Sistema Socioeducativo
Autora: Kharine Gil
Sobre[editar | editar código-fonte]
Esta publicação integra a monografia "Crianças e Adolescentes no Comércio Ilegal de Drogas" (2021) apresentada à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Serviço Social.
Medidas Socioducativas[editar | editar código-fonte]
As medidas socioeducativas são recentes na história brasileira, uma vez que foram desenhadas e estabelecidas de modo prescritivo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos anos 1990. Nesse contexto havia bastante turbulência política e econômica, pois o Brasil estava passando por uma abertura democrática ao mesmo tempo em que estava se inserindo no neoliberalismo economicamente, sobretudo no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Por outro lado, o ECA buscava ruptura com ideais punitivos e de criminalização presentes nos Códigos de Menores (de 1927 e 1979) anteriores. O conceito de “socioeducação” foi apresentado pelo pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos atores que participaram da formulação do Estatuto. Esse termo teria sido extraído do Poema Pedagógico, de Anton Marakenko, que apresenta sobre uma experiência de educação social realizada com meninos e meninas em situação de rua ou em conflito com a lei em uma colônia na União Soviética, na década de 1920.
A partir disso, a compreensão de “menores infratores” foi substituída por “adolescentes a quem se atribua autoria de ato infracional”, sob uma perspectiva pedagógica que os compreende como sujeitos e como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Cabe ressaltar que a educação social provém de práticas de orientação marxista e seu foco está em segmentos sociais pauperizados e minoritários (SANTOS, 2020).
As medidas socioeducativas, apresentadas no Capítulo IV do ECA, são parte do “Título III – Da Prática de Ato Infracional” e possuem dois aspectos:(jurídico) sancionatório e (ético) pedagógico. Uma vez que o adolescente tem responsabilidades sobre o ato infracional cometido, é oferecido o acesso às políticas públicas, além de condições para a construção da autonomia desse adolescente. No entanto, existem antagonismos entre o modelo ideal da educação social – que visa uma perspectiva pedagógica com foco na autonomia, e na participação social como prática emancipatória – e os padrões da estrutura de uma sociedade inserida no modo de produção capitalista – que visa a criminalização da pobreza e punição (SANTOS, 2020).
Ainda assim, enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, crianças e adolescentes devem receber proteção integral. Com isso, não são passíveis de cumprimento de pena regido pelo Código Penal, ainda que o ato infracional seja considerado como prática análoga ao crime. Desse modo, ainda são responsabilizados por atitudes ilícitas, entretanto, são regidos por medidas socioeducativas, sempre protegidos integralmente (MEPCT, 2017)
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)[editar | editar código-fonte]
Ao que se refere à regulamentação e materialização da garantia de direitos para adolescentes em conflito com a lei, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) possui papel primordial desde 2006. Este sistema faz parte do Sistema de Garantia de Direitos brasileiro, assim como a Saúde, a Educação, a Assistência Social, a Justiça e a Segurança Pública. Ele configura uma continuidade na construção de Políticas Públicas voltadas ao segmento infanto-juvenil, além de orientar o sistema socioeducativo brasileiro atualmente, seguindo princípios, regras e critérios (CONANDA, 2006).
O SINASE segue a mesma linha de compreensão do ECA e, com isso, expressa enormes avanços. Seus princípios prezam pelos direitos humanos; pela responsabilização solidária da sociedade, da família e do Estado em prol da defesa dos direitos de crianças e adolescentes; compreende o adolescente como pessoa em situação de desenvolvimento, assim sendo sujeito de direitos; busca excepcionalidade, brevidade e respeito à pessoa em desenvolvimento na aplicação das medidas socioeducativas; preza pela incolumidade, integridade física e segurança; municipalização do atendimento etc. Além disso, possui parâmetros pedagógicos para o atendimento socioeducativo, que possui diretrizes para enfatizar o aspecto pedagógico desse sistema, em vez de priorizar medidas e ações punitivas (CONANDA, 2006).
