Observatório Cidade Integrada - bairro do Jacarezinho (relatório)
O presente relatório apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou avaliar o Programa Cidade Integrada no bairro do Jacarezinho, com base na percepção e experiências dos moradores. O estudo foi realizado pelo conjunto de organizações parceiras que formaram o Observatório do Cidade Integrada, visando ao monitoramento independente do Cidade Integrada a partir da sociedade civil. Como será visto, tal monitoramento se fez necessário em virtude do grande volume de denúncias de violações de direitos humanos praticados por policiais militares que ocuparam o território para a implementação do programa.
Autoria: Observatório do Cidade Integrada.
Apresentação
O Cidade Integrada foi anunciado publicamente no dia 22 de janeiro de 2022, quando o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Claudio Castro, informou à imprensa que o bairro do Jacarezinho, zona norte da capital do estado, e a favela da Muzema, na zona Oeste da cidade, seriam contemplados com o programa. Ambos os territórios já se encontravam ocupados pela Polícia Militar desde o dia 19 de janeiro, data do Decreto nº 47928, por meio do qual o Governo do Estado instituiu o Programa Cidade Integrada. No entanto, a população local não fora consultada ou tampouco informada a respeito, de modo que as lideranças comunitárias tomaram ciência da existência do Cidade Integrada e dos projetos previstos para o território somente após divulgação pela imprensa.
O decreto que instituiu o programa fazia menção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) e enfatizava necessidade de elaborar estudos e coordenar ações em áreas de moradia de baixa renda, a fim de melhorar a qualidade de vida da população. O decreto discorreu sobre a importância de realizar investimentos em mobilidade urbana, habitação, construção e reforma de equipamentos públicos, gestão ambiental e políticas de promoção social para famílias em situação de vulnerabilidade. Constava, contudo, no decreto, que tudo isso seria realizado “sem aumento de despesa”. Assim, o Cidade Integrada foi instituído como um programa sem orçamento próprio, que consistia basicamente em retirar investimentos previstos para outros territórios e “concentrar a gestão dos benefícios, ações e projetos” em duas áreas específicas. Todos os projetos previstos para o Cidade Integrada já existiam anteriormente ao programa, entretanto, a proposta seria obrigar diversas secretárias de Estado a deslocarem seus recursos para as áreas escolhidas.
Divergindo bastante do que consta no decreto, o Cidade Integrada teve como seu principal foco a ocupação de favelas pela Polícia Militar, acionando um repertório de justificativas semelhante ao das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), isto é, o argumento de “retomada” pelo Estado de territórios até então controlados por grupos criminais armados, ligados a facções do tráfico de drogas e/ou milícias. Desde o seu anúncio inicial, o Cidade Integrada foi comparado ao programa das UPPs e houve inclusive expectativas de que o Cidade Integrada seria expandido para outros territórios como foram as UPPs, que chegaram a ser implementadas em mais de 40 favelas. No entanto, o Cidade Integrada revelou-se uma iniciativa de pequena escala, restrita a dois territórios pilotos e sem orçamento próprio, diferindo bastante das UPPs que contaram com volumosos investimentos públicos e privados disponíveis num período caracterizado pelo crescimento econômico do Brasil e de preparativos de segurança para a recepção da Copa do Mundo da FIFA (2014) e Jogos Olímpicos (2016).
Em seus primeiros anos, as UPPs dividiram as opiniões dos moradores e especialistas entre aqueles que ressaltavam a diminuição das mortes violentas, sobretudo as cometidas por policiais, nos territórios ocupados, e aqueles que criticavam as arbitrariedades praticadas pelas forças ocupantes contra a população local. Houve, contudo, consenso a respeito de, com o passar de poucos anos, os arranjos de poder locais terem se estabilizado por meio da negociação de acordos entre policiais e traficantes de drogas, que passaram a dividir o controle sobre o território das favelas. Diferentemente das UPPs, o Cidade Integrada não encontrou apoio entre especialistas no tema e, como será visto, tampouco entre os moradores do bairro. Não apenas se optou por reeditar uma experiência fracassada, como por fazê-lo de maneira precária.
