Alimentação orgânica como direito humano (artigo)
Autoria: Sophie-Anne Monplaisir (Tradução por Wilson Saiki).[1]
Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas. Também faz parte de uma sériegerada por uma parceria, com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental em favelas para o RioOnWatch.
Ativistas dos direitos humanos e socioambientais têm alertado há muito tempo sobre a importância da promoção de alternativas sustentáveis e democráticas ao modelo de agricultura vigente. No Brasil, líder mundial no consumo de agrotóxicos, muitos cidadãos lutam pelo acesso a produtos frescos, saudáveis e orgânicos. Muitos brasileiros de baixa renda, assim como ocorre nos Estados Unidos, têm acesso apenas a alimentos ultraprocessados e menos saudáveis. Apesar do setor agrícola do país ter um papel dominante na economia brasileira, seu foco preponderante no lucro em meio a poucas regulamentações ambientais e de saúde, impede o acesso da população a produtos de melhor qualidade, inviabilizando assim a segurança ambiental e prejudicando a saúde de consumidores e produtores.
Neste (sic) momento de pandemia, iniciativas locais espalhadas pelas periferias do Rio têm trabalhado para atender às necessidades de comunidades marginalizadas e de baixa renda. O objetivo dessas ações é promover a soberania alimentar fortalecendo o acesso dos moradores a dietas frescas, saudáveis e nutritivas. “A jornada para a saúde começa com o que está no seu prato, a construção de uma imunidade resiliente começa com a qualidade dos alimentos que você come, e todos têm direito a comida saudável e de verdade”, explica Lorena Portela, engenheira ambiental e ativista do Horta Inteligente no Morro da Providência.
Em vez de recorrer ao modelo tradicional de alimentação em escala industrial, várias pequenas iniciativas comunitárias, no Rio, estão construindo projetos sustentáveis para garantir maneiras mais justas e saudáveis de alimentar as populações de maior risco durante a pandemia. Duas dessas importantes iniciativas são: o Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), projeto desenvolvido por Ana Santos que promove soberania alimentar e agroecologia, e o Projeto Inclusão, iniciativa educacional liderada por Élida Nascimento em Éden, São João de Meriti. Ambas as iniciativas fazem parte da Rede Favela Sustentável[2].
Ana Santos: CEM—Centro de Integração na Serra da Misericórdia
Ana Santos é educadora e culinarista na favela Terra Prometida que fica situada no Complexo da Penha. Ela é co-fundadora do Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), que defende a soberania e a segurança alimentar na área em torno da Serra da Misericórdia, a maior floresta urbana na Zona Norte (AP3) da cidade. A iniciativa coloca a agroecologia e a agricultura urbana no centro da luta contra a injustiça social.
O CEM lançou o projeto Favela Sem Corona uma semana antes do início da quarentena. O projeto arrecada fundos para a compra de alimentos diretamente de produtores orgânicos a preços acessíveis e depois os distribui às famílias sem nenhum custo. “As dúvidas eram muitas e a incerteza sobre o tal vírus era maior ainda, afinal, ninguém no morro ainda tinha sido infectado”, disse Ana. “Ali, vimos a necessidade de ampliar nossa comunicação e atuação, pois também já haviam muitas pessoas sem suas rendas.”
Embora não falte produtos orgânicos frescos no Brasil, nem ampla presença de produção orgânica em fazendas de pequenos produtores, os produtos orgânicos só são financeiramente acessíveis a um pequeno grupo da população. Isso ocorre devido aos altos subsídios para o agronegócio em detrimento à produção em pequena escala e de produtos orgânicos. Ana reconhece essa realidade em sua comunidade: “Não estou dizendo que na favela não sabemos o que comer [para sermos saudáveis]. Estou falando de acesso. Estou falando da ausência de políticas públicas de um país que é um dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo”.
Lorena, do Horta Inteligente, explica que as políticas públicas na agricultura brasileira incentivam as exportações. Os subsídios governamentais para o agronegócio excedem em muito os concedidos aos produtores locais que oferecem produtos orgânicos. Já os produtos alimentares mais baratos, geralmente direcionados a famílias de baixa renda, são altamente processados.
Ana Santos considera que a campanha Favela Sem Corona tem seu foco na distribuição de produtos frescos, a fim de trazer benefícios nutricionais para os moradores necessitados, além de apoiar os agricultores locais. “[Muitos deles tiveram] a perda de espaços institucionalizados para comercialização” durante a crise, ressaltou ela. “[Ajudamos eles] a gerarem renda trazendo seus produtos para a favela.”