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE)[editar | editar código-fonte]
No Rio de Janeiro, as unidades de socioeducação fazem parte do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), órgão que tem a responsabilidade de aplicar as medidas socioeducativas de privação e semi-liberdade no estado. No ano de 2017 foi publicado um relatório temático produzido pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT) do Rio de Janeiro, um órgão vinculado à Assembleia Legislativa do RJ desde 2010. O objetivo deste órgão é realizar visitas periódicas e regulares a espaços de privação de liberdade e aprisionamento, para verificar as condições em que se encontram as pessoas institucionalizadas nesses locais, com o intuito de prevenir a tortura e outros tratamentos cruéis e desumanos (MEPCT, 2017).
DEGASE e arquitetura[editar | editar código-fonte]
No Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) são indicadas as primeiras observações relativas à arquitetura de espaços socioeducativos, a fim de tornar estes ambientes locais onde sejam possíveis desempenhar atividades pedagógicas. Algumas prescrições estabelecidas pelo ECA se referem aos alojamentos com condições adequadas de salubridade e higiene; espaços para realizar atividades de esporte e cultura; local seguro para manter e guardar seus objetos pessoais etc.
No entanto, cabe salientar que, ainda hoje, diversas estruturas do DEGASE são remanescentes das instalações da FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), que por sua vez, herdou as estruturas físicas da SAM (Serviço de Assistência a Menores). Todas refletem uma arquitetura de aprisionamento.
O SINASE (2006) considera que o espaço físico das unidades deve promover o desenvolvimento pessoal, relacional e pedagógico dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Assim, prevê parâmetros arquitetônicos e técnicos que devem ser considerados e cumpridos na execução de projetos de construção das unidades. Entretanto, no Rio de Janeiro, apenas duas unidades de internação foram construídas seguindo os parâmetros do SINASE, o Centro de Socioeducação Irmã Asunción de La Gándara Ustara (Volta Redonda) e o Centro de Educação Professora Marlene Alves (Campos dos Goytacazes). No Centro de Socioeducação Dom Bosco, espaço do antigo Instituto Padre Severino – IPS, funciona, ainda hoje, um alojamento que possui as estruturas físicas do passado. Nele, é onde estão abrigados a maior parte dos adolescentes da unidade, que precisam conviver com insalubridade, baratas, ratos e superlotação (MEPCT, 2017).
É imprescindível levantar a discussão sobre a semelhança estrutural entre inúmeras unidades do DEGASE com unidades do sistema prisional. Além disso, até 2018, o Educandário Santo Expedido funcionou plenamente, internando adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Contudo, indo contra normativas nacionais estabelecidas pelo ECA – unidades socioeducativas não podem estar localizadas em áreas próximas ao sistema prisional – a unidade em questão foi situada ao lado do Complexo Penitenciário do Gericinó, o maior complexo do estado do Rio de Janeiro (MEPCT, 2017).
Em entrevista realizada pela autora para esta pesquisa, com um educador, ex-agente socioeducativo, ex-diretor da Escola João Luiz Alves (DEGASE) e ex-diretor Geral do DEGASE, o profissional narra a realidade do Educandário Santo Expedido, que deveria ter sido um equipamento temporário para este fim, mas se tornou espaço de internação por muito tempo:
"Totalmente ilegal, imoral, insalubre, inadequado. Mas havia uma questão política que impedia a desativação do Santo Expedido. Durante muitos anos foi uma luta dentro do próprio Judiciário, do Executivo e do Legislativo” (Ex-diretor Geral do DEGASE).
Conforme o relatório realizado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (2017), sobre as unidades de socioeducação onde estão inseridos adolescente cumprindo medida de internação:
"De modo geral, a iluminação das unidades e dos alojamentos são precárias. Em todas as unidades visitadas presenciamos a fiação elétrica exposta, trazendo risco aos adolescentes. Os alojamentos necessitam, em sua integralidade, de uma reforma estrutural, especialmente no que se refere à fiação elétrica e às infiltrações. Dentre os aspectos observados, podemos destacar as precárias condições físicas, condições de higiene e insalubridade, mau cheiro e vários relatos de enfermidades adquiridas pelos adolescentes devido à situação do lugar (doenças de pele)” (MEPCT, 2017, p. 54).
