A sensualidade em festa (artigo)
O título completo da obra é: A sensualidade em festa - Algumas representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX.
O texto discute a chegada de viajantes europeus ao Brasil no século XIX, após a abertura dos portos e a instalação da Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro. Influenciados pelo Iluminismo e por uma visão etnocêntrica, esses viajantes estranharam a liberdade corporal das populações locais, especialmente das mulheres negras e mulatas. Suas impressões resultaram em representações marcadas por discriminação de classe, gênero e raça. Apesar do moralismo que traziam, demonstravam grande fascínio pela exposição dos corpos, reforçando a teoria de Foucault sobre a "explosão discursiva" em torno do sexo na Europa e sua influência nos racismos dos séculos XIX e XX. A obra avança e revela como isso corroborou para o comportamento e pensamento social brasileiro ao longo da história.
Autoria: Rachel Soihet[1]
Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]
Desde iniciado o século XIX, com a abertura dos portos brasileiros, estabelecendo se a Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro, sobrevêm a entrada de homens e mercadorias, viajantes que vêm observar o mercado nascente como também os costumes e as possibilidades abertas por aquela iniciativa. Impregnados das idéias iluministas, convictos da superioridade de sua cultura e de sua raça, além de terem passado por um processo civilizador que mesclado ao cristianismo acentuou a contenção das manifestações corporais, aqui chegados, manifestam grande estranheza diante da liberdade com o corpo revelada, especialmente, pelas negras e mulatas.
Como resultado desse encontro com grupos de culturas e classes diversas, com pluralidade de significados quanto à relação com o corpo, os referidos viajantes constroem imagens, representações e visões sobre tais costumes, informadas pela sua experiência cultural e pessoal, nas quais o etnocentrismo, a discriminação de classe, de gênero e de raça constituíram-se numa marca. E o aparentemente paradoxal é que tão mergulhados nessa atmosfera moralista sejam pródigos em referências minuciosas, acerca da exposição dos corpos, especialmente, de mulheres, repetindo-se em detalhes acerca do transbordamento de sua sensualidade.
Por outro lado, lembrando a observação de Ginzburg de que mesmo "uma crônica hostil pode fornecer testemunhos preciosos”, a literatura deixada por estes viajantes constitui-se numa documentação ímpar para os historiadores e historiadoras preocupados com o cotidiano das pessoas comuns e com suas manifestações culturais. Nesse sentido, embora atravessados por seus preconceitos, os relatos e iconografias deixados por esses viajantes nos permitem o acesso a um universo, via de regra, caracterizado por sua opacidade nos estudos históricos tradicionais – aquele da festa, da dança e do corpo....
Assim é que os naturalistas Spix e Martius admirados com a facilidade com que “o brasileiro é estimulado a dançar (....) pelo canto e pelo som do instrumento” ressalvam que tal ocorria “nas sociedades cultas com delicadas contradanças”, enquanto entre os negros “ela se manifesta com gestos e contornos sensuais...”. E em um desenho de sua autoria de um batuque em São Paulo, as mulheres negras são mostradas com os braços para o alto, pernas e bocas abertas, expressando imenso prazer, imagens que em tudo se contrapunham ao esperado, na época, de mulheres bem comportadas.
Os autores não são nada econômicos na representação dessas imagens que consideram denotativas de lascívia, imoralidade, grosseria. “Pantomima desenfreada”, “dança obscena” são algumas das adjetivações por eles empregadas, em sua narrativa sobre a referida dança, destilando seu preconceito com a sensualidade e a falta de civilidade que consideravam extravasar daqueles corpos.
Em contraponto, tal testemunho nos faz perceber que as referidas mulheres, em sua maioria escravas, em que pese suas dificuldades de vida e as censuras que suas atitudes provocavam, não se rendiam a tais obstáculos, buscando aproveitar ao máximo o prazer proporcionado pelo movimento de seus corpos. Dado que se depreende, inclusive, da observação dos autores de que o batuque era a dança “preferida da classe inferior do povo que dela não se priva, nem por proibição da Igreja”. Elemento, igualmente, que confirma a tese de Bakhtin, acerca do uso pelos populares do corpo como um centro de resistência e de crítica dos significados oficiais.
