Ilê Aiyê
Ilê Aiyê é um bloco de carnaval, existente em Salvador, no estado da Bahia, cuja importância vai muito além do carnaval. Dança, música, arte, luta social, negritude. Essas são algumas das palavras que definem o Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil.
Autoria: Conteúdo reproduzido pela equipe do Dicionário de favelas Marielle Franco[1]
Embora seja muito associado ao carnaval, pelo menos para as pessoas que não conhecem a cultura baiana, a verdade é que a influência desse bloco vai muito além de alguns dias de folia.
Quem conhece Salvador, a capital do estado baiano, entende a importância do espetáculo visual e ritmo-musical promovido pelo bloco.
E mais do que isso: compreende a relevância social e cultural da existência desse movimento para a valorização da cultura afro e para a representatividade negra.
Mas para entender a dimensão da relevância desse bloco, é preciso fazer uma viagem no tempo. Olhar para trás e conhecer os movimentos históricos que levaram ao surgimento do Ilê Aiyê é o primeiro passo para atingir esse objetivo.
História de luta e representatividade[editar | editar código-fonte]
March 16, 2023, by Stephane
“Que bloco é esse? Eu quero saber
É o mundo negro que viemos mostrar pra você (pra você)”
Trecho da música “Que bloco é esse?”
Os versos são simples, mas o trecho da música “Que bloco é esse?” é o suficiente para revelar a raiz do Ilê Aiyê.
Fundado em novembro de 1974 por Antonio Carlos dos Santos Vovô, conhecido como o Vovô do Ilê, a história do bloco coincide com um momento histórico importante. Na década de 1970, o mundo assistiu ao surgimento de vários movimentos que lutavam e incentivavam a valorização da cultura negra.
Foi o caso do movimento Négritude, da prisão de Angela Davis (EUA), da criação do Dia da África (ONU) e da independência de vários países africanos, como Cabo Verde, Angola e Moçambique, entre outros eventos.
Foi nesse contexto que surgiu o bloco Ilê Ayê, que chegou com uma proposta até então inédita no país: um bloco formado exclusivamente por negros.
Na época, a ideia desagradou vários setores da sociedade, mas não houve desistência e o projeto seguiu em frente.
Sediado no terreiro Ilê Axé Jitolu, localizado na ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade em Salvador – Bahia, o bloco ocupou uma periferia majoritariamente negra da capital baiana.
Nesse local, o Ilê funcionou por aproximadamente 20 anos, onde foi estabelecido a diretoria, a secretaria, o salão de costura e a recepção de associados do Ilê Ayê.
E sua estreia no Carnaval de Salvador não demorou muito. Em 1975, o bloco saiu às ruas da capital baiana pela primeira vez, como o Vovô do Ilê tocando timbal. Aliás, o nome que ele tinha pensado para o bloco era bem diferente do que ganhou fama nacional e internacional.
Mas essa é outra história…
A origem do nome[editar | editar código-fonte]
Inicialmente, Vovô do Ilê queria que o bloco ganhasse o nome de “Povo Negro”. No entanto, diante do racismo que havia na época, ele consultou Mãe Hilda, que desaconselhou o uso desse nome.
Aliás, Mãe Hilda é outra figura de extrema importância na história do Ilê e que atuou, durante boa parte da existência do bloco, como conselheira espiritual do Ilê.
Por isso, o nome escolhido foi inspirado no próprio nome do terreiro. As palavras que podem causar estranheza, na verdade não fazem parte da língua portuguesa.
Elas vêm do idioma iorubá, utilizado durante séculos em diversos países do continente africano, como Nigéria, Benim, Togo e Serra Leoa.
Nesse idioma, a palavra Ilê significa casa, e Aiyê, significa terra. Por isso, a tradução do nome pode ser entendida como “nossa casa” ou “nossa Terra”, indicando a ligação do bloco com as heranças dos orixás e com os costumes sociais e culturais da mãe África.
Ou seja, o próprio nome do bloco é utilizado para lembrar a representatividade e o empoderamento da população negra.
