Apropriação cultural do capitalismo

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Este verbete reúne reflexões a respeito do debate sobre o que é apropriação cultural e mensura seus impactos.

Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a partir de redes de comunicação.
Casos de Racismo

Definição de Apropriação cultural[1][editar | editar código-fonte]

"Conforme definição do antropólogo Rodney William |1|:

“A apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos. É uma estratégia de dominação que visa apagar a potência de grupos histórica e sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significados todas as suas produções, como forma de promover seu genocídio simbólico. Apropriação cultural e racismo são temas imbricados”.

Apropriação cultural consiste em adotar elementos específicos de outra cultura fora do seu específico contexto e significado. Esse assenhoreamento pode se dar no campo do comportamento, da linguagem, da estética, das artes, da música, da religiosidade, da técnica e conhecimento, enfim, de múltiplos aspectos culturais.

A discussão sobre apropriação cultural não é, como aparenta, um purismo cultural pelo qual só podem usufruir de artefatos ou elementos produzidos por uma cultura aqueles que participaram em sua criação. A questão, conforme a pesquisadora de relações raciais Suzane Jardim, é a relação entre grupos hegemônicos e marginalizados, historicamente marcada por etnocentrismo, preconceito e exclusão. Nesse contexto, a apropriação por grupos hegemônicos dos elementos culturais dos grupos subalternizados ressoa como uma nova faceta dessa experiência histórica de dominação.

A ideia de apropriação cultural não deve ser encarada no campo da individualidade, mas como uma questão estrutural relacionada à sociedade de forma sistêmica. A questão que se coloca é que o uso de determinados elementos culturais fora de seu contexto pode ser desrespeitoso com aquele grupo social, ou a imitação pode soar pejorativa e caricata.

Outra reflexão comumente feita é o fato de determinadas culturas não serem bem aceitas por um grupo cultural dominante, porém, em situações de apropriação cultural, traços de sua cultura se tornarem palatáveis àqueles que rejeitam seu grupo originário pelo simples fato de estarem sendo utilizados por pessoas de fora desse grupo.

Origem da apropriação cultural

A problematização da apropriação cultural é um fenômeno que se desenvolveu no contexto do capitalismo em seu processo de expansão global. Por quê? Por, no mínimo, três motivos. O primeiro é que a indústria cultural transforma cultura em mercadoria, esvaziando-a de outros significados para lhe imprimir um significado comercial, estético e de entretenimento. O segundo é que a globalização acelerou o contato intenso entre culturas de diversas partes do mundo, não somente por meio das tecnologias, mas principalmente das migrações e diásporas, que concebem sociedades multiculturais, com diversas línguas, costumes e visões de mundo, partilhando os mesmos territórios.

O terceiro é que no florescer das democracias representativas liberais, estreitamente ligadas ao capitalismo, formaram-se grupos políticos de pressão e reivindicação de direitos cuja coesão está vinculada a identidades culturais. São os grupos identitaristas vinculados a movimentos sociais, como os movimentos negros, feministas e de diversidade sexual. Nesse contexto, a construção de identidades se reveste de fundamental importância e requer o resgate de práticas e artefatos que remetem a uma conexão profunda com o passado (ancestralidade) na ânsia de produzir significados no presente secularizado.

Assim, a resistência cultural desenvolvida pelos grupos identitários étnico-raciais, por exemplo, busca elementos originários de povos africanos ou de antepassados escravizados no Brasil para ressignificá-los no enfrentamento ao racismo em sua manifestação contemporânea.

Leia também: Movimento negro – atuação pela igualdade entre negros e brancos

Pontos positivos e negativos

Como ponto positivo, podemos apontar que situações de apropriação cultural possibilitam o diálogo sobre o tema com aqueles que não estão familiarizados. Muitas pessoas praticam apropriação cultural sem terem consciência disso, por isso essa discussão não deve ser reduzida ao campo das relações individuais, tampouco ser norteada pela “política do cancelamento”, mas tratada com ponderação, guardando as devidas proporções de cada situação para não dar lugar à intransigência e desagregação.

Assim, é um momento oportuno à prática da alteridade, para escutar grupos que se sentem constrangidos e repensar práticas que parecem inofensivas, mas para outrem são incômodas, e também para o “letramento racial”, isto é, buscar estudar e compreender os elementos simbólicos de uma etnia à qual você não pertence, mas deseja se aproximar e consumir artefatos. O conhecimento da história e significado do objeto gera aproximação e abre possibilidade para a cooperação com aquele grupo étnico de outras maneiras, como a prática do antirracismo.

Como ponto negativo, quando elementos culturais não brancos são retratados de maneira caricata e estereótipos são reforçados, há a perpetuação do racismo e o esvaziamento do potencial político quando tais elementos são reduzidos a propósitos comerciais.