A escolha dos territórios contemplados pelo Cidade Integrada não foi justificada com base em algum critério técnico, mas apenas como resposta midiática às tragédias ocorridas nessas favelas: a chacina policial do Jacarezinho em maio de 2021 e o desabamento em abril de 2019 de prédios construídos irregularmente na Muzema. A chacina do Jacarezinho, ocorrida no dia 6 de maio de 2021, consistiu na morte de 28 pessoas durante uma operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ). Esta foi a operação policial mais letal da história democrática do estado. Segundo relatos dos moradores, muitas dessas vítimas foram sumariamente executadas por policiais e seus corpos arrastados até as viaturas, deixando poças e rastros de sangue e vísceras nas ruas do Jacarezinho. Moradores vivenciaram experiências de terror dentro de suas próprias casas, invadidas por policiais em busca de suspeitos e com as paredes perfuradas por projéteis de fuzil.
Esta operação ocorreu durante a vigência de uma liminar do Supremo Tribunal Federal que restringiu as operações policiais a situações absolutamente excepcionais, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635 – a ADPF 635, popularmente conhecida como “ADPF das favelas”. Ciente da desobediência a uma decisão da mais alta corte do país, a polícia nomeou essa ação como “operação exceptis” – “exceção” em latim. Esta operação, contudo, não foi um fato isolado e sim um episódio emblemático do crescente descumprimento da decisão do STF e da escolha por perpetuar um modelo de política de segurança pública centrado no extermínio sistemático de jovens negros pobres e favelados. Tanto o Governador do Estado quanto o Presidente da República manifestaram publicamente o seu apoio à ação dos policiais, mesmo antes que as circunstâncias das 28 mortes fossem investigadas e diante de tantos indícios de abuso por parte da polícia.
A repercussão da chacina na imprensa e a comoção internacional gerada compeliram o Governo do Estado a oferecer alguma resposta à sociedade. Face à recusa do governo em punir os responsáveis pelo massacre, oferecer reparações aos familiares das vítimas e buscar ampliar os controles democráticos sobre a atividade policial, a ocupação do Jacarezinho pela Polícia Militar foi a resposta escolhida pelo governo. Como será visto, boa parte das ações anunciadas para o bairro do Jacarezinho não chegaram sequer a começar e algumas das ações iniciadas foram interrompidas.
A maioria dos moradores sequer tomou conhecimento de novos serviços oferecidos pelo Estado à população do bairro em razão do Cidade Integrada, mas a presença de policiais circulando pela comunidade impactou de sobremaneira as suas rotinas. Desde os primeiros dias de implantação do Cidade Integrada, foram muitas as denúncias de abuso da força por policiais contra os moradores recebidas tanto pela Associação de Moradores, quanto pelas organizações da sociedade civil que atuam no bairro do Jacarezinho.
Diante do súbito aumento das queixas de violência policial encaminhadas ao LabJaca e ao Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), essas entidades solicitaram a ajuda de organizações e coletivos parceiros, com os quais formaram um Observatório do Cidade Integrada para monitorar as violações de direitos humanos ocorridas no bairro do Jacarezinho. Ressalte-se aqui que não foi obtido acesso com segurança ao território da Muzema, de modo que o Observatório do Cidade Integrada se restringe, portanto, ao bairro do Jacarezinho. Dentre as atividades do Observatório, destacou-se a realização de uma pesquisa junto aos moradores do bairro, a fim de coletar as suas experiências e opiniões sobre o Cidade Integrada, colaborando assim com o trabalho de avaliação do programa. O presente relatório é, portanto, resultado de um esforço conjunto de diferentes organizações para levantar, produzir e analisar dados quantitativos e qualitativos, realizando assim um balanço da percepção e experiências dos moradores sobre os primeiros 5 meses do programa Cidade Integrada no bairro do Jacarezinho.
Avaliação do Cidade Integrada: o que dizem os moradores?
Quando considerada a opinião dos moradores do bairro do Jacarezinho sobre o Cidade Integrada, surpreende o alto índice de reprovação ao programa. Como pode ser visto no gráfico abaixo, a maioria dos entrevistados (62%) gostaria que o Cidade Integrada acabasse e 19% querem que o programa seja melhorado. Apenas 1% declarou-se satisfeito com o Cidade Integrada tal como se encontra.