Um outro viajante, o francês Charles Expilly que esteve no Rio de Janeiro em 1853, narra um acontecimento no Campo da Aclamação em que uma “negra”, ao deparar-se com um grupo de “negros de ganho” que cantava ao som de uma “harmonia selvagem”, larga a lavagem de roupa de seus senhores e se põe a dançar ....
Observa-se por parte do viajante, uma demonstração de censura a esse comportamento da mulher que deixava seu trabalho para participar dessas manifestações. Não lhe ocorria, porém, que este era um comportamento próprio de sociedades pré-capitalistas em que o tempo do trabalho e do lazer se mesclavam. Fato que incomodava, profundamente, aos europeus vindos de sociedades, já mergulhadas no capitalismo, onde imperava a rígida disciplina do tempo nas fábricas e indústrias. Mas cujas observações nos esclarecem, acerca da autonomia de que desfrutavam tais homens e mulheres na gestão de seu tempo, não se deixando intimidar no tocante à prática de suas diversões, fonte de prazer e de identidade; afastando a concepção 5 Mikhail Bakhtin.
Também, não escapava a Expilly a crítica à “dança demoníaca” da lavadeira que “estremecia com cadência, percorrendo toda a praça” ao som de uma “música improvisada”. E, são recorrentes as observações, acerca do caráter voluptuoso dessas danças, pormenorizando suas características sensuais. O batuque é objeto de inúmeras referências, ressaltando-se “suas atitudes finas de lascívia, que o urucungo acelera ou retarda” assim como aludindo a “certos movimentos do corpo (....) demasiado expressivos; (....) principalmente as ancas que se agitam; enquanto o dançarino faz estalar a língua e os dedos”8. Ao que acrescenta Ribeyrolles: “alegrias grosseiras, volúpias asquerosas, febres libertinas, tudo isso é abjeto e triste; porém, os negros apreciam essas bacanais, e outros tiram dela proveito. Não será isso um meio de embrutecimento?”9 Preguiça, indisciplina, luxúria, grosseria, selvageria eram algumas das características que emergiam da apreciação desses estrangeiros, acerca das manifestações negras, particularmente, quando praticadas pelas mulheres que chamavam sua atenção com sua “dança insolente ou fogosa” e que atraíam irresistivelmente o crioulo e o europeu com “suas formas sedutoras e o cheiro de suas axilas”.
Através de seu discurso expressam sua incapacidade de perceber o outro como diferente, fruto de uma cultura diversa, estabelecendo uma hierarquia na qual tais grupos aproximam-se da animalidade, a partir de seus movimentos, suas formas, seu cheiro, extravasando sua sensualidade sem limites, fato extremamente condenável para aqueles.
Caminhando-se mais para a frente no século não serão mais os viajantes estrangeiros os porta-vozes daquele tipo de fala moralizante e excludente. Na aurora da República discursos similares adquirem legitimidade científica, já que são emitidos pelos médicos e pelos juristas no seu afã de construir uma nação civilizada, a exemplo da européia, particularmente, a francesa. Já no Império, manifestaram-se os médicos de forma reiterada condenando o desejo sexual como uma “força ameaçadora, vulcânica, destrutiva que deveria ser combatida e bem administrada pelo intelecto”
Tal estado de coisas resulta do vulto assumido pelo evolucionismo, corrente hegemônica, naquele momento, que em nome da razão e da ciência postula um destino comum a ser alcançado por todos os povos. Civilização e Progresso são os seus lemas, cabendo o expurgo das crenças e práticas populares, manifestações de atraso e ignorância.
Representativas de um mundo em extinção, não se alinhavam com os valores da modernidade. Por outro lado, elites e populares, não se constituíam em grupos homogêneos e outras propostas coexistiram com aquela que visava uma nação, cuja cultura se pautasse no modelo parisiense. João do Rio, Lima Barreto e outros intelectuais criticaram tais aspirações europeizantes, denunciando o encantamento com o que se entendia por progresso. Enfim, a univocidade não era a tônica desses grupos.
