Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 11h24min de 22 de maio de 2020 por Clara (discussão | contribs)

A equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta um compilado de textos, prontos e em processo de construção, sobre os efeitos do Novo Coronavírus nas favelas do Brasil. Vamos reunir pesquisas, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus na vida das favelas.

Veja também:

 

Artigos de opinião

Coronavírus e as desigualdades de raça e classe, por Dennis de Oliveira

Artigo originalmente publicado no blog Alma Preta, no dia 17 de março de 2020.

A epidemia do coronavírus no mundo está evidenciando as desigualdades sociais, apesar de aparentemente o vírus contaminar todos e, neste primeiro momento, pessoas das classes média e alta que viajaram para o exterior. De fato, o que salta aos olhos da epidemia é o fato de ela ter tomado uma dimensão na cobertura jornalística muito maior que outras epidemias que ainda hoje vitimam mais pessoas, como a dengue e o sarampo.

A primeira vista, isto ocorre justamente por uma questão de classe: como o epicentro atual do coronavírus é a Europa e não o continente africano ou latino-americano, a visibilidade desta epidemia é muito maior. Uma lógica que também esteve presente quando a mídia hegemônica em todo o mundo, inclusive o Brasil, mobilizou os sentimentos de consternação no ataque de um grupo terrorista islâmico à Paris, na França, em 2015. O grupo Boko Haram praticou ataques terroristas até mais violentos em 2019 na Nigéria sem a mesma repercussão.

Mas o classismo e o racismo também estão neste caso do coronavírus. É importante este alerta porque há ideias entre algumas pessoas da periferia de que se trata de “doença de gente rica” e, portanto, não deveria ser objeto de preocupação da população da quebrada. Se não ficarmos atentos, pode-se em pouco tempo haver um deslocamento do epicentro da doença para a periferia e, por conta disso, sem a mesma visibilidade de agora.

Sobre algumas medidas de contenção do vírus, a ordem é sair pouco de casa, procurar trabalhar em home-office, transferir as atividades didáticas de escolas e universidades para a modalidade on-line, suspender viagens internacionais, entre outros. Nota-se que os atingidos por essas medidas protetivas são aqueles que não estão na maior parte do trabalho precarizado e informal. Se nas universidades as aulas foram suspensas e algumas adotaram o sistema de ensino à distância, como ficam os funcionários operacionais terceirizados? Evidente que eles continuarão trabalhando.

Há o caso relatado pelo colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, do empresário e sua esposa que contraíram o vírus em uma viagem, se colocaram em quarentena no apartamento deles porém obrigaram a empregada doméstica a continuar indo trabalhar desconsiderando o alto risco de ela se contaminar.

Com isto, em um primeiro momento, observa-se que tais medidas ao mesmo tempo que visam proteger um determinado segmento da sociedade, deixam o outro completamente desprotegido. Estes trabalhadores operacionais e precarizados se deslocam para suas casas de transporte coletivo, um ambiente potencialmente explosivo para uma contaminação massiva.

Essa situação se agrava por dois motivos conjunturais: o primeiro é a desregulamentação do trabalho imposta pela direita em todo o mundo e aplicada no Brasil com maior intensidade no ano passado. A lógica desta proposta é o ganho depende de quanto trabalha e não de quanto é necessário para sobreviver. Empregadas domésticas, faxineiras, trabalhadores de aplicativos, ambulantes, flanelinhas, motoboys, cicloboys, entre outros teriam que optar entre ficar sem dinheiro ou sair às ruas em busca de trabalho.

Ainda que estes trabalhadores contraiam o vírus e fiquem doentes, a tendência é que eles continuem trabalhando, pois no mercado informal não há nenhum tipo de proteção. Imagine este cenário de pessoas com o covid-19 nas ruas entregando comida, dirigindo Uber, motos, vendendo coisas, limpando casas... Imaginem estas pessoas andando nos trens, ônibus, metrôs lotados. O vírus vai para a periferia, mas volta com tudo pois estas pessoas atendem justamente estes que se julgariam protegidos. O risco é intensificar comportamentos de cunho fascista, racista, xenofóbico.

O segundo motivo é o desmonte do sistema público de saúde que está enfraquecido para o enfrentamento massivo desta epidemia. Este é o momento que mais se precisa do SUS e todo o seu arcabouço de atendimento, prevenção, medicina da família, entre outros. Além da estrutura dos laboratórios públicos de pesquisa das universidades e institutos como o Fiocruz, Manguinhos, FURP e das universidades públicas.

Só para lembrar: 47,3% dos trabalhadores negros estão no mercado informal, 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negros. Em outras palavras, estamos falando de situações que atingem a população negra na sua maioria.

Daí que é o momento ímpar para se retomar a pactuação político-social da Constituinte de 1988 e barrar as mudanças de cunho neoliberal que têm sido feitas desde o golpe de 2016. É necessário revogar a emenda constitucional do teto de gastos, fortalecer o SUS e os laboratórios públicos e centrar a política de Estado não no “equilíbrio fiscal para obter a confiança dos mercados”, mas na capacidade de atendimento social massivo para garantir o bem-estar de todos os cidadãos.

* Dennis de Oliveira é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), professor associado ao Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), coordenador científico do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) e coordenador do GT CLACSO - Epistemologias decoloniais, territorialidades e cultura.

 

Coronavírus: pelo direito de lavar as mãos nas favelas cariocas, por Gizele Martins

Texto originalmente publicado como artigo de opinião no Jornal Brasil de Fato, em 19 de março de 2020.

Parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde e pelos governantes brasileiros diante da pandemia do coronavírus (covid-19) não incluem a favela. No Rio de Janeiro, são inúmeras as favelas que nunca tiveram água, em outras a água vem duas ou três vezes na semana. Essa realidade é comum para quem mora do lado de cá. 

"Na falta da água, use álcool em gel", dizem as recomendações. Mas o álcool é artigo de luxo, que não é mais possível encontrar nas prateleiras dos supermercados e, quando se encontra, custa o triplo do preço.

Outra recomendação é evitar espaços aglomerados. Como? A favela é um grande aglomerado de casas, muitas sem janela, outras sem chance de ventilação alguma, com poucos cômodos, o que impossibilita seguir outra recomendação: manter a distância de um metro ou mais entre as pessoas. 

Mais uma recomendação é evitar transporte público, não ir para as ruas, ficar em casa. Mas somos nós os trabalhadores ditos informais, aqueles que não têm carteira assinada nem salário fixo.