Dentre as críticas dos moradores ao Cidade Integrada destacaram-se as violações praticadas por policiais contra os moradores e as frequentes perseguições a suspeitos que, não raro, resultavam em disparos de arma de fogo efetuados por policiais nas ruas das favelas. Os comerciantes e trabalhadores do comércio relataram que esses incidentes teriam sido responsáveis por uma queda por eles estimada como da ordem de 70% no faturamento de seus comércios desde o início da ocupação pela Polícia Militar em janeiro de 2022. O bairro do Jacarezinho é um importante centro comercial que atende bairros vizinhos e, segundo os comerciantes, os clientes de fora do Jacarezinho não estariam mais vindo fazer compras no local, pois a presença de policiais no território teria intensificado a sensação de insegurança. Não foi possível levantar dados de balanço das empresas que corroborassem as alegações dos comerciantes, mas foi possível confirmar que há percepção de maior insegurança.
Quando perguntados sobre se sentirem ou não mais seguros com a presença de policiais na comunidade, apenas 10% dos entrevistados responderam que se sentiam mais seguros e 69% responderam que se sentiam mais inseguros. Temos, portanto, que uma política de Estado que se propunha a oferecer segurança à população do bairro teve o efeito contrário de contribuir para o aumento da sensação de segurança entre os moradores. Abaixo o gráfico com a distribuição das respostas a esta pergunta:
Um dos impactos dessa sensação de insegurança foi a percepção de que as atividades de lazer na comunidade foram prejudicadas. A maioria dos entrevistados (73%) compartilha dessa percepção e muitas foram as atividades consideradas afetadas, como festas nas ruas, festas dentro de casa, frequentar bares, crianças brincando nas ruas, conversas com amigos na rua, a ida e a volta de eventos, o comércio local e o futebol.
As frequentes menções à ocorrência cotidiana de “correrias” – isto é, das situações em que a suspeitos corriam da polícia que às vezes atirava para conter sua fuga – levaram os moradores a aumentar as suas cautelas. Segundo uma moradora entrevistada: “Antes minhas crianças brincavam na rua ou na pracinha. Agora só ficam dentro de casa, porque quando a polícia passa dando tiro é um desespero e nem sempre a gente chega na hora ou tem um vizinho para colocar ele para dentro de casa”. É assustadora a percepção partilhada por metade dos moradores de que a presença da polícia teria prejudicado o lazer das crianças, que não poderiam mais brincar na rua como antes. Em vista da gravidade dos impactos da violência sobre o desenvolvimento e saúde da criança, abordamos esse tema e maiores detalhes em nota anexa ao relatório.
Além de se ver em meio a tiroteios, os moradores criticaram também posturas autoritárias por parte da polícia. Um entrevistado relatou que: “Antes eu parava no bar para tomar uma cerveja no fim de semana. Agora nem em casa a gente pode tomar cerveja, porque se o som estiver alto eles acham que é festa e proíbem.” Muitos moradores relataram que o projeto não trouxe melhorias para o Jacarezinho, porque: “Nada de concreto veio para cá, tudo o que teve de melhoria foi para Manguinhos, como o CEFET por exemplo. Aqui nem tem colégio para todos. No papel o projeto é até bom, mas não se realiza.” Notou-se uma disseminada percepção de que o Cidade Integrada se limitava a uma ocupação do território pela Polícia Militar e de que nada além disso seria oferecido pelo Estado à comunidade. Essa percepção se evidencia também no fato de a maioria dos moradores não ter tomado ciência de serviços, projetos sociais ou equipamentos novos oferecidos pelo Estado ao bairro: 58% não sabiam de nenhum programa ou serviço novo oferecido, não conseguindo desta maneira serem beneficiados.
O projeto apresentado para o Cidade Integrada previa a implementação de políticas públicas visando à formação, educação, assistência social, ampliação de ruas, drenagem de rios, entre outros tantos benefícios para os moradores das comunidades abrangidas pelo programa, promovendo assim uma suposta “integração” com a cidade. É bem verdade que algumas ações chegaram a ocorrer, mas a grande maioria do que fora previsto não saiu do papel.