Na década de 20, como resultado da resistência desenvolvida pelos populares, que, apesar de todos os percalços, mantinham suas manifestações, da influência do movimento modernista e das idéias nacionalistas, toma vulto o processo de valorização de suas formas de expressão cultural, passando os populares, gradativamente, a assumir um lugar reconhecido no espaço público. Tal processo assume seu ponto alto após a Revolução de 1930.
Apesar dessa mudança, quanto ao panorama cultural, no que tange ao terreno específico da sexualidade feminina, continua a intolerância. No entanto, o erotismo torna - se cada vez mais explícito, não só entre os populares, como também nas demais camadas. Percebe-se uma crescente determinação das mulheres de darem vazão aos seus desejos e que, na festa, momento tradicional de liberação, encontrava um ambiente propício à sua plena manifestação.
Festas e presença feminina: A Festa da Penha [editar | editar código-fonte]
Assim, não obstante todos os esforços empreendidos pelo Estado, pelos líderes da Igreja Católica, pela maioria dos intelectuais e dos sucessivos comentários, na maioria não muito lisonjeiros, com relação às suas práticas culturais, as mulheres dos segmentos populares não se deixaram capitular, já que, como afirmava Lamberg: são muito amigas de divertimentos, a música, o canto, a dança, o carnaval e também, as festas populares da igreja, fazem-nas perder a cabeça e dias e até semanas antes preparam as suas ‘toilettes’ em que gastam todas as suas economias....13
Refere-se o autor a importância que as festas populares da igreja assumiam para tais mulheres, no que se observa uma crítica velada na expressão “perder a cabeça”, transgressão das mais sérias para uma cultura que postulava o primado da razão e esta é uma parte do corpo que bem simboliza tal aspecto; além disso as referidas mulheres “gastam todas as suas economias” em festas, fato condenável no sistema capitalista que requer o equilíbrio do orçamento....
A Festa da Penha foi uma destas festividades que, ao contrário das demais encontrou seu apogeu nos fins do século XIX e inícios do XX, mais precisamente nos primórdios da República. Nela viviam os populares um grande momento, sem uma demarcação rígida entre o sagrado e o profano, categorias que aí se mesclavam.
Um quadro caleidoscópico resultava dessa variedade de grupos com culturas diversas, cujo significado utópico nem mesmo o tom preconceituoso do trecho consegue retirar:
Em cada canto formava-se um “samba”, os “cordões” emendavam-se uns aos outros interminavelmente (...) Ora à frente de uma barraca um grupo de pretas descalças cantava e dançava batendo palmas e sacudindo o corpo desengonçadamente.
Ora em outro ponto acompanhado da rouquenha viola um português tirava o “fado” em desafio. Adiante um grupo de italianas banhadas de suor saltavam na sua dança dura e sem cadência ao som lerdo da sanfona. Em cima de uma mesa um capadócio acompanha ao violão a modinha em que uma rapariga desdentada se esganiça tragicamente.
De um lado os tambores e pandeiros, de outro lado as trombetas de barro e os “pios de bambu”14. Esta promiscuidade era intolerável para os grupos que assumem o poder com a República e que consideram tais manifestações retrógradas, incompatíveis com a nova fase em que ingressava o país. Além disso, em um momento de consolidação do trabalho livre, urgia canalizar a energia dos populares para esta atividade e a sua freqüência às referidas festas, nas quais abundavam comidas, bebidas, jogos, onde o apelo do sexo tornava-se mais forte, se constituiria num empecilho ao objetivo visado.
Também a Igreja Católica, depois de um período de compromisso e aceitação das formas de participação popular nos festejos religiosos, em nome do espírito romanizador, passa a uma atitude de oposição ostensiva, desenvolvendo o combate ao “catolicismo popular”, exigindo a depuração desses eventos, cerrando fileiras com o sistema de poder vigente. Verifica-se, de sua parte, o esforço para o esvaziamento das festas e devoções tradicionais, não participando delas e condenando os excessos nelas cometidos como a dança, a bebida e o mau uso do dinheiro recolhido pelos devotos.
