Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 18h39min de 24 de março de 2020 por Clara (discussão | contribs)

A equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta um compilado de textos, prontos e em processo de construção, sobre os efeitos do Novo Corona Vírus nas favelas do Brasil. Vamos reunir pesquisas, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus na vida das favelas

Veja também:

 

Esboço de crítica do discurso de "Guerra Contra o Coronavírus"

Texto gentilmente cedido pela autora, Marcella Araújo, e pela revista onde ele foi publicado originalmente, a Horizontes ao Sul. 

 

No dia 16 de março de 2020, Emmanuel Macron, presidente da França, disse em comunicado à nação que “nous sommes em guerre” [nós estamos em guerra][1]. No dia seguinte, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, tuitou “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN” [O mundo está em guerra contra um inimigo oculto. Nós vamos vencer][2]. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, por sua vez, disse, em coletiva de imprensa, que deveria agir como um “wartime government” [governo em tempos de guerra][3]. Na cobertura televisiva de várias emissoras brasileiras, as chamadas sobre a “guerra contra o coronavírus” foram igualmente recorrentes[4]. Mas nós não estamos em guerra.

Em uma proposição que ficou famosa[5], um general prussiano chamado Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. O tratado Da guerra, editado e publicado postumamente (1832) por sua esposa, Marie von Bruhl, difere de inúmeros outros escritos sobre a guerra que priorizavam oferecer manuais para os campos de batalha. Clausewitz, por sua vez, pretendia analisar as especificidades do fenômeno da guerra e educar as mentes dos comandantes. Sem mergulhar na discussão sobre a guerra como um instrumento da política de Estado[6], que colegas da Ciência Política poderão fazer com muito mais profundidade, gostaria de frisar este ponto: a guerra é um fenômeno social, um entre outros tipos de conflito.

Como Georg Simmel propôs: o conflito é uma forma de interação social. Só é possível marcar uma posição levando em consideração a existência do outro e manifestando contra ele argumentos ou o uso da força[7]. Conflitos, nesse sentido, envolvem alteridade e reciprocidade – ainda que para marcar antagonismos. Em situações em que os conflitos escalam para o uso da força, cabe lembrar que, em nossa vida coletiva, não aceitamos qualquer exercício de poder - ele precisa vir devidamente justificado. No Estado Democrático de Direito, é a lei que descreve as situações, os direitos e deveres, respaldando o emprego do aparato da força. Mas antes é a crença na legitimidade da lei que garante que ela seja cumprida e são as justificações dadas às formulações racionais contidas na lei que sustentam a própria legitimidade da legislação.

Minha crítica ao discurso da guerra nesta conjuntura pretende apontar os riscos da sua adoção. Sigo em duas frentes. A primeira é identificar as operações discursivas da declaração de guerra: ela circunscreve um coletivo que está sob ataque, ela identifica uma liderança com autoridade para levar adiante os confrontos em defesa desse coletivo e ela nomeia um inimigo agressor. Quando autoridades nacionais recentemente declararam “guerra contra o vírus”, esse “inimigo oculto”, a um só tempo, elas se posicionaram como as lideranças à frente da guerra, em nome de certos entes sociais – a pátria, a economia nacional, as famílias, as empresas, os trabalhadores.

No Brasil, no dia 18 de março, o Governo Federal solicitou o reconhecimento do estado de calamidade pública, dispositivo legal que permite o aumento dos gastos públicos sem violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde 2000. Parte da oposição defendeu que a pandemia põe em xeque a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos[8]. O temor de alguns parlamentares é que a vigência do estado de calamidade pública vá além da flexibilização fiscal e abra a brecha para que o presidente Jair Bolsonaro justifique decretar estado de sítio, dispositivo legal previsto no artigo 137 da Constituição Federal de 1988, para situações de guerra[9]. Nesse caso, liberdade de imprensa e liberdade de reunião seriam suprimidas, apreensões em domicílio e intervenções em empresas de serviços públicos seriam permitidas, entre outras medidas. O estado de calamidade pública está vigente no Brasil desde 20 de março[10].