Consequências da apropriação cultural

Trocas culturais são comuns, constantes e bem-vindas entre diferentes culturas. Qual é a diferença entre troca e apropriação cultural? Na apropriação cultural, existe uma hierarquia bem definida entre os dois povos, de modo que aquele que se apossa dos conhecimentos, símbolos e objetos não oferece uma devolutiva à altura do que recebe – não é uma troca recíproca, mas exploradora. As consequências disso para o povo que sofre esse processo são a expropriação, o esvaziamento, o enfraquecimento, prejuízos num longo arco que vai desde o extremo simbólico do desrespeito, a desarticulação política por direitos até o extremo material de perdas de recursos financeiros, humanos, técnicos, como aponta a professora de Direito Funmi Arewa |2|:

“O empréstimo cultural pode tornar-se apropriação quando reforça relacionamentos historicamente exploradores ou priva os países africanos de oportunidades de controlar ou se beneficiar de seus materiais culturais”.

Exemplos de apropriação cultural

Um exemplo comum de apropriação cultural é uma pessoa que não comunga de determinada religião utilizar como enfeite cotidiano artefatos que para seus adeptos são sagrados, representam proteção ou ligação com o divino.

Outro exemplo é a caracterização com elementos de uma cultura alheia para entretenimento e diversão, como o blackface, que é se pintar de preto e usar peruca de cabelo crespo. Essa prática era utilizada no Brasil nos anos iniciais da televisão, quando atores negros não eram permitidos em novelas e filmes, por isso atores brancos se caracterizavam dessa forma para fazer papéis de mulatos e escravos.

Apropriação cultural é a prática de um grupo cultural dominante utilizar em benefício próprio elementos culturais de um grupo cultural subalterno.

Há também quem utilize blackface para participar de festas à fantasia como o Carnaval. Se você, ao ler isso, pensa ser um exagero, proponho uma reflexão: você acharia engraçado uma caracterização de um judeu a caminho de um campo de concentração? Se a resposta for não, por que uma caracterização jocosa do cruel período da escravidão brasileira seria aceitável?

Um ambiente propício a práticas de apropriação cultural é o mundo da moda. Um exemplo factual é o episódio em que a estilista francesa Isabel Marant foi acusada de copiar um bordado tradicional feito há mais de 600 anos pela comunidade mexicana Santa-Maria Tlahuitoltepec e utilizá-lo em peças vendidas a preços exorbitantes, que não seriam revertidos de nenhuma maneira em benefícios para a comunidade originária que criou o bordado.


Apropriação cultural e o racismo nosso de cada dia[2][editar | editar código-fonte]

Por Marcos Paulo Silva*

Aprofundar no debate sobre apropriação cultural é antes de tudo se colocar na disposição de contribuir para a superação da forma superficial e desonesta com que o tema vem sendo tratado por algumas pessoas recentemente. Apropriação cultural tem a ver com a indústria lucrando com a cultura preta enquanto pretas e pretos continuam morrendo vítimas do racismo, reforçando o que custamos a entender: “Aqui e em outras partes do ocidente a cultura negra é popular, mas as pessoas negras não”.

Tratar dessa questão exige um cuidado especial porque os debates que ganham notoriedade nas mídias e redes sociais partem da perspectiva de uma parcela historicamente privilegiada na lógica de dominação capitalista ocidental colonial/moderna, mestres em reduzir todo o debate à ideia de que não existe de fato um processo sistemático de apropriação cultural, seja porque “cultura não é propriedade”, seja porque “o meu dinheiro pode pagar”.

É verdade que o capitalismo se apropria e mercantiliza todas as culturas, mas isso não quer dizer que não exista apropriação cultural. Aliás, entendemos a apropriação cultural justamente como esse processo através do qual uma cultura dominante toma pra si elementos de uma “cultura dominada”, esvaziando-os de seu significado e sua construção histórica e substituindo-os pelos valores do capital.

“Apropriação cultural tem a ver com dominação, hegemonia cultural, poder, etnocentrismo e capitalismo.” Por trás do chamado multiculturalismo da sociedade moderna, há uma relação de disputa constante entre uma cultura hegemônica que dita padrões de comportamento, e outras culturas minoritárias que brigam para não serem eliminadas dessa relação. Se existissem nessas relações o mínimo de equidade, poderíamos falar em troca ou intercâmbio, mas o que há de verdade é a imposição sistêmica de um jeito branco de ser humano.

Dito isso, falar de apropriação cultural é mais do que falar de uma relação de “consumo no capitalismo tardio”, é antes de tudo descobrir que ao se apropriar dos elementos da cultura negra, por exemplo, classes dominantes não o fazem por desejar para si a cultura em questão, mas como resposta dialética aos movimentos de resistência à hegemonia cultural, ou seja, o capital só se apropria dos elementos da cultura negra porque há uma resistência dessa cultura , e só o faz como forma de retirar dela o seu significado e seu valor históricos, garantindo que a indústria cultural, seu aliado estratégico, determine o valor, o significado e um lugar de subalternidade desses elementos entre nós.