Os antigos santos de devoção vão sendo substituídos em nome de um culto que favoreça à prática dos Sacramentos e a uma subordinação maior à hierarquia eclesiástica15. O padre Alves da Rocha indicado em 1909 para capelão adjunto da Irmandade da Penha e promovido a primeiro capelão em 1918, constitui-se num seguidor exemplar dessa tendência da Igreja, buscando retirar daquela festa seu conteúdo popular. Argumentava que “esta se transformara em orgia dando lugar a excessos, paradoxalmente, praticados em nome da Santa”. Para isto recorreu à força, apelando mesmo para a repressão policial. Além da proibição da venda de álcool, foi impedida a presença de ranchos, blocos e rodas de batucada na Penha16. Na esteira dessa posição temos um depoimento posterior de uma liderança eclesiástica, calcado nos discursos da época, em que o problema de excessos da carne “a origem de todos os pecados”’, permanece extensivo e obsessivo.17.
A Penha, por motivos já enumerados, vivia num perigoso parêntesis da sua tradição religiosa. As festas de outubro eram perturbadas por cenas repugnantes, impróprias das festividades da Igreja. A habitual romaria transformava-se todos os anos em bacanal vergonhoso aviltado por crimes hediondos e desordens abomináveis.
Segundo o autor, Pedro Ribeiro, a romanização consistiu na ação reformadora dos bispos, padres e congregações, cujo objetivo foi moldar o catolicismo brasileiro conforme o modelo de Roma. Seus traços essenciais residiam na espiritualidade centrada na prática dos sacramentos e o senso da hierarquia eclesiástica. Na verdade, a romanização foi o processo através do qual o aparelho eclesiástico assumiu o controle efetivo do aparelho religioso no seu todo.
Princípios de honra e de sólida contextura moral, a freqüentava, pois não queria expor-se e os seus, à contemplação do panorama sórdido provocado pela licenciosidade dos maltezes que até as fraldas do santuário iam, não levados pela fé, mas para dar livre e impúdica expansão ao seu libertinismo repugnante!18
A repressão[editar | editar código-fonte]
Em conseqüência, o preconceito e a intolerância, difundidos nos mais variados setores, com relação à Festa da Penha, no momento do ingresso do Rio de Janeiro na modernidade, foram acompanhados por inúmeros desmandos das forças repressivas sobre os populares que ali compareciam. Aliás, tais forças tiveram, nessa ocasião, aumentados os seus contingentes de atuação na festa, tornando o seu policiamento “quase uma operação de guerra”19.
E a preocupação com a presença dos ritmos de influência africana, estimulando a sensual movimentação dos corpos ocupavam espaço privilegiado. “O arraial visto de cima do morro, mais parecia uma aldeia selvagem do interior africano do que um recanto do Rio de Janeiro”, afirmava um testemunho, acentuando que o samba dava “a nota bárbara do ritmo grosseiro de sua música, que por vezes tomava aspectos macabros pela cadência rude e monótona que lhe emprestavam os seus intérpretes”.
E, à volta da “orquestra” (pandeiros, tamborins, cuícas, violão e flautas), homens e mulheres se contorciam e se agitavam, elevando os braços à altura, como se chamando a atenção da virgem para a “grandiosidade” do espetáculo. Uma verdadeira bacanal da Grécia ou da Roma Antiga. É explícito o propósito de atribuir a este tipo de manifestação, além do caráter atrasado, grosseiro, bárbaro, o de depravação, obscenidade, de insulto à moral, em função da excessiva sensualidade tropical, estimulando a emergência de paixões viciosas:
“embaixo de cada árvore do extenso parque, pares de namorados insultavam, com seus arroubos de carinho, o pudor de qualquer pessoa decente que, desprevenida, olhasse em sua direção”. Justificava o texto, com todos esses argumentos, o fato de que “não raro a polícia era forçada a intervir para pôr ordem nos festeiros”20.