Além disso, a ligação direta do projeto entre pequenos produtores e consumidores nas favelas reduz custos. Normalmente, o preço dos produtos orgânicos seria muito mais alto devido ao papel de um atravessador, que pode multiplicar os preços em até dez vezes comparado ao valor de produção. Em meio à crise, uma alternativa mais simples e barata foi revelada. As políticas públicas certas podem fazer toda a diferença no apoio a esses preços mais acessíveis, explica Lorena, especialmente se elas atendem à demanda de longa data por reforma agrária. “Saúde garantida para toda a população não pode ser alcançada sem uma reforma agrária adequada”, ela frisou, o que valoriza “os pequenos produtores ou agricultores”.
O projeto ganhou força e visibilidade em apenas alguns meses e beneficiou favelas de todo o Complexo da Penha, incluindo Estradinha, Vila Cruzeiro, Quatro Bicas, Terra Prometida, Chatuba e Grotão. “As cestas básicas de comida [fresca] foram distribuídas primeiro aos que haviam se registrado em uma lista que comunicamos”, disse Lorena. “Mas também acabamos distribuindo para aqueles que pediram quando chegamos.”
O projeto tem como objetivo avançar na promoção da agricultura urbana no Complexo da Penha. Lorena disse que planeja acompanhar as famílias e ajudá-las a avançar em direção à autonomia alimentar, em vez de depender da caridade para acessar alimentos saudáveis. Já Ana Santos considera que “sabemos que só é possível pensar um futuro a partir da agroecologia, pois ela não só valoriza o conhecimento local, como [também] fortalece a produção de alimentos saudáveis nos quintais, mantendo o verde na favela e fortalecendo nossa autonomia”.
Élida Nascimento: Projeto Inclusão
Élida Nascimento lançou o Projeto Inclusão em 2014, depois de perceber a necessidade de melhorar a educação voltada a crianças e adolescentes no Éden, seu bairro em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Ela queria que sua iniciativa mostrasse às crianças que o mundo é maior que sua comunidade e as incentivassem a alcançar os objetivos traçados por elas mesmas.
Depois de suspender as atividades educacionais devido à crise da Covid-19, o projeto organizou uma vaquinha online, o que lhes permitiu começar a distribuição de produtos frescos e orgânicos para as famílias do Éden. Élida explicou: “A gente conseguiu distribuir algumas cestas básicas, e com o dinheiro a gente começou a pensar em colocar produtos frescos, porque não tem como negar que é a melhor prevenção. Muitas doenças vistas no hospital são causadas pela má alimentação”. A educadora acrescentou, “alimentos saudáveis e seu valor nutricional ajudam a fortalecer nossa imunidade. Mas a gente está vendo que o meio da gente conseguir lidar com essa doença é a prevenção, pois não tem cura, não tem vacina ou remédio”.
Élida defende que o projeto busque ser solidário com os necessitados, pois as “pessoas vulneráveis são as que precisam de acesso à alimentação nutricional”. Ela acredita firmemente na soberania alimentar e defende o direito de todos os moradores terem autonomia sobre a escolha do que comem.
Élida explica que a maioria dos brasileiros não tem uma dieta saudável, e que observou isso diretamente enquanto trabalhava com as crianças da comunidade. As crianças não estavam acostumadas a comer alimentos nutritivos, diz a educadora, então, ao longo dos anos, ela assumiu como missão familiarizá-las com a ideia de que uma dieta fresca e saudável traz força física e emocional. A campanha do projeto para incentivar a compra de produtos frescos deu frutos: “A gente começou inserir esses alimentos na alimentação das pessoas e elas gostaram e começaram a trocar receitas em um grupo no WhatsApp”.
De fato, essas iniciativas surgiram como uma resposta direta à incapacidade do governo de fornecer serviços básicos aos cidadãos mais vulneráveis. A resposta insuficiente à pandemia da Covid-19 no Brasil revelou o papel crucial desempenhado por esses “atores invisíveis” que tentam compensar negligências históricas por parte do Estado. “Pela falta do governo, a gente teve que criar as nossas próprias ações”, revela Élida. “São poucas, são pequenas, mas têm feito a diferença em nossas comunidades, e a comunidade abraçou e gostou da iniciativa.”
Élida admite, porém, que a jornada não é fácil e, com o passar do tempo, o trabalho é impactado por limitações financeiras. A seguir, em sua agenda, a educadora pretende identificar terras em que os moradores possam plantar suas próprias colheitas e cultivar seus alimentos.
Ver também
Soberania alimentar e abastecimento popular de alimentos (artigo)
Lideranças comunitárias e pesquisadores de coletivos de favelas e periferias
- ↑ Artigo originalmente publicado em 20 de julho de 2020 no site do Rio On Watch. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=48806.
- ↑ A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.