Máquina de moer gente preta - a responsabilidade da branquitude (relatório)
No seu terceiro ano de monitoramento, a Rede de Observatórios da Segurança monitorou 21.563 eventos violentos nos sete estados que acompanha: Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Entre 16 indicadores de violência, as ações policiais continuam representando mais da metade desses registros. É o que mostra o relatório "Máquina de moer gente preta: a responsabilidade da branquitude".
Autoria: Silvia Ramos
Apresentação[editar | editar código-fonte]
Pela primeira vez, números do Maranhão e Piauí, que passaram a integrar a Rede em 2021, são apresentados no levantamento. Os números alcançados entre agosto de 2021 a julho de 2022 evidenciam o racismo que coloca pessoas negras como principais vítimas da violência. O monitoramento é feito diariamente a partir de veículos de imprensa. Os pesquisadores coletam informações e alimentam um banco de dados que posteriormente é revisado e consolidado. No período analisado no relatório, foram 59 eventos violentos por dia. O que quer dizer que a cada meia hora ao menos uma pessoa foi impactada pela violência.
A Rede de Observatórios busca suprir a ausência ou omissão do Estado em produzir e divulgar amplamente dados confiáveis e de qualidade para que políticas públicas sejam avaliadas. E comprova que sob qualquer parâmetro estatístico, é a população negra a que mais morre no Brasil de hoje. A segurança pública continua desafiando os novos governantes.
Violência policial[editar | editar código-fonte]
Não há nenhum órgão oficial que mapeie e acompanhe as ações de policiamento. A Rede foi uma das primeiras instituições de pesquisa a realizar esse trabalho para compreender as políticas de segurança pública adotadas pelos estados. No último ano, acompanhamos 12.042 eventos de policiamento. No conjunto dos sete estados, os eventos ligados às polícias representam 55% do monitoramento, mas no Rio de Janeiro, eles chegam a 67%.
Em números absolutos, é São Paulo o estado que apresenta o maior número de ações de policiamento (3.622) e também de denúncias de abuso de agentes. Já o Rio de Janeiro é o estado com maior letalidade nesses eventos. Se somarmos todas as mortes registradas nos cinco estados do Nordeste que compõem a Rede mais o estado de São Paulo, totalizam 281 mortos em 12 meses. No Rio, esse número totalizou 306 mortes.
No Nordeste, o Maranhão é quem tem o maior número de ações. Uma curiosidade é que a Polícia Civil é a principal força atuando nesses eventos. Enquanto nos demais estados, a força predominante é a Polícia Militar. Já quando se fala de letalidade, a Bahia segue liderando o ranking na região com 55 mortes provocadas por agentes do estado. Já o estado que mais mata agentes de segurança no Nordeste é o Ceará – no quadro geral fica atrás apenas do Rio de Janeiro.
Os números demonstram que o confronto como política de segurança pública é um modelo falido. A principal justificativa dessas ações é a guerra às drogas, que só afeta pessoas negras e pobres e nem mesmo resulta em apreensões de entorpecentes ou desarticulação do crime.
Violência contra mulheres[editar | editar código-fonte]
Tradicionalmente ações policiais têm maior destaque nos jornais, seguido de eventos com armas de fogo. Já a violência contra a mulher aparece, como nos dois últimos anos, em terceiro lugar no monitoramento. Foram 2.436 registros de eventos violentos contra mulheres – quase sete casos por dia. Tentativa de feminicídio e feminicídio são os maiores registros quando olhamos para esse tipo de violência.
Ainda que São Paulo continue com os maiores números absolutos de casos – são 902 registros de violência contra o público feminino -, a Bahia foi quem apresentou o maior crescimento dos índices de violência contra a mulher com aumento de 47% em relação ao último ano. Já quando olhamos especificamente para feminicídios, Pernambuco ocupa o primeiro lugar nesse triste ranking entre os estados do Nordeste e também é o que mais mata mulheres trans em toda a Rede. São 13 registros de transfeminicídios no estado que no ano passado registrou uma onda de ataques contra travestis.
Violência contra crianças e adolescentes[editar | editar código-fonte]
Assim como a violência contra mulheres, a violência contra crianças e adolescentes acontece em sua maioria em casa e são cometidas por pessoas que têm relações próximas às vítimas. Esse é o quarto indicador em registros da Rede e soma 1.101 casos. Estupro, homicídio e agressão física são os principais tipos de violência praticadas contra menores de 18 anos.
São Paulo é o estado com o maior número de casos absolutos nesse indicador e obteve um aumento de 15% em relação ao último ano. Porém, o Rio de Janeiro foi o estado que apresentou a maior alta de um ano para outro, com 40% mais casos que no período anterior. Pernambuco é pelo segundo ano seguido o estado mais letal para os jovens, com registro de 73 homicídios. Já Piauí e Maranhão lideram os índices de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes no Nordeste, com 47 e 44 registros, respectivamente.
Chacinas e linchamentos[editar | editar código-fonte]
Chacinas e linchamentos são indicadores cruciais de nossa humanidade. Sempre que uma chacina é executada, existe um recado para toda a sociedade. O Rio de Janeiro acumula chacinas policiais com grande número de mortos e no período da análise registrou 40 eventos com 183 mortes. Em seguida vem Bahia, com 22, e Ceará, com 21. O estado cearense chama atenção com aumento de 75% no índice de chacinas de um ano para o outro (no período anterior foram 12 casos), além de ter o maior número de mortos em chacinas na região (75).
Já linchamentos são respostas da sociedade que desacredita do sistema de justiça e resolve os problemas com as próprias mãos em um ato bárbaro. Em um ano registramos 167 casos de linchamentos (132) e tentativas (35). Ao olharmos os números absolutos, São Paulo é o estado com mais casos (39), porém, o Piauí, com cinco casos a menos, é o estado que mais preocupa, já que sua população é dez vezes menor que a paulista. As principais vítimas são meninos negros vistos como suspeitos e que mereceriam um corretivo.
Branquitude, violência e hierarquização[editar | editar código-fonte]
O processo de desumanização a que os negros são submetidos há alguns séculos nessas terras é irmão siamês de toda violência descomunal que lhe é perpetrada. Ora, se há um modelo ideal de humanidade que é uma contraposição a quem eu sou, logo minha vida é indigna e o meu corpo indesejado. Aqui mora o casamento entre as percepções simbólicas criadas pelos brancos a partir do modelo único de humanidade e a materialidade brutal do racismo diário.
A violência, portanto, atua como um instrumento de garantia das hierarquias de humanidade entre brancos e todos os outros corpos indesejados, racializados e que são, por não humanos, indignos de vida. Mas ora, o que está oculto nestas classificações de humanidade por parte da branquitude é que, ao criar gradientes de humanidade, também está, em contraposição justa, colocando em xeque a sua própria. Ao racializar o outro, é inevitável que o outro lhe racialize.
O reconhecimento do privilégio branco e a ação sobre ele expressam a via de reconstituição daquilo que entendemos como humanidade. Uma agenda sistemática de pesquisas e escrutínio sobre a branquitude brasileira nos ajudará a revelar as nuances e as características do poder, da dominação e da violência no Brasil.
Monitoramento por estado[editar | editar código-fonte]
- Bahia: Guerra às drogas garante privilégios da branquitude;
- Ceará: a naturalização das violências;
- Maranhão: modelo de segurança reativo tem como alvo a juventude preta;
- Pernambuco: quanto vale a vida de uma mulher?
- Piauí: a escalada ininterrupta da violência;
- Rio de Janeiro: velhos erros levam a recordes de morte;
- São Paulo: onde nossas crianças estarão seguras do machismo?