Como implorar para que esse trabalhador, porteiro, faxineiro, ambulante, camelô, empregada doméstica, entregador, fique em casa, se a gente na favela come quando tem dinheiro, ou seja, quando trabalha?

Sem falar da atenção básica no que diz respeito à saúde pública, afinal, o Rio de Janeiro, desde o final do ano passado, vem passando por uma enorme crise na saúde. Tivemos muitos trabalhadores da saúde perdendo o emprego, outros que estão sem salários. Isso significa que temos menos profissionais para nos atender e mais postos de saúde e clínicas da família fechados. 

Fico pensando em como a favela vai escapar dessa.

Teremos que ter cuidados redobrados na forma de se comunicar e sempre pensar em alternativas e em soluções, que deveriam vir "de cima". Mas estamos aqui, nós favelados, pensando em como iremos vencer mais essa. 

Se você mora aí do outro lado do muro, olhe aqui para a favela também. Nós, que não temos atenção nenhuma do Estado, precisamos da solidariedade de cada um.

Olhe agora a cidade, veja que sem o favelado ela não funciona, pois somos nós que fazemos a economia funcionar com a nossa mão de obra. Sem nós, não tem cidade.

Então, por favor, governantes e sociedade, nos incluam nas políticas públicas, na atenção básica, nos projetos de lei, na informação, no saneamento básico.

Exijam que a gente não fique pelo menos sem água e sem energia nesse período de quarentena. Queremos ter o direito de lavar as mãos. 

*Gizele Martins é Moradora da Maré, jornalista, mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ) e integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro.

 

As periferias na pandemia, por Alexandre Magalhães

Texto originalmente publicado na Revista IFCH-UFRGS, em 27 de março de 2020.

A disseminação do novo coronavírus vem provocando inegáveis efeitos negativos mundo afora. Há um consenso na comunidade médica e sanitária internacional de que as autoridades públicas precisam correr contra o tempo e implementar medidas eficazes e de longo alcance para evitar uma tragédia maior do que a que se delineia no horizonte. Uma das ações principais, segundo apontam, é o isolamento TOTAL da população, o que dificultaria a possibilidade de contágio pelo contato. Qualquer flexibilização dessa medida pode ser tomada como uma posição, no mínimo, irresponsável, para não dizer criminosa.

Diante do avanço da covid-19 e das ações realizadas para contê-la, é possível afirmar, pelo menos no caso brasileiro, que suas implicações não vão ser as mesmas em todos os lugares e para todas as pessoas. Há diferenças de geração, classe, gênero e raça que demarcarão as possibilidades de cuidado e de acesso aos serviços médico-hospitalares, já que tanto aquelas possibilidades quanto o acesso a estes serviços são distribuídos desigualmente entre as classes e camadas sociais.

Uma preocupação surgida recentemente, e que passou a ocupar cada vez mais espaço na imprensa nacional, foi com o iminente espalhamento do vírus em favelas e periferias do país. Apesar dos esforços cotidianos dos habitantes destas localidades para melhorar suas condições de vida, seja através dos famosos mutirões, seja através da pressão que realizam sobre as autoridades públicas, muito ainda precisa ser feito para aprimorar as condições de habitabilidade, saneamento e de saúde destas populações.

 Se o isolamento total é a medida mais adequada, como realizá-la em locais superpovoados, constituídos por ruelas estreitas, com casas muito próximas umas das outras (o que dificulta saber onde uma começa e outra termina), muitas vezes sem ventilação adequada (algumas sequer tem janelas), habitações estas frequentemente ocupadas por várias famílias e pessoas e, se não bastasse, sem acesso adequado e regular à água e saneamento básico?

No caso particular da água, isso é ainda mais alarmante. Uma das ações recomendadas pelos médicos, sanitaristas e infectologistas como uma das formas mais eficazes de contenção do novo coronavírus é a lavagem frequente das mãos. Como lavar as mãos sem água? Para citar apenas um exemplo, os moradores do Morro Santana, comunidade de Porto Alegre, estão sem acesso regular à água desde novembro de 2019. NOVEMBRO DE 2019. Estas pessoas estão muito mais expostas do que outras.

 O que esta crise ajuda a revelar, ao menos no caso das nossas grandes cidades, é a dimensão das desigualdades urbanas que a atravessam e se acumulam ao longo de sua história. Camadas de desigualdades que vão se sobrepondo e tornando a vida das pessoas que moram em favelas e periferias ainda mais difícil de ser vivida. Diante da calamidade, estas desigualdades gritam. As pessoas que de alguma forma as encarnam também gritam. Algo precisa ser feito!

 O outro lado dessa tragédia que se anuncia é como garantir que estas pessoas fiquem em casa quando para boa parte delas a possibilidade de obtenção da renda que sustenta suas famílias depende da circulação pela cidade. Trabalhadoras domésticas, informais, camelôs, enfim, uma multidão de mulheres e homens que precisam se movimentar para conseguir o pão de cada dia. As notícias que chegam destas localidades apontam para uma queda considerável da renda destas pessoas. Algo precisa ser feito!

 Algo precisa ser feito. Mas é evidente que não qualquer coisa. É claro que o necessário e urgente melhoramento das habitações, da ampliação do acesso à água, ao saneamento e outros serviços não significa a defesa de políticas de remoção que os governantes insistem em reproduzir. Já há conhecimento e recursos técnicos suficientes para realizar estes investimentos nos próprios locais em que as pessoas moram.

 Do ponto de vista das condições econômicas, é preciso garantir às trabalhadoras e trabalhadores que habitam em favelas e periferias (e a todas e todos aqueles trabalham de maneira informal) uma renda mínima básica num valor suficiente para que possam suprir suas necessidades básicas. Além disso, as prefeituras e governos estaduais – com recursos federais – devem garantir e ampliar a distribuição de cestas básicas (incluindo produtos de higiene e limpeza), gás, internet e suspender a cobrança de contas de água, eletricidade e outras.

Para que todas estas iniciativas ganhem corpo, é necessário, como bem apontaram em artigo recente os pesquisadores da Fiocruz Sonia Fleury e Paulo Buss, a constituição de um “Plano de contingência em favelas e periferias”, em que fosse definido um conjunto de ações voltadas especificamente para estes territórios, algo que ainda não foi feito.