O decreto nº 47.928 de 18 de Janeiro de 2022, é onde está disposto todo o projeto, a sua finalidade, forma de implementação, e os meios a serem utilizados para colocar em prática todas as políticas públicas visando à promoção da integração social. Além das diretrizes focadas na segurança pública, consta em seu artigo 4, os seguintes programas de integração social:
• SuperaRio - auxílio emergencial do estado do Rio de Janeiro, com valor entre R$299,73 e R$380,00;
• Vale gás - pagamento do valor de R$200,00, podendo ocorrer acréscimos em caso de filhos menores;
• Projeto aplicativo Conecta Social;
• Desenvolve Mulher e Renda Melhor – capacitação profissional com foco no empreendedorismo e geração de renda própria;
• Mercado produtor (agro) – parceria com os municípios fluminenses para construção e gestão de mercados, incentivando o consumo da produção local pelos moradores do entorno.
• Casa Legal – programa de regularização de títulos de propriedade;
• Projeto Reciclação – para a gestão de resíduos e geração de renda;
• Casa da Gente – Programa Estadual de Habitação de Interesse Social;
• Renda Melhor Jovem – incentivo financeiro para jovens matriculados no ensino médio regular e que estão em situação de extrema pobreza.
• Horta comunitária – para a produção de alimentos orgânicos;
• Na Régua - reformas em casas para os moradores terem condições dignas de moradia, com previsão de 110 casas a serem reformadas no Jacarezinho.
Importante destacar que a maioria dos programas e projetos listados já existiam em diferentes pastas do governo, não se tratando de programas elaborados de maneira exclusiva, em atenção às particularidades do bairro e necessidade da população do Jacarezinho. Note-se ainda, que a maioria dos serviços foram sendo descontinuados e retirados do decreto por meio novos decretos. No último decreto publicado, de nº 48.148 de 04 de julho de 2022, o programa conta apenas com dois serviços a serem fornecidos, sendo eles:
• Horta comunitária – um projeto da Secretaria de Agricultura que já existia na comunidade antes do Cidade Integrada;
• Na Régua – um projeto de obras e reformas de até 15 mil reais e para famílias com renda mínima de 3 mil reais.
Houve ainda o cancelamento sem aviso prévio de alguns dos poucos projetos que chegaram a ser implementados, executados e que haviam contado com adesão da população. Foi o que ocorreu com o Desenvolve Mulher, programa que visava à formação profissional para as mulheres da comunidade em cursos como de trancista, micropigmentadora, entre outros. Fora este um dos poucos programas que haviam funcionado efetivamente. No entanto, segundo informado por moradores entrevistados, os professores do curso profissionalizante estavam com salários atrasados e acabaram abandonando os postos de trabalho. O pagamento de bolsas previsto para as alunas também não ocorreu.
Deve ser ressaltada também a falta de transparência sobre as despesas executadas com o Programa Cidade Integrada. Nossos pesquisadores tentaram encontrar nos portais de transparência disponibilizados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, mas não conseguiram encontrar nenhuma previsão orçamentária para o projeto Cidade Integrada, muito menos prestação de contas dos valores gastos até o momento. Como constava no decreto inaugural, o programa seria realizado “sem aumento de gasto”. Ainda assim, não é possível saber quais os valores dos programas de diferentes secretarias de Estado que foram executados em despesas realizadas no bairro do Jacarezinho. No portal do programa SuperaRio, por exemplo, é possível encontrar os nomes e valores recebidos pelos beneficiários, porém como não há uma categoria de busca específica por bairro, apenas dos beneficiários do município do Rio de Janeiro, não foi possível identificar a quantidade de moradores beneficiados e nem os valores pagos.
Como mencionado anteriormente, o projeto não foi pensado especialmente para o bairro do Jacarezinho e não ouve escuta aos moradores. Isso ficou demonstrado quando perguntado aos moradores se eles ficaram sabendo ou participaram de reuniões referentes ao projeto cidade integrada. Muitos ficaram sabendo que o Governador esteve na quadra próximo à comunidade, mas não sabem o que motivou a sua vinda e nem se ocorreram novas reuniões.
