudo que nós tínhamos, porque tem uma coisa que eu acho importante falar, eu nunca fiz nada sozinha nem aprendi sozinha, mas como eu era viúva minha casa era um centro de reunião, porque as nossas instituições não tinham sede, a sede era onde a gente pudesse reunir. Era na igreja, no posto de saúde, era na rua, né, e a minha casa virou um centro de estudos. Vários temas que nós tínhamos que aprofundar, nós convidávamos alguém de fora, que tinha conhecimento acadêmico, a gente pegava um texto sugerido por nós, porque tinha universitários no nosso meio também, né, e a gente fazia teoria e prática, não é, sendo que a prática, sendo que a prática era o que a gente fazia, a teoria como o mundo estava, como o país estava, quais as correlações que fosse onde a gente estava. A gente tinha uma preocupação de não reproduzir. Então, aí eu descobri o partido político, que a luta comunitária naquela época que era só de denúncia, não era o suficiente para as repostas que a gente precisava, e aí também me filiei ao PT [Partido dos Trabalhadores], na época, mas aí já é em 82, então me filiei em 82 e vivia essa luta, sabe, mãe, dona de casa, a igreja católica, Teologia da Libertação, militante na Cidade de Deus, aí entrou rádio comunitária, também fui da coordenação da equipe do colegiado da coordenação da rádio, fazia programa de rádio, a gente bateu recorde na Cidinha Campos, no Haroldo Barbosa, nós éramos uma rádio muito ouvida, tanto é que a polícia federal foi lá e fechou como que a gente fosse os bandidos mais perigosos. Uma porção de cara com touca ninja, com metralhadora, né, levaram o DJ que tava lá operando na hora que não tinha programação, sabe. Então assim, eu tinha muita experiência em vários níveis de militância, com grupos que tinham também outras tradições, né, porque tem uma coisa forte na Cidade de Deus que eu ficava um pouco fora, até que eu consegui me incluir pela leitura mesmo, que é a questão da negritude, sabe, é muito forte. Eu participei de vários grupos de estudo sobre a questão dos negros, das mulheres negras, da desigualdade, e isto era muito forte. O grupo de teatro Raiz da Liberdade, eu assisti uma peça que eles fizeram que aquilo foi uma punhalada, sabe. Aquilo que a gente discutiu outro dia, no nosso grupo de estudos, sobre branquitude, eu aprendi na marra, na marra, na dor, que mesmo pobre, o fato de ser branca me trazia privilégios mesmo na pobreza. Então assim era esse... eu quero te dizer que tudo o que eu fiz foi aprendizado coletivo, tudo, tudo. Agora eu tinha uma facilidade de aprender, de articular o conhecimento, comecei a ser convidada para ir pra fora, pra falar. Dentro da igreja passei de ser participante pra ser de grupo de formação. Passei a andar pelo Rio de Janeiro trabalhando com mulheres, trabalhando com trabalhadores, trabalhando com o pessoal que tava preparando a Pastoral da Criança, sabe, e o tema que eu trabalhava sempre era fé e política. Mas, por exemplo, vou te falar, com o pessoal da Pastoral da Barra da Tijuca, Pastoral Operária e a Pastoral da Cidade de Deus, trabalhei muitos anos visitando as churrascarias na Barra da Tijuca, que traziam jovens do Rio Grande do Sul, que viviam como escravos nos alojamentos. A gente invadia os alojamentos e discutia com eles todo direito, e na construção civil, na Barra da Tijuca, a gente invadia à noite, entrava escondido, enfrentava vigia. Ia lá no alojamento mostrar como eles tavam sendo explorados e estabeleceu um polo, né. E a gente fazia contato com as famílias que estavam no Rio Grande do Sul e o pessoal da construção civil, no Nordeste. Então, sabe, quem tava na Pastoral Operária na Cidade de Deus era um grupo de pessoas. Na Barra da Tijuca eram professores da PUC, sabe, então assim, era tudo junto e misturado. (RISOS) Era multidisciplinar, Inter setorial. A gente discutia também, tem uma marca...na Cidade de Deus, a gente não se articulava assim, pra fora, politicamente, era muito lá dentro, a Pastoral é que tinha essa questão da igreja ser universal, não é a Igreja Universal do Reino de Deus, mas o mundo, né, que é o espaço da igreja, então a gente saía para fora, mas politicamente a gente ficava mais fechado. Não sei se isto fez com que a gente contribuísse para o isolamento da Cidade de Deus, sabe, porque ela é um gueto até hoje diante da Barra, Freguesia, Pechincha, Tanque, Barra da Tijuca, Recreio. A gente viu toda essa área se desenvolver e a Cidade de Deus se transformou num conjunto habitacional para uma refavela. E talvez, nós nunca fizemos muita articulação pra fora. Grupo de teatro ia pra fora, passava o diabo, mas não trazia essa articulação pra um debate mais amplo, pra o que hoje se acredita, na importância da rede, das articulações, das teias, onde você discute com outras comunidades. Por outro lado, nós fomos pra vários lugares, no país e no mundo, falar da nossa experiência, entendeu, e eu fui uma das pessoas que era escolhida pra ir. Então fui pro México, fui pro Canadá, fui pra Guatemala, fui pra várias experiências internacionais levando o que a gente pensava do mundo. Embora a gente ficasse no gueto, a nossa luta era articulada com o que a gente achava que deveria transformar no mundo para que a gente não fosse tão pobre.