 Enquanto uma política de cuidado constituída pela administração pública não é instituída, os próprios moradores elaboram estratégias para encarar os possíveis efeitos perversos da covid-19 em suas vidas. Através de redes locais de solidariedade e ajuda mútua, e contando com a colaboração de organizações da sociedade civil e universidades públicas, os moradores produzem material de divulgação acerca das medidas que devem ser tomadas no dia a dia para evitar o contágio, correm atrás de doações de alimentos e itens de higiene e buscam produzir melhorias, ainda que limitadas, em seus lares.

Não tenhamos dúvidas: se o vírus se alastrar ainda mais, como já parece o caso, quem mais sofrerá serão os que moram em favelas, vilas e periferias deste país.

 Precisamos de alguma forma colaborar com a luta destas pessoas, ajudar na repercussão destas ações em curso e na pressão para que a administração pública implemente ações mais significativas de combate ao coronavirus nestes territórios.

E fazer isso a despeito de quem governa: enquanto finalizava este texto, recebi a notícia de que, depois do pronunciamento irresponsável do presidente da República no dia 24 de março, uma parte considerável do comércio em favelas cariocas foi reaberto e a circulação aumentada. Não podemos permitir que esse discurso e política de morte se aprofunde ainda mais!

 Em defesa da nossa vida e de todos que amamos, fique em casa!

Alexandre Magalhães é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e colaborador na equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

 

"Somos as pessoas que mais sofrerão com a pandemia", por Mônica Cunha

Texto de Mônica Cunha[1], originalmente publicado no Jornal Catarinas, em 28 de março de 2020.

Hoje, venho colocar para vocês um pouco dos anseios de uma parcela da população que sempre foi tratada como se não devesse ser ouvida nem vista. Falo como mulher negra que sou.

A população negra é maioria, quantitativamente, mas, quando se fala em acesso a direitos, deve ser tratada enquanto minoria. Neste sentido, pelo histórico racista de violações e negações de direitos, somos as pessoas que mais vão sofrer com a atual pandemia. Estamos em maior número nas favelas e cárceres Brasil afora. Infelizmente, seremos, também, os que mais morrerão por Covid-19.

O pronunciamento do Presidente na última quarta-feira traduziu, em novos contornos, o que há de mais perverso na política deste país.

Ao afirmar que a economia não poderia ser afetada pelos cuidados com a saúde, Bolsonaro escancara a sua necropolítica, tratando as mortes que virão como meros números numa fria tela de computador.

A Constituição fala que todos são iguais perante a lei, mas de que igualdade estamos falando? Podemos dizer que as pessoas das diferentes classes sociais estão expostas aos mesmos riscos? Não nos esqueçamos que trabalho braçal e doméstico, para ficarmos apenas nestes dois exemplos, não podem ser feitos via home office.

Os movimentos, grupos e núcleos de mulheres negras, há 30 anos, falam da nossa importância dentro dos núcleos familiares, exercendo o papel de pilar em todos os aspectos: sustento; saúde; cuidado; companheirismo; afeto.

A partir de todo este entendimento, nasce um grupo específico em 2013: mães e familiares de jovens que cumprem medidas socioeducativas, encarcerados ou mortos pelo braço armado deste Estado racista e genocida.

Essas mães e familiares se apoiam mutuamente, sofrem juntas e seguem em frente com o respaldo umas das outras. Neste momento de isolamento social, nos tornamos ainda mais vulneráveis emocionalmente, o que reflete na nossa saúde física, uma vez que muitas desenvolvemos (eu inclusive) hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas após as violações que sofremos.

Agora, esperamos que, finalmente, a opinião pública passe a enxergar, de uma vez por todas, a favela e seus moradores como seres humanos e parte integrante da sociedade. Queremos que a solidariedade, necessária no combate ao coronavírus, não acabe junto com ele. Lutamos para que esta crise humanitária nos permita ter mais humanidade, porque nós, mulheres negras, somos diversas, mas não dispersas, e faremos a nossa parte, como estamos fazendo durante a pandemia, para parir um novo país quando ela passar.

 

"As favelas não querem parabéns, ministro Mandetta", por Favela em Pauta

Artigo originalmente publicado em 31 de março de 2020 no blog Favela em Pauta.

É necessário ter ouvidos atentos sempre que um político brasileiro menciona as favelas em discursos e coletivas de imprensa. Rocinha, Alemão, Heliópolis, Sol Nascente, Sussuarana. As favelas sempre atraíram políticos que não solucionaram problemas acumulados ao longo dos últimos 100 anos. Não foi diferente com Luiz Mandetta, o ministro da saúde no Brasil. 

Não foi diferente com Luiz Mandetta, o ministro da saúde no Brasil. Ultimamente, ele vem ganhando projeção pelo considerado jeito carismático de falar, a abordagem técnica dos assuntos e, por fim, parece estar nadando contra a corrente bolsonarista. Em uma das várias coletivas de imprensa, Mandetta elogiou as ações executadas por moradores de favelas em seus territórios. “Parabéns as comunidades do Rio de Janeiro. Parabéns as favelas, as comunidades e eu as conheço. Estudei aí. Estudei aí. Fiz ação voluntária tanto ali no Vidigal, quanto na Rocinha quando eu era acadêmico de medicina. Outro dia, fui lançar o programa de doenças sexualmente transmissíveis lá na Rocinha com jovens de comunidade. Parabéns Maré, parabéns pelo trabalho que vocês estão fazendo e o exemplo de dignidade, de comportamento, de inteligência. Da aula de sabedoria que vocês estão dando. Na dinâmica, Heliópolis em São Paulo, todas elas. Paraisópolis. Todas elas. Eu falo do Rio de Janeiro porque fiquei 10 anos naquela cidade”.
  Diante de uma releitura de “Vida Loka II, de Racionais MC’S – queremos te dizer: “How, how Mandetta. Acorda sangue bom, aqui é favela, tru. Não pokemón“. Parem de olhar para a favela como um filme de ficção, escutem o que temos a dizer. As favelas não querem parabéns, ministro Mandetta. As favelas querem ser tratadas com respeito e dignidade.

Nós não precisamos de parabéns porque os favelados aprenderam a se reinventar  desde a necessidade do surgimento deste solo sagrado, chamado favela. Foi assim na luta por moradia, aconteceu também na luta pela implantação da rede de abastecimento de água e energia elétrica que precariamente (não) funciona, além da luta por saneamento básico. Enquanto por 10 anos o ministro diz ter conhecido a favela durante seu estágio no curso de medicina, nossos pais, por mais de 100 anos, não tiveram acesso à educação e saúde de qualidade. Os postos médicos chegaram em algumas favelas, depois de muita luta e  anos de reivindicações. E ainda assim, até hoje, os governos insistem na estratégia de observar a favela sob a mira do fuzil.