Raul Pompéia, o conhecido escritor, igualmente, preocupa-se com os tão comentados excessos da orgia campestre que o ‘rendez-vous’ religioso ocasiona, apontando a sensualidade ali presente, quando no centro da roda que se fecha, a mulata requebra-se e canta, afogada pela curiosidade sensual...21 Por outro lado, suas observações revelam a resistência dessas mulheres que mantendo suas manifestações, suas danças, seus bamboleios, fazem da referida festa um balão de ensaio para a primazia que sua cultura atingiu no carnaval carioca.
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Sinônimo de liberação e abolição de hierarquias, privilégios, regras e tabus em que a comida, a bebida e a sexualidade assumem enorme importância, o carnaval era de todas as festas aquela que mais inquietações provocava. E uma característica dos populares no Rio de Janeiro, na virada do século, particularmente de sua parcela feminina foi a de garantir nela o seu espaço, dando lugar à movimentação e exibição de seus corpos, não obstante os preconceitos que enfrentavam.
A Praça Onze constituiu-se no ponto alto do carnaval dos populares, para onde acorriam negros, mestiços e brancos mais humildes, residentes nas casas de cômodos da periferia do centro, dos subúrbios e favelas. Uma das matérias sobre esse carnaval destaca o exotismo, a mestiçagem, o som dos instrumentos excêntricos, a festa de "gritos e urros", em meio dos quais a Praça Onze resplandece. Ambiente no qual África e Brasil se mesclam, seu ponto alto é dado pelas "morenas que se requebram como gatos, felinas e maliciosas, tentando branco e preto, louro e moreno, dançando, rodopiando (...)"22.
Imagens similares sobre o mesmo carnaval podem ser observadas no poema abaixo:
Melopéia negra, melosa, feiticeira, candomblé. Tudo é instrumento, flautas, violões, reco-recos, saxofones, pandeiros, latas, gaitas e trombetas. (...) Dentro dos sons e das cores movem-se os cheiros, cheiro negro, cheiro mulato, cheiro branco, cheiro de todos os matizes, de todas as excitações e de todas as náuseas. Dentro dos cheiros, o movimento dos tatos violentos, brutais, suaves, lúbricos, meigos, alucinantes (...) Missa negra, tragédia negra, magia negra. Triunfa a negra, triunfa a mulata. Música fanfarra, préstito, maxixe, samba.
No noturno da Praça Onze o negro e o castanho dominam os vermelhões das caras, das carnes, das máscaras e das vestimentas álacres, vibrantes (...) Fura a imobilidade ondulante um grupo de baianas, dançando, cantando, saracoteando a grossa luxúria negra, farejadas, seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando lascivos23.
Religiosidade pagã, violência, brutalidade, lubricidade, lascívia, promiscuidade, corpos de mulheres vertendo “a grossa luxúria negra”, provocando a libertinagem de homens desta raça, “gorilas assanhados (....) pulando lascivos” são algumas das mensagens que o texto busca expressar. Os perigos advindos de um local tão estranho eram o pretexto para o desconhecimento que as camadas mais elevadas faziam questão de ostentar com relação à Praça Onze.
Festa perigosa[editar | editar código-fonte]
Frente à disseminação da visão do carnaval como uma festa perigosa, depravada, na qual "as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e (...) inútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga", a imprensa desenvolve forte campanha contra as situações consideradas atentatórias à moral. Difunde, assim, a concepção dos médicos e juristas dos primórdios da República de que o ideal de progresso e civilização passaria, obrigatoriamente, pelo comportamento moral.
Na verdade, através de suas denúncias, a imprensa contribuía para acentuar a rotulação negativa atribuída ao carnaval, nas duas primeiras décadas do século XX, visando dele afastar as mulheres “honradas”24. Em que pese um quadro tão negativo, as pesquisas também demonstram a presença de mulheres aproveitando-se das "falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vão caçar".25 O carnaval constituía-se numa dessas "falhas".
A imprensa, nas duas primeiras décadas do século, invectiva contra a "degradação cada vez maior do carnaval", visando impedir a presença feminina, admissível apenas às mulheres de má vida. Cresce nele, porém, não apenas a participação das mulheres dos segmentos populares, como também daquelas das demais camadas. 26 Sintomaticamente, algumas exibem fantasias consideradas comprometedoras, como a de gigolette.