Cores e texturas: a identidade visual do bloco[editar | editar código-fonte]
Acompanhando seu momento de formação, as cores, trajes e estampas até hoje utilizadas por seus integrantes, também foram definidas. Em 1978, o artista Jota Cunha criou a identidade visual do bloco: uma máscara.
A máscara africana com quatro búzios abertos na testa e que formam uma cruz foi batizada de perfil azeviche.
E a escolha desse objeto revela um simbolismo poderoso. Afinal, a máscara, que pode receber outros nomes dependendo de cada etnia, é um objeto ritualístico importante em diversas culturas africanas, representando a natureza, a humanidade, a coletividade e a transcendência espiritual.
Além da máscara em si, suas cores também carregam diversos significados. O azeviche, por exemplo, é um tipo de mineral negro que é associado ao barro preto das terras de Liberdade e, ao mesmo tempo, à pele negra.
Já os traços brancos representam a paz; o amarelo faz referência à beleza e riqueza cultural; enquanto o vermelho lembra o sangue do povo negro que foi derramado durante as lutas por libertação.
Se inspirando nessas cores, Dete Lima, estilista do Ilê Aiyê, desenvolveu os turbantes com amarração e as fantasias com tecidos estampados que destacam os integrantes e se tornaram a marca registrada do bloco.
Além disso, o Ilê também resgatou o uso de enfeites de palha, contas e búzios em suas roupas e adereços, permitindo a formação de um visual rico de cores, texturas e sensações.
Beleza Negra[editar | editar código-fonte]
“Oh! Minha beleza negra, negra
Oh! Minha deusa do Ébano
liberdade Ilê Aiyê
Sonho lindo Curuzu”
Trecho da música “Deusa do Ébano II”
Ainda na década de 1970, aconteceram dois eventos marcantes que mudaram para sempre a história do bloco.
Diante do crescimento do Ilê, o Vovô do Ilê, que naquela época estava no auge da juventude, deixou seu emprego no polo petroquímico de Salvador para se dedicar ao bloco, o que fortaleceu o movimento.
O segundo evento marcante ocorreu em 1979, quando foi criada a Noite da Beleza Negra, que é realizada até hoje. Através desse evento, que costuma ser realizado cerca de 15 dias antes do Carnaval, a beleza da mulher negra do Brasil é exaltada.
Para isso, nessa mesma noite é realizado um concurso para a escolha da “Deusa do Ébano – a Rainha do Ilê”, que ocupa lugar de destaque durante o desfile anual.
A discografia do Ilê Ayiê[editar | editar código-fonte]
Apesar do sucesso na década de 1970, o primeiro disco do bloco só foi gravado em 1984 e recebeu o nome de Canto Negro I. Desse disco, as músicas “Que bloco é esse?”, “Mãe Preta” e “Depois que o Ilê passar” são alguns dos destaques.
Em 1989, o segundo disco do bloco, Canto Negro II, foi lançado. Mas foi somente na década de 1990 que as músicas do Ilê Ayê e de outros blocos afros da Bahia, como Araketu e Olodum, ganharam espaço no show business e começaram a fazer grande sucesso entre o público.
Em 1992, por exemplo, a cantora Daniela Mercury lançou o disco O Canto da Cidade. Uma das faixas do disco, a música “O Mais Belo dos Belos”, é resultado da união entre duas canções do Ilê Aiyê: “A Verdade do Ilê” e “O Charme da Liberdade”.
Na mesma década, o bloco ainda lança outros dois discos icônicos. Em 1996 é realizada a gravação do terceiro disco do bloco: o Canto Negro III. E em 1998, o que muita gente não imaginava aconteceu: a gravação do disco Ilê Aiyê 25 Anos, um marco na história do bloco.
O tempo passou e o Ilê continuou sua trajetória de sucesso. Por isso, em 2015 foi realizada a gravação do CD e DVD, intitulado Bonito de se ver, em comemoração aos 40 anos do Ilê Ayê.
Mas por que será que o som do Ilê Aiyê faz tanto sucesso? Com mais de 40 anos de história, a música contagiante produzida pelo bloco contribuiu muito para esse sucesso.