Embora tenha muitos grupos de favelas mobilizados para combater o covid-19 nas favelas, os governantes deveriam ter vergonha de nos parabenizar pela necessidade de articulação diante de total incapacidade de ação dos órgãos oficiais. Já se passou um mês e o governo federal não apresentou nenhuma medida efetiva para as favelas brasileiras. Só se fala em isolamento social, mas desde sempre, o povo pobre e favelado foi forçado a prosseguir.

Parar nunca foi uma opção. O sentido de resistência para a favela, é seguir em frente. Se tem tiroteio na rua A, a gente segue pro trabalho pela rua B. O impacto do #COVID19NasFavelas transforma o conceito de resistência na favela. Se antes, para se manter vivo o sentido era estar em constante movimento, agora resistência significar parar, ficar em casa e se cuidar.

Subestimar a fome do povo é perigoso. A proposta da renda básica emergencial de R$ 600,00 durante três meses para trabalhadores informais, desempregados e outros vulneráveis não garante uma estabilidade se compararmos com o custo de vida por cada estado. Tem que aumentar isso aí, talkei? 

Pesquisa do Data Favela aponta recentemente que 84% dos moradores de favela acreditam que terão sua renda reduzida por conta da quarentena do coronavírus. Outros dados alarmantes apontados pela pesquisa é de que quase 9 entre 10 moradores de favela teriam dificuldades para comprar comida, caso fiquem obrigados a ficar em casa sem produzir renda. Isso pode explicar o fato de 54% estar preocupado com o risco de perder o emprego, durante a quarentena.

Se a lógica do Estado é não assumir a responsabilidade de garantir quarentena digna aos trabalhadores mais pobres, acusando adversários políticos de não se importarem com o emprego, em clara tentativa de interferir na opinião pública, volte algumas casas. É dever dos especialistas da área de saúde, como o ministro Mandetta, vacinar a parte destoante do governo para que enxerguem a necessidade urgente do isolamento e vista-se do cargo que ocupa para auxiliar ao povo. Distribuindo a renda que lhe é de direito para o enfrentamento da crise e, principalmente, garantindo que os testes para detecção do coronavírus cheguem nas unidades de saúde que realizam atendimento às favelas.

Os parabéns não são necessários, mas a coragem para agir e garantir os direitos da população mais pobre, sim.

 

Covid-19 escancara a injustiça da vida nas favelas e periferias, ONG Fase

"Mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas", afirma, em artigo, equipe da FASE no Rio de Janeiro[2], publicado em 31 de março de 2020 em seu site oficial.

Em menos de duas semanas, a população das favelas e periferias do Rio de Janeiro viu o governador Wilson Witzel (PSC) projetar-se na cena política nacional com algum grau de sensatez em relação à pandemia da Covid-19 se comparado com o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, ao contrário do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), esteve presente em ato público, cumprimentou pessoas sem nenhum tipo de equipamento de proteção e disse que “não passa de uma gripezinha”.

É inegável a importância das medidas tomadas pelo governador ao colocar-se na dianteira e comunicar a população sobre os riscos à saúde decorrentes da Covid-19 e, posteriormente, tomar medidas jurídicas de limitação de circulação entre o interior do Estado e a região metropolitana. No entanto, quando olhamos as alterações feitas no orçamento público estadual, fica evidente, mais uma vez, o seu desprezo à população mais vulnerável, principalmente num momento de emergência sanitária, que é quem mais precisará de políticas sociais e de distribuição de renda.

Witzel contingenciou² recursos de várias áreas em meio à pandemia. Merece destaque o contingenciamento de R$7,6 bilhões feito no orçamento sob a justificativa da queda do preço do barril do petróleo e da necessidade de reorientar o orçamento para enfrentar a Covid-19. O Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, por exemplo, também perdeu 29% do orçamento, que inclusive poderia ser utilizado para melhorias habitacionais nas favelas. O que chama atenção é que, exceto a área da saúde, a única que não foi contingenciada foi a área da Segurança Pública (Polícias Civil e Militar, Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e o Programa Polícia Presente). Essa escolha de onde se tira e de onde se deixa orçamento é mais um exemplo da política genocida deste governo.

Para a população de favela e periferia tais medidas já têm consequências diretas. Sendo uma população majoritariamente formada por pessoas negras, cujos vínculos formais de trabalho são raros e que a sobrevivência é garantida por meio da inserção em empregos do setor de serviços, precarizados, intermitentes e informais; as medidas de contenção da epidemia geraram um impacto brutal sobre a sua condição de subsistência. Um exemplo deveu-se no âmbito do direito ao transporte já que passou a ser necessário comprovar vínculo formal de trabalho para ingressar nos trens e ônibus intermunicipais. Houve uma sobreposição de violação de direitos, na medida em que as portas das estações de trens e de ônibus ficaram lotadas e grandes filas se formaram expondo ainda mais os trabalhadores ao risco de contágio. Outro impacto negativo foi a diminuição da renda familiar para os moradores destas áreas que, obrigados pelas determinações estadual e municipal a fazer quarentena, estão vivendo em situação de extrema necessidade.  A pandemia, portanto, tem deixado visível a faceta mais cruel de viver numa cidade tão desigual como Rio de Janeiro: quem fica com os piores efeitos da Covid-19 são os que já não tem acesso à direitos.

Sem saúde, água e “isolamento social”

Muito antes que a epidemia da Covid-19 chegasse às favelas e periferias a situação da precariedade dos serviços de saúde que atendem estes territórios já era uma realidade. A lógica neoliberal, que orienta a gestão dos serviços públicos, fez com que, ao longo dos últimos anos, a Empresa Pública Rio Saúde fosse sucateada e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), que operam por meio de parceria público-privada, ganhassem seu lugar. A péssima qualidade do atendimento oferecido pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) não deixa dúvida.