Tal fato provoca reação e um cronista o atribui à ignorância, ao desconhecimento dessas donzelas de que a gigolette é a prostituta das mais reles, e que em Paris corresponde às "desgraçadas que, no Rio de Janeiro, vivem nas ruas do Regente e de S. Jorge"27. Um outro, depois de lamentar, igualmente, essa "coisa hedionda das mocinhas procurarem imitar as gigolettes, que representam a ralé de uma sociedade", manifesta a visão corrente da menor sensibilidade sexual da mulher.
Ótica de alguns escritores da época: Lima Barreto, Cecília Meireles e Mario Lago[editar | editar código-fonte]
O termo gigolette refere-se à prostituta que mantém o gigolô (homem que vive às expensas de uma ou várias mulheres, em geral, prostitutas) ; a fantasia que a caracteriza é similar à melindrosa. Captamos tal aspecto, a partir de sua própria descrição das moças, seguido pelas ruas da cidade "com um chale aos ombros e mordendo o talo de uma rosa", postura assaz reveladora de suas pretensões sedutoras28.
Cecília Meireles, a grande poetisa brasileira, percebe o significado implícito nesses procedimentos, ao relacionar a escolha da fantasia às aspirações secretas de cada um, referindo-se às "senhoras tranqüilas que sofrem silenciosamente o ano inteiro só com a esperança de aparecerem no carnaval vestidas de gigolettes"29.
Lima Barreto, com sua sensibilidade, também apreende a dimensão oculta na maioria das mulheres de sua época. Rejeita, portanto, as teorias, então predominantes, acerca da menor sensibilidade sexual da mulher, de sua frigidez e recato naturais. Ainda, aproximadamente em 1908, refere-se ao ambiente liberador do carnaval, quando não só os rapazes excedem-se, "saem fora da bitola", mas também, as "moças e senhoras abandonam-se aos impulsos do temperamento".
Relembra que num dos últimos carnavais a que assistiu, à passagem dos cordões, viu duas moças afastarem-se um pouco para o interior do escritório da Gazeta de Notícias; "(...) e lá dentro requebrarem lascivamente com as exigências que um "maxixe" tocado por uma banda de música a passar pedia"30. Num outro momento, o autor traz à tona desejos e fantasias, presentes na maioria das mulheres dos segmentos médios, mas que, pelas imposições sociais, eram levadas a asfixiar, permitindo-se, apenas, breves momentos de um sonhar de olhos abertos. Trata-se, também, de um episódio passado no carnaval.
Nele, Fred confessa à sua irmã Cló a ansiedade que dele se apoderava, ante o desfile dos préstitos no dia seguinte. Torcia pela vitória dos Democráticos, cujo carro do estandarte, um templo japonês, deveria fazer um bruto sucesso. Além disso, "as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas (...) Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Carmen".
Diante desses nomes que lembravam as tão faladas cocottes31, Cló invejou-as, revelando um anseio presente na maioria das mulheres, o de se fazerem sentir como um elemento de sedução. E viu-se ela também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos de bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade. Era o triunfo, a meta de sua vida;32. Assim, apesar da repressão sexual que recaía sobre as mulheres, buscando-se nelas incutir o estereótipo da frigidez feminina, das exigências de virgindade e de sobriedade de conduta, confirma-se o pressuposto de Freud de que a sexualidade, o ingrediente mais poderoso da constituição humana, não pode tão facilmente ser descartado.
Nesse particular, as energias eróticas, insaciáveis e ao mesmo tempo cheias de recursos, lançam mão dos mais inusitados estratagemas, a serviço de sua gratificação33. Outros depoimentos comprovam tal asserção, quando mulheres usualmente recatadas, à aproximação do carnaval, deixam aflorar, mesmo de forma sub-reptícia, seus desejos ocultos.