Embora menores de idade não tenham sido entrevistados, incluímos uma pergunta a respeito de agressões a menores por parte dos policiais e 37% dos entrevistados afirmaram ter visto isso ocorrer. Outros 27% disseram apenas ter ouvido relatos de que isso ocorre. Alguns descreveram cenas como a de policiais atirando na direção de um adolescente e de policiais batendo com a cabeça de um adolescente num capô de carro.
Experiências de violência policial durante o Cidade Integrada
A referida percepção de insegurança por parte da população se deve em boa medida às tão frequentes experiências de abuso sofridas por moradores desde o início da ocupação pela Polícia Militar. Dentre essas experiências, destaca-se a invasão de residências por policiais sem mandado judicial. Como mostra o gráfico abaixo, metade dos 387 moradores entrevistados tiveram as suas residências ilegalmente invadidas por policiais 25% testemunharam invasões a outras casas e 17% ouviram falar que isso acontece. Vale lembrar que não há nenhuma previsão legal que permita à polícia invadir e revistar residências particulares sem mandado judicial.
Tão ou mais grave do a invasão de domicílios é a conduta criminosa adotada por alguns policiais de subtrair ou danificar bens de propriedade dos moradores. A pilhagem é uma prática comum entre policiais que adentram favelas durante operações e que, entendendo esses territórios e populações como “hostis”, sentem-se no direito de reivindicar “espólios de guerra”, furtando ou roubando bens pertencentes aos moradores. Há muitas décadas moradores de favelas queixam-se desse tipo de crime praticado por policiais. Surpreende, contudo, o número muito elevado de respondentes que afirmaram ter sofrido esse tipo de abuso em um espaço tão curto de tempo. Os entrevistadores foram todos treinados a especificar que a pergunta se referia apenas aos policiais do Cidade Integrada e, mesmo assim, 30% afirmaram ter tido objetos danificados ou subtraídos por policiais, 35% afirmaram ter testemunhado isso ocorrendo com outras pessoas e 21% disseram ter apenas ouvido falar que isso acontece. Os moradores narraram uma ampla variedade de situações em que isso lhes ocorreu, desde o arrombamento de portas para invadir residências até o furto de objetos grandes como televisores e aparelhos de som, incluindo também menções a perfumes, roupas e alimentos.
Além de relatar que policiais praticam a invasão de domicílios e crimes contra a propriedade, muitos moradores entrevistados se queixaram do cerceamento à sua liberdade de ir e vir em razão das frequentes abordagens policiais. Ao todo, 48% dos entrevistados foram abordados por policiais do Cidade Integrada, porcentagem que é maior entre homens (62%) do que entre mulheres (34%) e maior entre jovens (64%) do que entre adultos (46%) ou idosos (31%). Já os recortes raciais não implicaram em padrões de respostas distintos. Do total de entrevistados, 5% relataram ter sofrido agressões durante as abordagens e 23% disse ter sido tratado com desrespeito.
É curioso notar que embora a porcentagem de pessoas que relataram ter sido agredidas durante as abordagens policiais seja de 5%, foi 10% o percentual de entrevistados que relataram terem sofrido agressões por parte de policiais. Isso possivelmente indica que metade das situações de agressão não foram consideradas “abordagens”, podendo ter ocorrido, por exemplo, durante invasões em domicílio. Outros 45% das pessoas disseram ter visto policiais do Cidade Integrada batendo em outras pessoas e apenas 3% afirmaram que isso não acontece.
Embora menores de idade não tenham sido entrevistados, incluímos uma pergunta a respeito de agressões a menores por parte dos policiais e 37% dos entrevistados afirmaram ter visto isso ocorrer. Outros 27% disseram apenas ter ouvido relatos de que isso ocorre. Alguns descreveram cenas como a de policiais atirando na direção de um adolescente e de policiais batendo com a cabeça de um adolescente num capô de carro.
No que concerne às questões referentes à violência de gênero, a maioria dos entrevistados não soube responder, ainda assim, a quantidade de pessoas que testemunharam situações de violência é significativa. Uma mulher relatou que ela própria sofrera assédio praticado por policiais do Cidade Integrada que teriam alisado o corpo dela e dito que “uma preta gostosa dessa podia aquecer a minha cama”. Algumas pessoas relataram o estupro de uma menina de 12 anos de idade em que policiais “chuparam o peito dela até sair sangue”. Junto estava uma jovem travesti que apanhou após ter sido alisada e os policiais descobrirem o seu órgão sexual masculino. Quando perguntados sobre agressões a pessoas LGBTQI+ por policiais, 10% relataram que viram isso ocorrer e outros 10% ouviram falar que isso ocorreu. Já quanto ao abuso sexual contra mulheres, 9% dos entrevistados relataram ter visto isso ocorrer e 22% disseram ter ouvido falar que isso ocorre.