Outro exemplo da negação do direito à saúde à população de favela e periferias deu-se em 2019, quando o prefeito Marcelo Crivella (PRB) diminuiu drasticamente as equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Núcleos de Atenção à Saúde da Famílias (NASF), assim como atrasou os salários dos funcionários vinculados a estes equipamentos. Na ocasião ocorreu a paralisação dos profissionais da saúde, que, mesmo tendo mantido serviços mínimos em 30%, impactou diretamente a população negra e pobre, que tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como a única forma de acessar o direito a saúde. Ainda nessa linha, não podemos esquecer que no plano federal a PEC 95/2017 congelou os gastos públicos pelos próximos 20 anos. Deste modo, a lentidão e a inópia de respostas por parte das autoridades para com as populações pobres em relação a Covid-19 se somam a sensação de desamparo já conhecida pela população de favela e periférica.

No que se refere à imposição do distanciamento social e higienização das mãos como medida preventiva, a realidade da favela, periferia e de ocupações urbanas impõe desafios enormes. Casas de apenas um cômodo, sem ventilação, onde geralmente o compartilhamento do espaço é feito por muitas pessoas e pessoas idosas convivem com jovens, adultos e crianças. Portanto, o distanciamento social na favela é impraticável tanto do ponto de vista habitacional quanto do ponto de vista dos modos de vida que, diferente da classe média, expandem a casa além dos seus muros. Quanto a necessidade de “lavar as mãos” a pergunta sem resposta é a seguinte: com que água? O direito à água não uma realidade para muitos moradores de favelas e periferias! Não é à toa que nesses locais as casas têm mais de uma caixa d´água, resultado do abastecimento intermitente e precário que serve essas áreas. Ali, reservar água é uma questão de sobrevivência.

Alternativas que vêm de dentro

Diante do quadro de poucas ações governamentais para as populações de favela e periferia, os próprios moradores têm se mobilizado e criado alternativas de enfrentamento à proliferação da Covid-19. Essas ações se baseiam em algumas frentes como o compartilhamento e coleta de informações de prevenção e sintomas; recolhimento de doações para compra de alimentação e materiais de limpeza; medidas educativas sobre a importância do racionamento de água; monitoramento de pessoas que são consideradas do grupo de risco.

Nas favelas do Complexo do Alemão, por exemplo, estão sendo desenvolvidas ações de recolhimento de cestas básicas e doações de alimentos, álcool e gel, sabão; além de ações de conscientização dos moradores acerca da importância do distanciamento social e da lavagem das mãos. A ação é realizada por meio de carros de som e cartazes no território. Devido à ausência de recursos básicos de saneamento e saúde, esta favela tem sofrido com à falta d’água, o que levou os moradores a adotarem medidas de compartilhamento e racionamento da água. A solidariedade se destaca em tempos de caos.

De acordo com Raull Santiago, jornalista e morador do Complexo do Alemão, foi criado um “gabinete de crise na comunidade” que tem por objetivo conscientizar a população, buscar recursos para o enfrentamento à pandemia e pressionar para que os governantes atuem nas favelas e viabilizem condições básicas para a prevenção.

No Complexo da Maré, os moradores utilizam os rádios locais para divulgar informações de prevenção, inclusive o funk tem sido instrumento de conscientização. Moradores também estão gravando vídeos que alimentam uma campanha comunitária de informações sobre a Covid-19. Foi criado ainda um canal no WhatsApp para tirar dúvidas.

Em Manguinhos, o Fórum Social de Manguinhos e as Mães de Manguinhos lançaram campanha em suas redes sociais para recebimento de cestas básicas e kits de limpeza, como forma de colaboração com os moradores que se encontram desempregados e em situação de vulnerabilidade.

Em todas essas favelas os próprios moradores estão fazendo um monitoramento dos idosos e suas necessidades, para que os mesmos não precisem sair de casa. Voluntários e coletivos estão em constante contato com as unidades de saúde para atualização de informações e medidas que possam ser tomadas para a prevenção. E, apesar das dificuldades de acesso à internet que a população de favela enfrenta, as redes sociais tem sido um importante instrumento para disseminação de informações e combate às fakenews.

Na Baixada Fluminense destacamos a articulação “#CoronaNaBaixada” que reúne cerca de 100 lideranças e organizações da Baixada Fluminense para combater a proliferação da Covid-19 e apontar propostas para enfrentar a crise nesse momento. Em “Carta Manifesto”³ a iniciativa denuncia que ainda não há uma ação coordenada entre os municípios da Baixada e o governo do Estado, tanto que há municípios que ainda não estão seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades sanitárias. A articulação reivindica, por exemplo, a realização de testes em pacientes da Baixada com sintomas do novo coronavírus.

No momento, todos vivemos a sensação da incerteza sobre condições mínimas de subsistência. A diferença é que, para quem vive nas favelas e periferias, além da incerteza causada pela pandemia existe o medo de que em nome da Covid-19, tudo possa ser utilizado como justificativa para suspensão de direitos que, no limite, pode gerar mortes cujo fim não tem nenhuma relação com o vírus. As violências cometidas pelas forças de segurança, pela precariedade dos serviços de saúde e saneamento são questões que devem permanecer sendo monitoradas. 

Por fim, mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas. No momento em que existe uma disputa ideológica entre “salvar vidas” versus “salvar a economia” é fundamental defender princípios social democratas que orientaram a construção do estado de bem-estar social. Mesmo longe de ser uma realidade num país como o Brasil atual, acreditamos que a defesa de direitos é estratégica para disputar a gramática política atual.

 

Por que parte dos moradores das favelas não respeita o isolamento social?, por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino

Artigo de opinião originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em 07 de abril de 2020.

Circulação de pessoas em favelas expõe série de fatores sociais.; trabalho informal é imprescindível para famílias

Por que boa parte dos moradores/as das favelas continuam indo para as ruas e não respeitando o isolamento social? A branquitude, no seu lugar histórico de privilégio logo levanta respostas racistas e imediatistas para isso.

 

"Dessa vez o povo quer morrer, pois o que não falta é informação" (Postagem no Facebook)

 

“Pelo amor de Deus, por que essa galera da favela adora festa e continua fazendo churrasco? Não respeitam mesmo o isolamento, absurdo!” (Postagem no Facebook)

Queremos levantar algumas reflexões: a arquitetura urbana das favelas – e sempre respeitando as diferenças e especificidades de cada território favelado – foi construída para levar aos encontros e as trocas. Os becos e vielas representam concretamente como se dá a vida em coletividade, sendo ali que construímos nossas relações de resistências, solidariedade, afetos, conflitos, somos e vivemos no e para o coletivo. 