Que música é essa?[editar | editar código-fonte]
“Bom batuque é mais que um bloco
É nosso estilo de vida
Ilê Aiyê
Beleza negra, vencendo, fera ferida”
Trecho da música “Bom Batuque Ilê Aiyê”
Uma infinidade de instrumentos musicais é responsável por criar a atmosfera musical característica do Ilê Aiyê. Seus músicos habilidosos e dedicados ao bloco conseguem transformar a multidão de sons numa música contagiante que agita os fãs e admiradores do Ilê.
Nos eventos menores, cerca de nove músicos compõem a orquestra do bloco. No entanto, para o Carnaval e datas especiais, o conjunto musical chega a ser formado por até 100 instrumentistas.
Os surdos na percussão; os martelos, que alimentam o fundo; os repiques agudos, que ficam na frente da orquestra; o agogô, o chocalho, a caixa e os famosos tambores, são alguns dos instrumentos utilizados para construir o ritmo do bloco.
Com o apoio desse corpo musical, a melodia do bloco conquistou o público e transformou a música no principal ato de expressão do Ilê.
Foi assim que o samba afro e suas letras alegres e carregadas de clamor social, transformou o Carnaval numa festa ainda mais bonita, misturando alegria com valorização da cultura e da população negra do país.
Mas a atuação do bloco não se restringiu apenas ao universo musical…
Além das trincheiras musicais: Educação e Cultura Negra[editar | editar código-fonte]
“Ouve meu canto de dor
O negro Se libertou.”
Trecho da música “No Tempo do Pelourinho”
Diferentemente de outros blocos, o Ilê não atua apenas durante os dias de folia. Ao longo de toda sua história, o bloco estendeu suas ações para diversos setores da comunidade, promovendo a defesa de questões éticas e ações educativas e de transformação social.
Além disso, em diversos momentos, o bloco abordou assuntos ligados à temática negra, que muitas vezes, não eram abordados nas escolas brasileiras.
Entre 1976 e 1988, por exemplo, o Ilê escolhei trabalhar temas que contassem um pouco da história do continente negro. Em 1976, o bloco contou a história de Watusi; em 1981, Zimbábue, em 1981; em 1984, Angola; e em 1988, Senegal, em 1988.
Por isso, diferentemente de outros blocos, o Ilê não se limita a canções de militância tocadas apenas durante os dias de folia. Trata-se de um projeto amplo que defende questões éticas, de educação e transformação social, oferecendo educação e arte aos jovens do bairro.
A outra face social do Ilê Aiyê[editar | editar código-fonte]
Ainda em 1995, quando completou 20 anos, o bloco iniciou um projeto mais consistente voltado para a educação da cultura negra.
O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê inaugurou a série Caderno de Educação, idealizado pelo poeta, professor e então diretor do bloco Jônatas Conceição, e pela pesquisadora, professora e diretora do bloco Maria de Lourdes Siqueira.
Esse projeto fez tanto sucesso que permanece em vigor desde então. Apenas entre 1995 e 2018, 24 edições do Caderno foram produzidas e publicadas.
Com informações valiosas sobre a cultura negra, esses cadernos se consolidaram como instrumentos de poder e podem ser utilizados pelas escolas até hoje.
Mas o impacto social do Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê vai muito além do Caderno de Educação.
Através desse projeto, o bloco também conseguiu ampliar as ações referentes à Band’Erê, iniciativa criada em 1992 que tem como objetivo promover ações extracurriculares para jovens e crianças.
Por meio dessa ação, além da cultura negra, os participantes do projeto também recebem aulas de percussão, literatura, dança, canto, coral, entre outros assuntos que contribuem para sua formação pessoal, social, cultural e profissional.
Com essas e outras ações, o Ilê Ayê tem contribuído não só para a preservação, mas também para a valorização e expansão da cultura afro-brasileira, permitindo que a comunidade negra conheça sua história, seus ancestrais e se aproxime mais de si mesmos.
Vale lembrar que, apesar de ser antigo, o bloco se modernizou e realiza eventos, lives, interage nas redes sociais e criou uma verdadeira rede de apoio e integração entre a comunidade e os curiosos com o projeto.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Ilera - Ancestralidade e Saúde
Samba, Funk e Rap - um panorama sobre a criminalização da cultura negra no Brasil