Outro dado assustador é o do número absoluto de pessoas (65) que relataram ter tido que desbloquear seus celulares e mostrar mensagens pessoais para os policiais durante as abordagens. Esta pergunta foi incluída no questionário porque membros da equipe testemunharam isso ocorrendo com jovens abordados na rua e passaram a indagar os moradores a respeito. Alguns entrevistados sequer sabiam que os policiais não possuem autoridade para tal e que o seu direito à privacidade é uma garantia constitucional. Como pode ser visto no gráfico abaixo, 72% dos entrevistados confirmaram que isso ocorre.
Não foi possível relatar em detalhes todos as experiências de horror coletadas em denúncias feitas pelos moradores durante as entrevistas, mas os números acima apresentados revelam o quanto é preocupante a situação e o quanto é violenta, arbitrária e, muitas vezes, criminosa a atuação de policiais militar no bairro onde foram alocados para que contribuíssem com a segurança da população. O comando da polícia chegou a instalar uma ouvidoria no local para receber denúncias de abusos praticados por policiais e encaminhá-las à corregedoria. No entanto, os moradores relataram medo de denunciar e sofrer represálias, porque não havia nenhum cuidado com a preservação do anonimato das vítimas.
Considerações Finais
A pesquisa realizada em consulta aos moradores do bairro do Jacarezinho sobre a sua percepção e experiências relacionadas ao Cidade Integrada revelou que o programa fracassou em todos os objetivos estabelecidos. Além de falhar em entregar a maioria dos serviços prometidos pelo Estado para o bairro e interromper ou reduzir projetos iniciados, a ocupação do território pela Polícia Militar produziu maior sensação de insegurança na população. Foram coletados mais de uma centena de relatos de violências sofridas – algumas delas gravíssimas, como o estupro de menores. Consideramos que os impactos do programa sobre as crianças e adolescentes são merecedores de nota específica, anexa a este relatório.
O Cidade Integrada contribuiu também como o empobrecimento da comunidade em virtude dos prejuízos sofridos pelo comércio local. O aumento da insegurança e da imprevisibilidade de conflitos armados afastou a clientela que acessava o pujante comércio do bairro. Embora muitos comerciantes tenham obtido acesso a empréstimos no valor de 5 mil reais sem incidência de juros da AgeRio, eles relataram que esse recurso foi utilizado para cobrir o prejuízo causado pelo Cidade Integrada, aumentando assim o seu endividamento.
Alguns moradores e lideranças comunitárias se queixaram de que os investimentos mais robustos em saúde, educação e formação profissional direcionados para a região em razão do Cidade Integrada teriam sido alocados no bairro vizinho de Manguinhos, que não foi submetido à ocupação pela Polícia Militar. A maioria dos entrevistados afirmou que queria sim um aumento dos programas sociais e serviços públicos oferecidos pelo Estado no bairro, mas que não consideravam necessária a ocupação pela polícia militar. Afirmaram preferir um Cidade Integrada sem a participação da polícia, instituição que historicamente se relaciona com a população do bairro de maneira violenta e arbitrária.
Nesse sentido, nós do Observatório do Cidade Integrada, recomendamos que os programas sociais e serviços públicos previstos para o Cidade Integrada sejam mantidos, retomados ou finalmente entregues, mas que a ocupação do território pela polícia militar seja interrompida. Recomendamos também que os representantes de órgãos públicos estabeleçam canais de escuta e diálogo com a população local.
Anexo: relatório completo
Ver também
Cidade Integrada: um velho ano novo para o Jacarezinho
Cidade Integrada: uma reedição das UPPs em ano eleitoral (entrevista)
Cidade ‘Integrada’ e a lógica militarizada que deixa corpos pelo chão (matéria)
Cidade integrada - episódio 23 (programa)
Máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude (relatório)