Isso expressa a falta de alguns direitos básicos que deveriam ser assegurados aos adolescentes enquanto estão institucionalizados, pois são direitos estabelecidos pelo Estatuto que os concebe como pessoas em desenvolvimento a serem protegidas.
DEGASE e educação[editar | editar código-fonte]
Há, no Rio de Janeiro, certa particularidade no sistema socioeducativo, pois, desde 2008, é o único sistema do país inserido na estrutura de uma secretaria de estado de educação (SEDUC) e não em uma secretaria de segurança. Entretanto, a despeito disso, ainda não é possível considerar que as unidades do DEGASE se assemelhem a ambientes escolares. Além disso, todas as unidades de internação possuem escolas funcionando em seu interior, porém, não são todos os adolescentes internados que conseguem acesso a elas ou a outras atividades educativas, como cursos profissionalizantes e atividades de esporte (MEPCT, 2017).
Em muitas visitas realizadas pelo MEPCT às unidades de internação, não havia funcionamento de escolas nem a realização de aulas:
“Não é crível pensar que houve uma coincidência, conforme tentam convencer as direções dos estabelecimentos e/ou das escolas, de que nesses dias ocorreram problemas pontuais como a falta de professores, corte de luz, dia de aplicação de provas, falta de agentes para levar os adolescentes ao colégio, que o café da manhã impediu a saída dos jovens e tantas outras alegações ouvidas ao longo dos últimos anos no momento em que estão sendo realizadas visitas regulares de monitoramento.” (MEPCT2017, p. 60).
Em vista disso, pode-se observar dois pontos: muitos adolescentes, que já tenham passado por evasão escolar, voltam a estudar quando são internados em uma unidade socioeducativa. Porém, também é possível constatar que, para inúmeros adolescentes, há uma ruptura com os estudos quando se inserem no sistema, seja por falta de vagas ou pelo não funcionamento regular. Além disso, este é um problema que muitas famílias enfrentam, pois são inscritas no Programa Bolsa Família e para o recebimento do benefício é preciso que todas as crianças e adolescentes do núcleo familiar estejam frequentando a escola (MEPCT, 2017).
Assim, percebe-se que a proteção integral ao adolescente, que também possui a educação como base, não é realizada de forma plena.
DEGASE e saúde[editar | editar código-fonte]
Em Maio de 2014, pela portaria Nº 1082, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI), que abrange os regimes de internação e internação provisória, além das medidas socioeducativas de meio aberto e fechado. A partir desta Lei, foi assegurada a esses jovens a atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), englobando a promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde (MEPCT, 2017).
Por outro lado, o acesso à saúde é dificultado no interior das unidades, assim como outros direitos que deveriam ser direcionados aos adolescentes. Um grande problema enfrentado por eles é a lógica de segurança que existe na instituição, em detrimento da lógica do acolhimento. Em inúmeras situações, a mediação entre os adolescentes e a equipe (composta por Médicos; Terapeutas Ocupacionais; Assistentes Sociais; Psicólogos e profissionais da Enfermagem) é feita por agentes socioeducativos. Por esse motivo, seus pedidos e necessidades não são atendidos de imediato.
No interior das unidades de internação funcionam ambulatórios de saúde, compostos por médicos, enfermeiros e dentistas, mas o acesso dos adolescentes a esses espaços também é mediado pelos agentes socioeducativos. Este foi o relato de internos do sistema para o relatório do MEPCT (2017):
“[...] Por vezes os agentes “fingem não ouvir, dizem que não é nada, que o garoto está inventando para sair do alojamento”, ou, ainda “mandam calar a boca, xingam e ameaçam””. (MEPCT, 2017, p. 72).