A segunda frente da crítica se detém sobre a discussão da procedência do vírus. Donald Trump não é o único a falar insistentemente que o vírus é chinês[11]. Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) acusou o governo da China de ter escondido informações sobre o coronavírus e comparou a pandemia ao acidente nuclear de Tchernobil (1986), criando uma crise diplomática cujos desdobramentos ainda estão por ser sentidos[12]. Se para muitos o “inimigo” tem uma natureza espectral – ele é invisível a olho nu, oculto, difuso, paira no ar, penetra, adoece e mata corpos humanos –, o racismo contra nacionais e descendentes do primeiro país acometido pela doença procura torná-lo apreensível. A tentativa de atribuição de nacionalidade ao vírus o qualifica, demarca as fronteiras do lugar onde ele teria nascido (ou sido criado, segundo algumas teorias conspiratórias, as quais me poupo de discutir), mas também transforma o fantasma em sujeito. O portador “original” do vírus deveria ter sido tratado e, se a China supostamente não foi transparente na divulgação de informações, ela seria o sujeito inimigo.

Os dois pilares dessa crítica que proponho aqui – a metáfora da guerra para o enquadramento da situação indeterminada presente, por um lado, e o “inimigo oculto”, espécie de fantasma que vai sendo subjetivado, por outro – são tomados de empréstimos de dois sociólogos urbanos e da violência urbana cariocas: Marcia Leite e Michel Misse, respectivamente. Meu propósito ao trazer esses autores é apontar algumas consequências que podemos antever, caso a crise sanitária seja tratada como uma “guerra ao vírus”.

Como o fantasma da violência se tornou um sujeito social no Rio de Janeiro e quais foram os efeitos do emprego da “metáfora da guerra” para combatê-lo? No início dos anos 1980, a “violência urbana” começou a rondar as grandes cidades brasileiras. Em texto intitulado “Violência: o que foi que aconteceu?”, Michel Misse (2002) destaca que a representação da violência nas reportagens e nas falas cotidianas dos moradores do Rio parecia tratá-la como um vírus, no movimento inverso que fiz neste texto. Em suas palavras: “A tal da violência, que parece agir como um espectro ou fantasma, esconde-se ou dissemina-se, é tratada como uma epidemia, um vírus, um micróbio, ou como um Sujeito onipresente, onisciente, onipotente”[13]. Entre os anos 1980, como analisa Misse em inúmeros artigos acadêmicos e em sua tese de doutorado, o que houve foi uma transformação do fantasma social da violência em um sujeito social da violência[14]. Por meio de criminalizações e incriminações das práticas de venda no varejo de drogas, eis que os traficantes de droga se tornaram portadores privilegiados da violência – ainda que ela não se esgotasse neles[15].

Uma das consequências desse processo foi a propagação da “metáfora da guerra”[16], uma guerra contra o “Estado paralelo” dos traficantes de drogas, nas falas de moradores do asfalto carioca e nos discursos das autoridades públicas, como Marcia Leite analisou em sua tese. Artigo mais recente da autora[17], retraça o percurso da “metáfora da guerra” até a “pacificação de favelas”, destrinchando efeitos políticos e cotidianos do emprego da força contra o “inimigo interno” sobre as vidas de moradores de favelas, durante quase trinta anos. Basta lembrarmos os tantos símbolos empregados[18] durante os processos de ocupação militar recente de favelas cariocas, como parte do programa de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): “caveirões” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), incursões de policiais militares pesadamente armados, apagamento de pichações de siglas de facções do tráfico, hasteamento da bandeira nacional no cume dos morros, toques de recolher e revistas indiscriminadas de moradores. Um desenrolar de cenas de “reconquista dos territórios”[19]. Entre muitas outras, a tese de Juliana Farias “Governo de Mortes” descreve densamente as consequências da lógica da guerra e do estado de exceção nas favelas cariocas[20]

Retomar a discussão da sociologia do conflito e as pesquisas de Michel Misse e Marcia Leite, neste texto sobre a pandemia de Covid-19, pretende pinçar elementos e tendências dos processos em curso e abrir perspectivas de inteligibilidade e contestação. É pela “guerra” e as brechas legais que ela permite o caminho que queremos seguir para enfrentar a pandemia?

