Lesboafrofabulação e lesboescrevivência (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 15h39min de 29 de agosto de 2024 por Clara (discussão | contribs)
Autoria: Camila Marins entrevistada por Laila Maria

Das ruas para a universidade. A jornalista e mestranda em políticas públicas em direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Camila Marins, apresenta sua dissertação de mestrado “Lesboescrevivências com Neusa das Dores: história, memória e visibilidade da luta sapatão no Rio de Janeiro”. Sob orientação do professor doutor Sérgio Luiz Baptista, Camila defendeu seu trabalho Casa das Pretas, e, nele, inaugura categorias, dentro das lesbianidades, como: lesboescrevivências, sapalogia e lesboafrofabulação. Neusa das Dores é lésbica negra feminista que idealizou e realizou o I Seminário Nacional de Lésbicas que deu origem ao Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado anualmente todo 29 de agosto. Na pesquisa, Camila evidencia o protagonismo das lésbicas negras na luta política do Rio de Janeiro.

Entrevista completa

Considerando sua trajetória e as dificuldades que enfrentou para cursar o mestrado, como você se sente ao defender essa dissertação no mês da visibilidade lésbica?

Há uma imensa responsabilidade na defesa dessa dissertação que faço no ano que completei 40 anos. Ainda quando era estudante da graduação de jornalismo, meu sonho era seguir direto no mestrado e doutorado e dar aulas. Mas não foi possível por conta da necessidade de sobrevivência. Precisei ter de 2 a 3 empregos para garantir o mínimo. Passei no mestrado durante a pandemia, em 2020, que foi prorrogado. À época, eu tinha dois empregos e tenho certeza de que só consegui finalizar as disciplinas pelo fato das aulas serem virtuais, o que possibilitou a conciliação. Imaginem, ter dois empregos, fazer mestrado e ainda militar. É uma quádrupla jornada de trabalho, sem considerar os afazeres domésticos. Em 2022, veio o período eleitoral e fui candidata a deputada federal pelo PT, a partir de uma convocação dos movimentos sociais de lésbicas. E, no ano seguinte, passei por um divórcio. Portanto, os anos que eu teria para me dedicar à escrita me foram arrancados pela vida. Mas foi graças à aliança afetiva e política entre mulheres negras lésbicas que consegui redirecionar, fazer e finalizar essa dissertação. Edmeire Exaltação, coordenadora da Casa das Pretas, me convidou para fazer um trabalho de memória para a entidade esse ano e me deu acesso a todos os documentos do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) e passei a frequentar, às segundas-feiras, a casa de Neusa das Dores, organizadora e idealizadora do SENALE. Nesses encontros, eu mostrava à Neusa fotos de eventos, incluindo o SENALE, e eu legendava no verso de cada fotografia as informações como local, nomes das pessoas, datas etc. A partir daí, entendi que o tema da dissertação precisava mudar. Antes eu iria dissertar sobre o projeto de lei da visibilidade lésbica que construímos com a vereadora Marielle Franco, mas entendi que a minha tarefa era registrar a memória viva de Neusa das Dores. Ou pelo menos, tentar. Até porque foi o I SENALE que deu origem ao 29 de agosto, dia da visibilidade lésbica, celebrado nacionalmente todos os anos e que tem origem fundante no protagonismo de lésbicas negras. Outra dificuldade encontrada foi a pouca literatura acadêmica sobre lesbianidades, especialmente sobre lésbicas negras. Hoje, ao final dessa trajetória acadêmica, compreendo que é uma complementação da minha trajetória nas ruas. Sou idealizadora do projeto de lei Luana Barbosa de enfrentamento ao lesbocídio e de tantas outras propostas de políticas públicas e agora materializo meu pensamento na literatura acadêmica no que chamo de sapalogia. Que possamos todas nós erguer as nossas vozes, sapatonas.

Sobre a história do Senale, o que você considera fundamental destacar nesta entrevista para todas nós, mulheres lésbicas?