Logo, completamente diferente das relações sociais dos condomínios dos bairros da Zona Sul que apenas geram e potencializam o individualismo e o isolamento. A favela, por mais que o Capitalismo Racial Brasileiro tente cotidianamente exterminar, na realidade continua a existir e nossa sociabilidade é de forma coletivizada, comunitária e solidária. Portanto, completamente avessa ao distanciamento.

Sem condições decentes de vida

Uma outra falácia que é sempre difundida por esse Estado Genocida como argumentação para não garantir condições decentes de vida à população favelada e periférica é a hipótese de que a população destes territórios predominante pretos são fortes e imunes a tudo. Por isso, podem aguentar e sobreviver a qualquer advento de letalidade, desde a bala de fuzil saída dos helicópteros utilizados como plataforma de tiros até mesmo a uma pandemia mundial.

A contínua circulação de pessoas nas favelas e nas periferias mesmo sob decretos de quarentena expõe uma série de fatores sociais que não são tratados pelos grandes especialistas brancos que aparecem na mídia hegemônica.

Além da necessidade material da vida, as trabalhadoras e trabalhadores que vivem em favelas e periferias estão na informalidade e sem acesso algum a direitos sociais nem trabalhistas. Logo, para trazer sustento para sua famílias, o trabalho diário nas ruas é imprescindível. Já que esses postos de trabalho não permitem o home office e nem garantem uma remuneração contínua durante a quarentena.

Toda a mobilização e a ajuda que esses territórios estão recebendo partem dos próprios moradores! A histórica ausência de políticas sociais para essas regiões resultou em processos de ajuda mútua de forma autônoma entre os próprios residentes. E sem essa solidariedade entre os nossos, a situação estaria ainda mais difícil. Nesses momentos de crise social, o Nós por Nós é determinante pra manter a vida do nosso povo.

Vida precisa ser vivida na urgência

Há também outros fatores que não são considerados, como historicamente o Estado Capitalista retirou dessa população o direito de planejar a vida e perspectiva de pensar e sonhar um futuro. 

Afinal, nesses territórios os homicídios fazem parte do cotidiano das pessoas e a vida precisa ser vivida na urgência, como se estivéssemos sempre no último dia de existência. Já que o amanhã não sabemos se estaremos aqui, seja por conta da morte em decorrência de uma Operação Policial, da covid-19 ou pela fome.

Rápidas reflexões de faveladxs e periféricxs que conseguem ficar em quarentena, mas que não criminaliza seu irmão/ã favelada que não possui a possibilidade de fazer o isolamento social. Tentar compreender, continuar o diálogo e principalmente não acreditar que a educação da repressão resulta em uma mobilização real ao combate na covid-19. A morte já faz parte do nosso cotidiano. O desafio é como falar de vida, onde a morte já é uma dura regra.

*Fransérgio Goulart é historiador e Coordenador Executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

**Giselle Florentino é economista e Coordenadora Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

 

Falta água e presença do Estado: coronavírus aprofunda desigualdades estruturais nas periferias, por Débora Britto

Texto originalmente publicado no blog Marco Zero, em 06 de abril de 2020.

Uma das principais recomendações para prevenção ao coronavírus é lavar as mãos, mas para quem vive em locais em que água na torneira é o evento da semana, não é tão simples. Apesar de em Pernambuco a Companhia de Saneamento (Compesa) estar proibida de cortar a água de quem está inadimplente e ter anunciado medidas para minimizar o déficit estrutural de fornecimento em várias regiões, diversos bairros e comunidades relatam que continuam vivendo uma realidade de intenso racionamento.

A rotina de quem convive com a escassez de água, mesmo nas cidades, é frenética: corre para abrir torneiras, abre registro para encher caixa d`água, se houver, enche balde, mais um e outro, lava banheiro, enche todos os recipientes disponíveis, corre para fechar registro para “a água não ir embora”. Essa maratona é função, principalmente, das mulheres e são elas quem mais estão com medo do coronavírus.

Em Ouro Preto, bairro na periferia de Olinda, em meio à pandemia do coronavírus algumas comunidades passaram 15 dias sem água. Elisângela Maranhão, moradora do bairro e coordenadora de uma ONG em Peixinhos, outro bairro periférico da cidade, conta que a situação não mudou nada desde que as medidas da Compesa foram anunciadas. “Eu moro na Vila da Manchete e tem semana que a água vem uma vez, então você tem que aproveitar e encher tudo. Quando passa mais de 15 dias, a gente tem que comprar um carro pipa”, conta. 

Já em Peixinhos, um bairro com mais de 30 mil pessoas, há áreas em que a água chega de três em três dias, outras em que a regra é não saber quando a água vai chegar. “Era para ter pelo menos uma vez por semana. Está muito complicada a questão da Compesa. Além disso, as pessoas na comunidade estão sem trabalho, a maioria é de trabalho informal”, destaca Elisângela.

Em Passarinho, comunidade da periferia do Recife, o Grupo de Mulheres de Passarinho denuncia há meses a falta de água, que já virou uma marca da comunidade. O bairro é formado por famílias, em grande maioria, chefiadas por mulheres trabalhadoras domésticas. “Agora, com o coronavírus, piorou tudo. A maioria das mulheres é de empregadas domésticas, diaristas. Agora parou tudo, muitas estão em casa. A água continua a mesma coisa, hoje mesmo não chegou, já vamos para seis dias sem água. Como é que você vai limpar a casa, como vai manter a higiene sem água? Está cada vez pior”, denuncia Edcléia Santos, liderança comunitária.

Além disso, ela alerta que, diferente de outros bairros do Recife, na comunidade não há carros de som da Prefeitura avisando sobre o coronavírus. “As pessoas estão continuando a vida, no meio da rua, o comércio está todo aberto”.

Diversos grupos e coletivos comunitários têm se organizado para cobrar o fornecimento regular de água e também de doações para quem está em situação de maior vulnerabilidade. É o caso do Coletivo Força Tururu, grupo criado na comunidade do Tururu, na periferia de Paulista. Os integrantes começaram uma campanha online para alertar moradores e pressionar por medidas concretas. Eles também mobilizaram doações para distribuir cestas básicas.  “A situação para algumas áreas da comunidade está tranquila porque devido ao racionamento algumas casas já têm cisterna, mas em outras não. Em algumas casas e ruas tá faltando água ainda. Na comunidade temos caixa d’água e poço, mas na realidade do Tururu a caixa não enche e não existe tratamento”, relata Cidcleiton Luiz, integrante do Coletivo Tururu.