Além da saúde física, o cuidado com a saúde mental deve ser tratado como fundamental em espaços de privação de liberdade. No interior das unidades existem pequenas equipes de saúde mental que realizam atendimentos e também buscam referências em serviços exteriores às unidades, como os Centros de Atenção Psicossocial InfantoJuvenil (CAPSi), que está presente em algumas unidades. Porém, a dinâmica destes espaços dificulta enormemente um atendimento em saúde mental voltado para o desenvolvimento de vínculos familiares e que possua escuta qualificada. Para a enfrentamento destes problemas, é essencial a participação de equipes da atenção básica de referência, assim como o CAPSi, para discutirem casos clínicos; discutirem a qualidade dos atendimentos e elaborarem planos para melhora; colocarem em pauta medicalização referente à saúde mental; abordarem sobre o isolamento que acontece com adolescentes que apresentam agitação ou sintomas de sofrimento; e contenções físicas por parte dos agentes no DEGASE. (MEPCT, 2017).
DEGASE e violência[editar | editar código-fonte]
Diante do exposto, pode-se considerar que a socioeducação seja secundarizada no interior das unidades, enquanto a lógica punitiva e prisional toma espaço na instituição.
“A reiterada utilização de algemas em quaisquer deslocamentos externos dos adolescentes, o uso recorrente de spray de pimenta, armas de eletrochoque (teaser), a ritualização da “cabeça baixa e mãos para trás, em fila indiana” remetem a uma lógica militarizada, disciplinadora e punitiva, que fere a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral”. (MEPCT, 2017, p. 82).
O MEPCT (2017), durante a realização de visitas para monitoramento, verificou que existem situações chamadas de “convivências protetivas”, que são momentos em que adolescentes passam isolados dos demais. No entanto, isso é contra normativas nacionais e internacionais referidas aos direitos de crianças e adolescentes. Além disso, inúmeros internos relataram agressões físicas e verbais por parte dos agentes, desde socos e pontapés à utilização de barras de ferro. Por outro lado, existem, também, situações de violência que acontecem entre os adolescentes internados e, um forte motivo para isso, são as divergências envolvendo facções criminais. Sobre essa questão, o ex-diretor Geral do DEGASE, entrevistado para esta pesquisa, argumenta que:
“A questão com as facções é histórica dentro do sistema educativo e ela ficou mais forte com a ida dos adolescentes para o Santo Expedido, pois a proximidade dos adolescentes com o sistema prisional de adulto e com a prática dos funcionários do sistema prisional contaminou o sistema socioeducativo.” (Ex-diretor Geral do DEGASE).
Considerações finais[editar | editar código-fonte]
Essas breves considerações sobre o Sistema Socioeducativo demonstram como há uma dualidade entre os conteúdos normativos expressos em leis e a realidade cotidiana institucional, que expressa a condição seletiva e desigual de jovens brasileiros, sendo esta uma contradição no campo das políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes.
Referências[editar | editar código-fonte]
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Resolução Nº 119, de 11 de dezembro de 2006. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília, DF: 2006. Disponível em: http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-imprensa/publicacoes/sinase.pdf. Acesso em 23 de março de 2021.
MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA (MEPCT). Presídios com nome de escola: inspeções e análises sobre o sistema socioeducativo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://elasexistem.files.wordpress.com/2017/12/relatc3b3rio-temc3a1tico-2017-presc3addios-com-nome-de-escola_-inspec3a7c3b5es-e-anc3a1lises-sobre-o-sistema-socioeducativo-do-rio-de-janeiro.pdf. Acesso em: 23 de março de 20211.
SANTOS, A. C. A. “Socioeducação”: do ideal da socioeducação ao purgatório das vidas matáveis. O Social em Questão – Ano XXIII. Rio de Janeiro, n. 46, p. 187-202, jan./abr., 2020.