Na contramão desse discurso de guerra, vemos um outro discurso em gestação: o da solidariedade. Foge às possibilidades deste texto explorá-lo em sua multiplicidade. Restrinjo-me a destacar as cooperações transnacionais em busca da contenção e cura da nova doença. No dia 13 de março, uma equipe da Cruz Vermelha da China com nove médicos, toneladas de equipamentos hospitalares e máscaras chegaram à Itália[21], um dos países europeus em que a crise sanitária está mais aguda, com número de casos e mortes superiores aos da própria China. Cuba[22], por sua vez, enviou 65 médicos para a cidade de Milão, epicentro dos adoecimentos e óbitos. O próprio ministro da Saúde brasileiro, Luiz Mandetta, mais de um ano após encerrar a participação de cubanos no Programa Mais Médicos, pretende reconvocar dois mil deles para fortalecer a rede de saúde pública e o atendimento aos doentes no país[23].

Espero com estas linhas tê-los/as chamado a atenção para os perigos do discurso da guerra. Essa metáfora, a nível mundial, pode nos levar ao acirramento de tensões, racismos e autoritarismos. Temos, em paralelo à exacerbação de conflitos, testemunhado também esforços humanos impressionantes de profissionais de saúde em todo o globo e uma inflexão muito significativa nos debates sobre macroeconomia e política econômica, com a (re)emergência de debates sobre as vidas, a subsistência e o bem estar social[24].

Não estamos em guerra. O que vivemos é uma crise sanitária e econômica, cheia de imprevisibilidade, mas também com grandes aberturas a novos tempos de cooperação.

Estudo - Coronavírus nas favelas (DataFavela)

O estudo realizado em março de 2020 reúne algumas informações preliminares sobre a situação do Coronavírus nas favelas, a partir de 1142 entrevistas em 262 favelas de todo o Brasil.  O estudo é conduzido pelo Data Favela, que surge da parceria entre Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas – CUFA e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. As pesquisas do Data Favela são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do Instituto Locomotiva.

Sobre a pesquisa

"O corona atinge a população de forma desigual. Existem aqueles que, ainda bem, conseguem ficar no conforto do seu lar, com a geladeira cheia, fazendo home office. No entanto, a pesquisa deixa claro que existe milhões de brasileiros, autônomos, e com a geladeira vazia", avalia Celso Athayd e, Fundador da CUFA e do Data Favela e coordenador do movimento #FavelaContraOVirus “Criamos o movimento “Favela Contra o Vírus” com o objetivo de impedir que essas desigualdades provoquem ainda mais mortes nas favelas brasileiras, esse território com mais de 13,6 milhões de pessoas que não tem as mesmas condições de quarentena que os moradores do asfalto” - 'Celso Athayde, fundador da CUFA. 

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Acesse o Material

Para ter acesso aos resultados completos da pesquisa, clique aqui.

 