O relato evidencia como há desigualdades dentro da desigualdade e, para isso, a mobilização e cobrança por mudança precisa ser permanente. 

Mais pobres estão mais vulneráveis

Além da água, outros problemas estruturais colocam famílias que vivem em áreas periféricas, em geral muito adensadas, em situação de maior vulnerabilidade. Socorro Leite, coordenadora da ONG Habitat para Humanidade, que faz parte da Articulação Recife de Luta, lembra que no Recife, por exemplo, os bairros que sofrem com falta de água são regiões que historicamente mais sofrem com arboviroses, que são doenças causadas por vírus como o da dengue, do Zika vírus e febre chikungunya.

Daí surge outro problema que precisa ser pensado desde agora: com o racionamento de água, as pessoas precisam armazenar água, muitas vezes, de maneira inadequada, favorecendo a proliferação do mosquito transmissor de doenças. “A precariedade da infraestrutura afeta diretamente a saúde das pessoas”, alerta Socorro. “A questão da água é muito importante, para mim é prioridade. Se as comunidades dizem que não está chegando água na ponta, eu acredito e vejo que nada está se alterando. E aí tem a coisa das condições de moradia, muitas famílias já estavam em situação que não ajuda no isolamento social”, explica.

Pensando nisso, a Articulação Recife de Luta vem se mobilizando para denunciar também outros aspectos que têm colocado a população mais pobre e trabalhadora vulnerável ao coronavírus, como a exposição no transporte público. “As empresas de ônibus reduziram a frota e estão demitindo funcionários, mas os ônibus continuam lotados. Se você tem que sair para resolver alguma coisa, você é submetido a um transporte cheio, o que não ajuda na prevenção. Tem que ter algum tipo de mediação do governo do estado, estamos falando de uma concessão pública e eles têm que intervir para que o transporte não seja vetor de transmissão da doença”, exige Socorro. Em nota, a Articulação denunciou a situação e vem exigindo posições do governo estadual sobre essa e outras questões. 

Por liminar, Compesa está proibida de cortar água

Após posicionamento de organizações e movimentos da sociedade civil sobre a urgência da água, a Defensoria Pública do Estado entrou com representação e ganhou uma liminar que determina que a Compesa, assim como outras empresas de serviços essenciais, não cortem fornecimento a clientes inadimplentes. O defensor público Fernando Debli, que está à frente da mediação, explicou que, em função da emergência, a prioridade da ação foi garantir que nenhuma pessoa tenha a água cortada por falta de pagamento. 

O esquema de racionamento praticado pela Compesa em diversos bairros e comunidades, sendo que alguns recebem água na torneria de 10 em 10 dias, é mais difícil de resolver neste momento, ele explica. Isso porque a Compesa alega que há problemas estruturais para fazer chegar água nesses locais, o que exigiria mais estudos técnicos para pressionar a empresa. “Estamos atrás de entender a real abrangência desse problema. Acontece que é uma situação muito complicada porque exige aparato técnico especializado e profundo. O problema da água é muito generalizado, a principio a gente resolveu aceitar esses termos para que as coisas fossem feitas de imediato”, explicou.

Como resultado do acordo, ficou decidido que desde 14 de março, quando o governo do estado oficializou a situação de emergência sanitária, até o fim do decreto devido à pandemia de coronavírus não está permitido o corte de água e esgoto por falta de pagamento. Além disso, a Compesa também se comprometeu a isentar o pagamento de cerca de 120 mil residências da tarifa social, e enviar carros pipa nos locais onde não há rede de abastecimento.

Outro ponto definido é que a Compesa deveria apresentar à Defensoria um plano emergencial para execução de 43 obras estratégias “para viabilizar obras consideradas de pequeno e médio portes para otimizar a distribuição de água da Região Metropolitana do Recife, sem prejuízo da adoção de outras medidas, em conjunto com o governo do estado”.

De acordo com o defensor, este é o ponto mais complicado de resolver, mas que ele considera positivo. “Há um grande problema histórico e, de fato, é difícil que de um dia para o outro a Compesa consiga fornecer água para todo mundo. A princípio a gente se contentou com isso porque queremos ver a eficácia dessas medidas, mas estamos atentos para considerar novos fatos”, afirmou.

Segundo Debli, a Defensoria ainda está na fase de monitorar o cumprimento, ou não, dos termos do acordo. “A gente tem recebido bastante relatos de pessoas denunciando que Compesa e Celpe continuam cortando fornecimento de água e energia por falta de pagamento. A partir das denúncias vamos tomar atitude mais aprofundada quanto a isso”. 

Saiba como entrar em contato e realizar denúncias à Defensoria Pública de Pernambuco aqui

 

O vírus e o paradoxo da democracia, por coletivo Multinômade

Artigo originalmente publicado no blog UniNômade Brasil, em 08 de abril de 2020.

Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição, naturalizando, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça. 

A preparação que não houve

O primeiro consenso que podemos extrair da pandemia do COVID-19 é o fracasso de todos os governos do mundo, com exceção de alguns pequenos países asiáticos, em antecipar e organizar uma resposta à altura do problema. Desde a repressão, no caso chinês, ao primeiro médico que alertou sobre o surgimento do novo vírus, passando pela indiferença e inércia dos países europeus, o apego à normalidade levou os governos à perda de um tempo precioso que custou e custará dezenas de milhares de vidas. Do outro lado do Atlântico (ou do Pacífico), a situação é pior. Nos casos de Trump (EUA), Lopez Obrador (México) e Bolsonaro (Brasil), a descrença se transformou em ação política, convertendo a postura antissistema em verdadeiro desdém organizado contra a sociedade. Diante de uma realidade que se impôs, o caso brasileiro é ainda mais grave, representando hoje o único país (com exceção da Bielorrússia), cuja autoridade máxima não só minimiza o problema, mas defende que as mortes devem fazer parte da rotina do país, custe o que custar.

Mas seria um erro nos concentrarmos apenas nessa manifestação abertamente mortífera. Precisamos colocar nossa reflexão na linha do tempo. No último ciclo político-econômico anterior ao bolsonarismo, no período que vai da crise global de 2008 até Junho de 2013, culminando na crise brasileira de 2015, o Brasil viveu sob a retórica do preparo. Era preciso preparar a aceleração do Brasil Maior com a construção de grandes barragens na Amazônia, grandes obras de infraestrutura ligadas ao extrativismo e grandes empréstimos e subsídios para uma suposta “indústria nacional”. Era preciso preparar os megaeventos esportivos com impactantes intervenções urbanas, com a construção de equipamentos esportivos, estádios caríssimos e microapartamentos para concentrar milhares de famílias removidas de suas casas.