Mário Lago confessa em suas memórias que, nesses dias, inclusive nas famílias mais austeras, nas quais incluía a sua, eram postos de lado determinados comportamentos tradicionais. Seu pai e seus tios "permitiam às esposas se pintarem com alguma exuberância, e até mesmo fazerem um sinalzinho no canto da boca ou um pouco abaixo dos olhos" coisa impensável no resto do ano, já que era própria das "mulheres da rua Vasco da Gama, desavergonhadas que... sonhavam dormir com um malandro 31 cocotte era a denominação atribuída às prostitutas de luxo, em sua maioria, francesas. E, acrescenta "não era sequer com carmim que elas arroxavam as faces. Faziam a maquilagem com papel de seda vermelho molhado, o que lhes dava um certo ar canalha!34.
Mulheres sonhavam o ano inteiro em se tornar mais belas, mais encantadoras, mais sedutoras durante três dias. Compunham as suas fantasias, penteavam os cabelos, preparavam-se com esmero apenas para serem "vistas"35. Não deixavam de existir as de comportamento mais ousado, como a Manuela, que aparecia perturbadora, vestida ora de cigana, cheia de dourados e medalhas, ora de espanhola, com uma flor vermelha nos cabelos. Ia sempre com os irmãos a bailes no Maracanã, no Boulevar ou em clubes, bailes que nos pareciam difíceis e perigosos36. Em situação similar, havia aquelas também, corajosas, que não se contentavam com meias medidas, buscando assumir sua sexualidade de uma forma mais plena.
Tal aspecto pode ser apreendido da narrativa de Mário Lago, ao referir-se ao "carnaval dos duelos de lança-perfume, iniciadores de muitos namorinhos e até atividades mais conseqüentes". Percebe-se que tais atividades diriam respeito a uma relação mais íntima entre os dois sexos. Fala, em seguida, da iniciativa, por ele considerada audaz, de um grupo de "almofadinhas eróticos", que se exercitam em "bico-de-seio ao alvo com os esguichos de seus rodos metálicos". Para eles, tal jogo do lança-perfume funcionava como uma espécie de teste: Se a mocinha fizesse cara feia e recuasse ante o esguicho gelado e fino, já se sabia que daquele mato não saía coelho e vamos pregar em outra freguesia. Mas não faltavam as mais receptivas a essas experiências, e o risinho nervoso prenunciava vitórias surpreendentes37.
O memorialista não esconde seu preconceito, ao conceber tais "mocinhas" como presa fácil. Não vê no seu gesto uma tentativa de não se vergar à intolerância do momento, dos quais ele próprio, com uma trajetória das mais ricas no cenário artístico e político, não escapa. Assim, não consegue perceber que elas estavam, igualmente, procurando festejar o corpo e extrair o prazer que ele é capaz de proporcionar, ao invés de permanecer numa atitude passiva, conforme lhes era apregoado.
Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]
Rachel Soihet, "A sensualidade em festa: algumas representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX", O Corpo feminino em debate, pp. 177-197, 2003.
* Publicado em Maria Izilda S. de Matos e Rachel Soihet (orgs) O Corpo feminino em debate. São Paulo. Editora UNESP, 2003, p. 177-197. 1 A expressão processo civilizador é aqui utilizada, segundo a significação que lhe foi atribuída por Norbert Elias.O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. 2 Sobre a história do corpo e a sua dependência da cultura, ver Roy Porter. “História do Corpo”.
In Peter Burke (org.). A Escrita da História. São Paulo, Ed. UNESP, 1992, p. 291-326. 2 sexo, na Europa a partir do século XVII e que se constituirá em matéria prima dos racismos dos séculos XIX e XX3.