Vejamos o que afirma a blogueira Jô Camilo em seu texto “Apropriação cultural sob uma análise marxista”, de 2015:

“O RAP e o Funk continuam sendo vendidos majoritariamente para a juventude negra e periférica, e continuam sendo considerados “música de bandido” ou “música ruim”, mas agora têm suas letras controladas rigorosamente por um mercado cultural comandado por brancos. A capoeira continua sendo vista como “malandragem” e os dreads continuam sendo considerados “sujos”, mas agora não identificam mais a cultura negra, mas são “patrimônio de todos” em um lugar onde supostamente não existem diferenças raciais por conta da miscigenação. Mantêm-se os juízos negativos racistas, retira-se o caráter de resistência. Eis o verdadeiro sucesso da apropriação cultural dos símbolos negros.”

Portanto com tranquilidade dizemos que apropriação cultural existe, e não está no turbante da menina branca nem nos dreads do menino branco, mas no lugar que esses elementos ocupam na nossa sociedade e na forma como são vistos quando utilizados por pessoas brancas e pretas. É importante salientar que apropriação cultural é um mecanismo de manutenção do capitalismo e está diretamente relacionada à estrutura de dominação de raça e classe e é nesse plano de fundo da luta geral contra a dominação que precisamos compreender esse debate, não no sentido individual, mas como resultado do avanço do capitalismo e, consequentemente, do racismo sobre as culturas de todo o mundo. Dentro dessa perspectiva, a blogueira Jo Camilo lembra:

“É importante trabalhadores brancos se conscientizarem do que significam esses símbolos, de sua história e de sua força organizativa e política para nós, seus companheiros negros, e que essa consciência trazida pela nossa luta, e não a indústria capitalista, determine a forma como cada indivíduo se relaciona com tais símbolos.”

Ademais, sabemos que essa “moda de ser preto” tem revelado o embranquecimento dos símbolos da cultura e da resistência negra de tal forma que a vontade é “tombar tudo” mesmo, mas também não adianta tirar o turbante da cabeça do coleguinha branco sem compreender que na nossa sociedade pós-colonial ainda é o mercado (com toda a sua branquitude) que controla a produção e a circulação da cultura de acordo com a manutenção de seus interesses.

Apropriação cultural, racismo, etnocentrismo ou capitalismo?[3][editar | editar código-fonte]

Por Ana Cláudia Laurindo  Do Repórter Nordeste


Há uma manifesta prova de que não se pode desistir de educar. Hoje sabemos que isso vai muito além das formalidades escolares, e passa pelo conhecimento histórico, humanitário e ético.

Não é possível almejar tal estado de alcance intelectual sem fazer ligações políticas, econômicas e culturais.

Precisamos conhecer identidade, princípios e noções de coletividades. Sim, nós precisamos melhorar a forma de nos relacionarmos com o todo, a partir de nós mesmos.

Há uma seta apontando para a impessoalidade do mercado e a inatingível direção que os fatores econômicos manejam, mantendo lucro e domínio, como pautas inquestionáveis.

As denúncias de apropriação cultural circulam o globo!

Comunidades antigas da Europa são surpreendidas ao verem suas roupagens ancestrais, tecidas milenarmente nas aldeias, sendo expostas em desfiles de moda, e vendidas a preços exorbitantes, sem ao menos citar as origens. E reagem. Geram fatos, entram no páreo e aproveitam o ocorrido para visibilizar a produção local, salvando a arte, gerando renda internacionalmente.

Outras comunidades asiáticas denunciam a prática de atravessadores, que adquirem indumentárias locais a preço exíguo, para revenderem no mundo com extrema valorização, sem jamais repassarem créditos aos verdadeiros donos da criação; ao coletivo que a gerou e mantém.

Indígenas são explorados dentro da mesma proposta, algumas etnias lutam para gerar cooperativas, outras dispersam, mas o que elas vivem em comum é a sanha pelos produtos de suas culturas para vendas externas, porque o mercado percebeu que existe um fetiche em exibir artefatos de cunho identitário, no entanto, transforma essa identidade em mero acessório.

O mercado de turbantes carrega as controvérsias da marginalização do acessório, e a sua ressignificação para uma proposta de modismo, capaz de promover lucro para muito além do território cultural africano, ou da descendência africana no Brasil.

Há reação. O turbante é defendido como algo além de um acessório, e seu sentido político, cultural, identitário é resgatado pelos grupos que assumiram a denúncia da apropriação cultural.

Um objeto de marcenaria, se tornou polêmica em Alagoas, quando em um catálogo de Arranjos Produtivos Locais foi apresentado como “buffet tronco dos escravos”. Uma réplica do objeto de tortura para se pôr na sala.

Por que essa frieza em expor a história dolorosa, carregada pelas vias do etnocentrismo, neste universo capitalista que incentiva o consumo do que representa grupos minorados?

Muito difícil não perceber um risco de sadismo em quem se arvora das tragédias e loucuras humanas, e materializa tais inspirações, vendendo e exibindo o que feriu, humilhou a matou a outros seres humanos.

A violência psicológica que uma focinheira pode promover nós outros não podemos prever, integralmente. Mas quem tem sensibilidade ética não aprova a estética que se apropria de histórias e culturas alheias, para manter lugares de acesso a consumos efêmeros.

Não podemos desistir de educar! Não podemos silenciar. A esperança de humanização passa também por lutas identitárias, e políticas culturais

Ver também[editar | editar código-fonte]