Em primeiro lugar, acho fundamental destacar o protagonismo das lésbicas negras na construção política do SENALE e friso os nomes de Neusa das Dores, Elizabeth Calvet e Rozangela Castro. E também vou recorrer à Neusa das Dores para responder a essa pergunta, porque ela sempre diz: “visibilidade, saúde e organização” que foram, inclusive, os temas do I SENALE. Quando falamos de visibilidade não é qualquer visibilidade. Não é close pelo close. É visibilidade nas políticas públicas, no orçamento, nas leis, nos direitos e na cidadania. E foi por meio da organização das lésbicas, principalmente da mobilização de Neusa das Dores junto à vereadora Jurema Batista (PT-RJ) na Comissão de Direitos Humanos, que temos hoje, no Rio de Janeiro, a lei nº2475 sancionada no mesmo ano do SENALE que pune estabelecimentos comerciais que discriminem pessoas por conta de sua orientação sexual e identidade de gênero. Por meio de organização política com parlamentares, evidenciamos a visibilidade na política pública que tornou-se referência no Brasil inteiro, mas que, infelizmente, não demonstra efetividade. Isso porque, de acordo com os dados da Lei de Transparência, é baixo o número de denúncias. Nesse sentido, deixo pistas sobre a falta de orçamento público, a falta de uma política pública pedagógica de formação nos estabelecimentos e a falta de vontade política. Já em relação à saúde, o SENALE alertou às autoridades públicas presentes na mesa de abertura sobre a importância de políticas públicas específicas para lésbicas, especialmente nos direitos sexuais e reprodutivos, destacando a prevenção e o tratamento de HIV/AIDS. Por fim, o SENALE marcou a origem do 29 de agosto, dia nacional da visibilidade lésbica, mas que poucas de nós sabem a sua história. A partir da realização do SENALE, foram realizados outros mini encontros e, posteriormente, outros encontros nacionais.

Como foi o processo de colaboração com Neusa das Dores e de que forma isso influenciou a construção dos textos da sua dissertação? Notamos que você demonstra grande reverência por Neusa. Como você descreve essa experiência de "lesboafrofabulação"?

O feminismo nos ensina que o pessoal é político. Parti dos diálogos com Neusa entre os momentos que eu legendava as fotos. Ela me contava histórias e eu também a ela. Estávamos, nós duas, lesboafrofabulando de uma com a outra em uma (co)fusão, a partir de suas memórias, das minhas memórias e das memórias coletivas. Conjuramos presente e futuro numa política de alianças de quilombo baseada na solidariedade, na escuta, na oralidade, no segredo, no sagrado, nas rotas de fuga e na intuição. Fomos atravessando os becos da memória, evocando Conceição Evaristo, e assentando lesboescrevivência. Na banca de qualificação, a professora Fatima Lima me alertou que eu estava fazendo uma sapalogia. Até então, não entendi. Tratei de me aprofundar e a fundamentar essa pista conceitual que, generosamente, Fatima havia me dado. Comecei a pensar que sapalogia é uma organização de saberes das ruas e dos movimentos sociais, um saber-fazer sapatão, um contradispositivo. E é a partir da sapalogia que penso outros elementos como lesboescrevivência e lesboafrofabulação como formas de desestabilizar o sistema cisheteronormativo neoliberal branco porque todo meu trabalho é atravessado pelo pensamento anticapitalista e antirracista.

Você menciona a importância da oralidade e da metodologia feminista na sua pesquisa com Neusa das Dores. Como você integrou essas práticas na coleta e análise dos dados, e quais foram os principais desafios encontrados nesse processo?

Por princípios éticos e feministas, não tive coragem de ligar o gravador. Preservei a nossa intimidade e a oralidade. E fui construindo uma metodologia feminista de lesboescrevivência e lesboafrofabulação junto com Neusa das Dores a partir de intuição, oralidade, vivência, escuta e memória. Obviamente que fui alertada e criticada por algumas pessoas que insistiam pelas gravações. Mas as mulheres ao meu redor confirmavam a minha metodologia que pretendia descolonizar o método científico. Um dia, helena assanti me apresentou o conceito de afrofabulação (Tavia Nyong´o) e fabulação crítica (Hartman). Comecei a pensar que estávamos, eu e Neusa, lesboafrofabulando passado, presente e futuro, com o objetivo de afirmarmos a visibilidade, história e a memória lésbica negra. E esse tripé seria sustentado em passado (história); presente (memória); futuro (visibilidade).

A partir do momento que tive acesso aos documentos e fotos do SENALE, me vi numa posição privilegiada de confiança e com a possibilidade de compartilhar algumas dessas memórias. Mas também entendi que, assim como jamais revelarei o conteúdo de algumas conversas com Neusa, há segredos que são rotas de fuga e, portanto, irreveláveis e que se tornam tecnologias de sobrevivência, itinerário de oralidade e aliança.Há muito do segredo que torna-se sagrado entre mulheres negras. Esse trabalho atravessa segredos e sagrados.

Ver também

Ser lésbica na favela (revista)

Ser trans na favela (revista)

Revista Brejeiras