  1. [1]MACRON, Emmanuel. (2020), “Adresse aux Français”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  2. [2]TRUMP, Donald. “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN!” Tweet, 17 março 2020, 4:31 p.m. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  3. [3]RAWLISON, Kevin. “’This enemy can be deadly’: Boris Johnson invokes wartime language”. The Guardian, 17 março 2020, 19:38 GMT. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/17/enemy-deadly-boris-johnson-invokes-wartime-language-coronavirus
  4. [4]Macron, Johnson e Trump não foram os únicos a falar de “guerra”. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/lideres-adotam-discursos-de-guerra-contra-pandemia.shtml
  5. [5]VON CLAUSEWITZ, Carl. (2007), On War. Oxford World’s Classics, Oxford University Press
  6. [6]Ler, por exemplo, MAQUIAVEL, Nicolau (2010), O Príncipe. Rio de Janeiro: Penguin.
  7. [7]Ver: SIMMEL, Georg. (1992), On individuality and social forms. The University of Chicago Press
  8. [8]SENADO NOTICIAS. “Pandemia põe em xeque teto constitucional de gastos públicos”. 18 março 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/18/pandemia-poe-em-xeque-teto-constitucional-de-gastos-publicos
  9. [9]MOTA, Erick. “Congresso está atento pra Bolsonaro não decretar estado de sítio, diz Molon”. Congresso em Foco, 21 março 2020, 9:42 a.m. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretar-estado-de-sitio-diz-molon/
  10. [10]MAGNOLI, Demétrio. “Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média”. Folha de São Paulo, 21 março 2020, 1 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/03/nos-esclarecidos-precisamos-pensar-fora-da-bolha-da-alta-classe-media.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR38pMgYrZbe15NCaPIjK56Zo7TjNTK5ks-d0C6X40c4tSv6uqOOws_N5XY
  11. [11]VAZQUEZ, Maegan; KLEIN, Betsy. “Trump again defends use of the term ‘China vírus’”. CNN Politics, 19 março 2020 08:05 GTM. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/17/politics/trump-china-coronavirus/index.html
  12. [12]JORNAL NACIONAL.
  13. [13]MISSE, Michel. “Violência: o que foi que aconteceu?”. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Violência%20o%20que%20foi%20que%20aconteceu.pdf
  14. [14]MISSE, Michel (1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio de Janeiro.
  15. [15]Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo e professor do Iesp-Uerj, levou mais adiante a proposição de Márcia Leite. Segundo ele, teria se consolidado mesmo uma linguagem da violência urbana, que confere intelegibilidade e prospecções sobre os conflitos urbanos. O “núcleo duro” da violência urbana radicaria no uso desenfreado da força sem justificação, desenvolvido em decorrência da “ausência do Estado” e em relação ao qual se disseminaria um medo generalizado. Ver: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), “’Violência urbana’
  16. [16]LEITE, Marcia. “Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2001.
  17. [17] Ver LEITE, Marcia. (2012), “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n.2, p. 374-389.
  18. [18]Ver: ARAUJO, Marcella. (2012), “Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação no Rio de Janeiro”. In: Misse, Michel; Werneck, Alexandre. (Org). Conflitos de (grande) interesse. Rio de Janeiro: Garamond. Disponível em: https://www.academia.edu/12759030/Rio_em_forma_ol%C3%ADmpica_a_constru%C3%A7%C3%A3o_social_da_pacifica%C3%A7%C3%A3o_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
  19. [19]Sobre as “figurações da ‘guerra urbana’”, ver dossiê organizado por , Vera Telles,
  20. [20].FARIAS, Juliana. (2014), “Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA. Disponível em: https://www.academia.edu/12412103/Governo_de_Mortes_Uma_etnografia_da_gest%C3%A3o_de_popula%C3%A7%C3%B5es_de_favelas_no_Rio_de_Janeiro
  21. [21]ALJAZEERA. “China sends essential coronavirus supplies to Italy”. 13 março 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/china-sends-essential-coronavirus-supplies-italy-200313195241031.html
  22. [22]Friso aqui que não emito qualquer juízo de valor sobre os regimes políticos chinês e cubano
  23. [23]VARGAS, Mateus. “Governo quer cubanos de volta ao Mais Médicos para enfrentar novo coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 março 2020, 13:23 GTM. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-contratar-medicos-cubanos-para-enfrentar-novo-coronavirus,70003235029
  24. [24]CUCOLO, Eduardo. “Coronavírus reacende discussão sobre papel do Estado na economia”. Folha de São Paulo, 15 março 2020, 1:00 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-reacende-discussao-sobre-papel-do-estado-na-economia.shtml