Rio, cidade-sede de um modelo global de militarização
Autoria: Thiago Mendes/Instituto Pacs[1]
Em abril de 2017, o Rio de Janeiro sediou a LAAD Defence & Security, a “mais importante feira de defesa e segurança da América Latina”, conforme definem os próprios organizadores. A cidade palco dos megaeventos esportivos, onde 20% de homicídios são cometidos pela polícia em serviço, segundo dados da Anistia Internacional, recebeu mais de 600 marcas expositoras de armas, equipamentos bélicos e outras tecnologias “para o fomento de negócios junto às Forças Armadas, Forças Policiais e Especiais, consultorias, segurança corporativa e agências governamentais”, ainda segundo os organizadores.
O Rio se tornou sede também, recentemente, de um escritório da Drug Enforcement Administration (DEA), agência estadunidense de combate ao narcotráfico, que desembarcou em solo carioca a pedido do então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame.
Os dois fatos citados, à primeira vista isolados, colocam o Rio de Janeiro em destaque em uma dinâmica global de reprodução de um modelo militar de segurança nos territórios das cidades. Atualmente, as mortes por intervenção de policiais estão num patamar próximo ao cenário anterior à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Nesse contexto, que lugar o Rio pós-Olímpico ocupa na conjuntura global em que a comercialização de armas atingiu o maior volume desde o fim da Guerra Fria?
O processo de militarização, agravado com a preparação da cidade para eventos como Pan-Americano, Copa do Mundo e Olimpíadas, tornou o Rio uma cidade em que a presença de forças militares, repressão a manifestações, “caveirões” — circulando ao som de “Sai da rua, morador. Eu vim roubar sua alma” — e tiroteios nas favelas (somente no Complexo do Alemão foram 28 no último mês) compõem o cotidiano dos moradores e moradoras. Tudo isso em nome de uma política racista e falida de guerra às drogas, importada dos EUA, conforme expõe Cecília Olliveira.
Maren Mantovani, coordenadora de relações internacionais da campanha Stop the Wall (campanha pelos direitos da população palestina), aponta pelo menos três níveis em que é possível estabelecer conexões globais sobre a militarização no Rio: o treinamento de forças especiais como o Bope; a venda de armas e tecnologias para as polícias e a estruturação do controle e da vigilância da cidade como um todo.
“Estamos hoje em um nível que nem George Orwell, quando escreveu 1984, poderia imaginar. Escondido sob o nome de safety city (cidade segura) ou smart city (cidade inteligente), está se instalando um meganegócio de centros de comando e controle integrado em que Israel está evidentemente na primeira linha, desenvolvendo e vendendo essas tecnologias”, pontua Maren.
Ela lembra que os centros de comando e controle são modelados seguindo a experiência que se tem em Gaza, na Palestina.
Os centros de controle e comando foram instalados durante a Copa do Mundo nas cidades-sede do Mundial. Alguns anos depois, em 2013, o Rio venceu o prêmio World Smart City 2013. “Isso é complicado, porque você tem uma cidade cada vez mais vigiada, sem nenhuma transparência disso. Não se sabe o quê, como, nem quando está sendo vigiado. Não se sabe o que está sendo feito com esses dados”, alerta Cecília Olliveira, especialista em segurança pública.
Além disso, Cecília questiona a eficácia de todo o aparato tecnológico na elucidação de crimes, que no Rio apresenta índices muito baixos. “É realmente uma coisa que fica no imediato, como no caso das manifestações. Mas qual o impacto disso na elucidação de homicídios? Esse dado a gente não tem”, cobra Cecília.
Maren argumenta que essas tecnologias de controle e repressão são testadas em lugares como Palestina e Bagdá, para depois serem usadas em territórios de “guerra de baixa intensidade”, como no Rio, mas também em capitais do norte global.
“São as mesmas ideologias e tecnologias que você encontra hoje também em Londres, Bruxelas, Paris, Los Angeles, Baltimore, para reprimir toda a população excluída e os movimentos que estão se rebelando de uma maneira ou outra”, detalha ela.
Exemplo de como essas tecnologias de guerra chegam ao sul global é o uso de armas específicas de repressão a manifestações. No Rio, em março de 2013, uma arma sônica, que causava dores nos ouvidos, foi usada contra os indígenas que se recusavam a deixar a Aldeia Maracanã.
Em março de 2016, foi a vez de a polícia militar de São Paulo usar, pela primeira vez, blindados israelenses para reprimir manifestantes.
Momentos como a feira LAAD, organizada de dois em dois anos, são ocasiões-chave para a troca de informações e tecnologias globais de repressão, assinala Maren. Uma olhada na programação do evento — restrito a profissionais do setor — ajuda a entender na prática o argumento. No primeiro dia, por exemplo, está programada uma palestra sobre “monitoramento de grupos organizados, manifestações e combate a terrorismo e danos ao patrimônio”. No segundo, discussões sobre o “modelo mundial de integração em segurança pública: Sistema gerencial da Polícia Civil do Rio de Janeiro”. “As palavras lindas escondem os intentos: discutir como reprimir os povos, sendo a América Latina um espaço absolutamente central nisso”, aponta Maren.
Se para a população das favelas do Rio a presença militar virou sinônimo de tiroteios constantes, invasões a domicílios e constrangimentos de toda ordem, para muitos que vivem no asfalto, a militarização é associada a algo bom, que garante uma sensação de segurança.
De acordo com Dario Sousa e Silva, professor do Instituto de Ciências Sociais da Uerj, a presença das forças armadas e de segurança como acréscimo às forças policiais é algo que antecede os megaeventos esportivos do ciclo recente. O que era uma “característica de excepcionalidade” antes, porém, passou a virar rotineiro.
“Há uma fronteira entre o que deve ser protegido e de quem se proteger. O tanque apontado para a Rocinha a partir da Gávea [na ECO-92] era uma mensagem muito clara disso”, relembra Dario, que cita a Reunião do G-8 e a Cúpulas das Américas como eventos de uso excepcional das forças armadas nas favelas do Rio.
Para Maren Mantovani, coordenadora de relações internacionais da campanha Stop the Wall, a saída para combater a ideologia da militarização é criar um “enlace global entre as populações atingidas” para criar solidariedades e fortalecer as lutas. “É preciso mostrar que os lugares mais seguros não são os que têm mais policiais, mas onde se tem mais justiça e serviços sociais”, defende Maren. Numa guerra em que os civis são os alvos principais, as trincheiras de resistências são cavadas todos os dias por palestinos/as, favelados/as, pela população negra de Baltimore morta pela polícia, por todos e todas que se insurgem contra a militarização da vida.
“Há tempos eles acabaram com a diferença entre civis e militares. Todos viramos objeto de uma guerra global contra os povos”, resume Maren.
Ver também
- Julho Negro: articulação internacional luta contra a militarização, o racismo e o apartheid no sul global
- Militarização
- Do Rio de Janeiro à Palestina: a militarização dos territórios (entrevista)
- ↑ Esse texto é o primeiro da série “Militarização do cotidiano — um legado olímpico” que o Instituto Pacs irá publicar sobre segurança pública no Rio de Janeiro e suas imbricações no Brasil e no mundo. Os textos serão publicados mensalmente. Acompanhe. Mais informações e/ou sugestões: thiago@pacs.org.br e iara@pacs.org.br | Acesse também: pacs.org.br