Michel Foucault. História da Sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 3ª edição, 1980, p. 21 e 29. 4 Johann Baptiste von Spix e Karl Friedrich Phillipp von Martius. Viagem pelo Brasil. V.2. Belo Horizonte/São Paulo, Ed. Itatiaia/Ed. da USP, 1981, p.47. ( A primeira edição deste volume é de 1828) 3
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília, Hucitec/UnB, 1987. 6 Charles Expilly. Le Brésil tel qu’il est. Paris, Arnauld de Vresse Editeur, 1862, p. 52. 7 E.P. Thompson. “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial” Costumes em Comum, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1998 ; Alessandra Frota Martinez. “Imagens Negras”: escravidão e cultura nos relatos de viagem dos século XIX”. in Rachel Soihet (org) Revisitando o NUPEHC. Arrabaldes Cadernos de História. Niterói, Programa de Pós-Graduação em História, 1996, p.50 4
8 João Maurício Rugendas. Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972, p. 154. A primeira edição da obra em alemão e francês é de 1835. O urucungo ou berimbau, citado pelo autor, é um instrumento de percussão de origem africana. 9 Charles Ribeyrolles. Brasil Pitoresco. 1859, p. 38. 10 Charles Expilly. op. cit. p. 93 e Charles Expilly. Mulheres e Costumes do Brasil. São Paulo, Editora Nacional, 1911, p.107. 5
Luzia Margareth Rago. “Sexualidade e identidade na historiografia brasileira” in História e Cidadania. XIX Simpósio Nacional de História da ANPUH. Volume I. São Paulo, ANPUH, Humanitas, Publicações FFLCH/USP, 1998, p. 190. 12 Francisco Guimarães (Vagalume). Na Roda do Samba. Rio de Janeiro, Edição FUNARTE, 1978, p.86/87 6
Moritz Lamberg. op. cit. 7
Jornal do Commercio, 19 outubro, 1911. 8
Pedro Ribeiro de Oliveira. Religião e Dominação de Classes. Petrópolis, Editora Vozes, 1985, p. 285-286;
Pe. Dr. Guilherme Schubert. A Província Eclesiástica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro/Belo Horizonte, Livraria Agir Ed., 1948, p. 127; José Ramos Tinhorão. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis, Ed. Vozes, 1972, p. 177; Augusto Maurício. Templos Históricos do Rio de Janeiro. RJ, Gráfica Laemmert, s/d, p. 125. 17 M. Foucault.op.cit.p.23. 9
Pe. Dr. Guilherme Schubert. “A alma da Penha” in A Província Eclesiástica do Rio de Janeiro. Livr. Agir Ed., 1948. 19José Murilo de Carvalho. Os Bestializados. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1987, p. 142. 10
Festas e presença feminina: A Festa da Penha
Augusto Maurício. Templos Históricos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Laemmert, s/d. p. 125. 21 Raul Pompéia. Obras. Rio de Janeiro, FENAME/ Civilização Brasileira, 1981. 11
O Radical, 12.01.1933. 23 Graça Aranha. “Carnaval”, in Antologia do Carnaval. RJ, O Cruzeiro, 1945, p. 81. 12
O trecho destacado é de João do Rio, “O bebê de tarlatana rosa”in: História da Gente Alegre. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981. p. 58. 25 Michel De Certeau. Artes de Fazer. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994, p.101. 26 Gazeta de Notícias.15.02.1915; A Noite.16.02.1922. 27Gazeta de Notícias, 15.02.1915.
A Noite, 06.02.1922. 29Cecília Meireles. "Carnaval", Diário de Notícias. 07.02.1932. 30Lima Barreto. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. RJ, Ed. de Ouro, s/d, p.131. 14
_______________ História e Sonhos. SP, Graf. Ed. Brasileira Ltda., 1920, p.49, apud Relatório para o CNPq da bolsista de aperfeiçoamento Maristela de Oliveira Chicharo, 1993. 33Peter Gay. A Experiência Burguesa da Rainha Vitória a Freud. A Paixão Terna. SP. Companhia das Letras, 1990, p. 225. 15 qualquer"
34Mário Lago, Na Rolança do Tempo. SP, Círculo do Livro. S/d., p. 134. 35Augusto Frederico Schmidt. O Galo Branco. Páginas de Memórias. RJ, Ed. José Olympio, 1957, p. 197. 36Idem, ibidem , p. 267. 37Mário Lago, op. cit. , p. 136. 16
Ver também[editar | editar código-fonte]
Deus é uma mulher negra?! O tanto de Rosa Egipcíaca que trazemos na vida/avenida
Bate-bolas e resistência do carnaval longe dos holofotes