Enquanto o Brasil ensaiava um salto que, na verdade, apontava para o atual abismo, as condições de vida passavam por uma mudança silenciosa: o aumento de tarifas do transporte chegando a 60% acima da inflação; o percentual de famílias endividadas atingindo 45% em 2014 (chegando a 61.2% em 2018); uma triplicação do número de trabalhadores terceirizados (12 milhões), uma quintuplicação do número de pessoas encarceradas (715 mil presos); os gastos das famílias representando 60% dos gastos totais em saúde do país, a rede hospitalar tornando-se 70% privada e apenas 50% das verbas para saneamento básico sendo aplicadas, com um índice inaceitável de apenas 48% de casas com coleta de esgoto.

Junho de 2013 foi o movimento que, de forma inesperada e avassaladora, suspendeu o moto-contínuo desta falsa preparação e colocou problemas concretos a todos os governos: “menos estádios e mais hospitais”, “escolas e hospitais padrão FIFA”, “saneamento sim, teleférico não”, “todos contra o aumento”, “mais livros, menos lacrimogêneo”, “fim da corrupção e mais saúde”, “democracia real já” etc. Como sabemos, o breve intervalo foi logo sufocado por repressões, capturas, crises políticas, econômicas e polarizações, adiando a possibilidade de que outro preparo pudesse confrontar os problemas coletivos e urgentes do Brasil.

Em 2020, com os olhos assustados pelo COVID-19, somos interpelados novamente pelas mesmas questões: como nos mobilizar em torno de um problema real e concreto? Como garantir condições básicas de vida? Como construir um novo pacto social e democrático no Brasil?

A nova mobilização social e uma necropolítica por cima de todos

Antes mesmo de haver clareza sobre quais medidas tomar para reduzir o impacto do COVID-19 no país, o fato novo que surgiu foi a rápida construção de uma mobilização real e transversal que ativou toda a sociedade. Inspirada nos exemplos que vinham da Itália, logo se formou uma rede de solidariedade para apoiar trabalhadores da saúde, reforçar a necessidade de ficar em casa, compartilhar informações corretas, evitar o desabastecimento nos supermercados e criar campanhas de arrecadação e distribuição de recursos e insumos básicos. Nas favelas e periferias, os coletivos de moradores e de comunicadores tornaram-se os protagonistas de campanhas de divulgação das recomendações sanitárias, mas também lembram que nada foi feito nos últimos anos para melhorar o acesso aos serviços básicos, como água e esgoto. Esses gestos estão criando algo impensado em uma sociedade tão fragmentada e já acostumada com a multiplicação de polêmicas e disputas vazias: as bases de uma nova cooperação social e de uma nova confiança horizontal foram lançadas, movidas pelo desafio real e inédito de enfrentar os dramas de uma pandemia.

Para o clã que nos governa, essa aliança é insuportável. Ela escapa à gestão da política que vinha sendo feita através das redes sociais, das redes de intriga e de mentiras, da produção contínua de bodes expiatórios e inimigos, da normalização pela ignorância e do fomento ao caos e à fragmentação social. Ao contrário, a nova mobilização força todo o país a pensar em novas políticas sociais, em medidas de valorização da vida, na importância dos bens comuns, na necessidade de compartilhar informações seguras, no papel da ciência e das universidades e na urgência de uma união de esforços para além do sectarismo. Este novo momento pode dar início a um mundo totalmente avesso ao barulho performático do populismo, caso a mobilização encontre ressonâncias democráticas e não autoritárias. O fato é que, diante da catástrofe, a coragem de falar a verdade voltou a assumir um sentido prático e relevante.

Não por acaso, preso em um mundo que já acabou, Bolsonaro tenta quebrar essa emergente confiança estimulando uma revolta contra as medidas implementadas nos estados e pelo seu próprio governo. Não podendo suportar um movimento que cresce por fora de seus currais digitais e círculos de fanatismo, o presidente canaliza a energia antissistêmica para a exposição da população à morte, buscando, ao mesmo tempo, multiplicar as ameaças constantes e as velhas rixas improdutivas. Contrapondo cinicamente economia e saúde, e confrontado com os limites de sua própria inépcia, assume a necropolítica (a mobilização da política para a morte) como a única forma de retomar as rédeas de uma realidade que já está em outro lugar.

A mudança que estamos assistindo também explicita os limites do comando econômico do país. Basta lembrar que, quando o vírus já passava para a fase de transmissão comunitária, o ministro da economia dizia que o isolamento era uma oportunidade para se pensar em… “reformas”. Após se dar conta do caráter incontornável da pandemia, o mesmo ministro afirmou que o Brasil deverá passar rápido pela crise para depois poder retomar… “as reformas”. Essa insistência explica, por um lado, a lentidão na concepção e na efetivação dos programas de apoio financeiro, só agora implementados, e mostra, por outro, uma falta de capacidade para o enfrentamento dos efeitos permanentes da pandemia no país e na globalização em geral.

Tudo leva a crer, portanto, que é a atual mobilização pela vida que cria uma ressonância positiva entre as dinâmicas de cooperação social e as decisões que são tomadas em nível institucional e nos diversos poderes, como demonstra o atual enfrentamento em torno do Ministério da Saúde. É essa mobilização que nos impede de entrar no jogo utilitário que tenta equacionar os vivos e os mortos a partir da falsa racionalidade dos balancetes econômicos e tabelas contábeis. No atual estágio da pandemia, está claro que essa lógica nada mais é do que uma lógica da cova rasa, uma política da morte contra a qual devemos, urgentemente, contrapor uma política da vida.

O paradoxo da democracia: medidas de isolamento e amplificação da circulação

Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição e naturalizar, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça.

Por isso, paradoxalmente, enfrentar a pandemia e proteger vidas significa pensar outra lógica da circulação e de funcionamento da própria máquina, mobilizando:

(i) a circulação de riqueza, com políticas de renda garantida, apoio aos pequenos e microempreendedores, ampliação da assistência social, doações massivas por bancos e grandes empresas etc.;

(ii) a circulação de infraestrutura, com a distribuição de equipamentos de proteção, de kits de teste por todo o país, com a manutenção de um transporte público seguro, com o acesso de todos à água, à energia elétrica, aos produtos de limpeza, com uma logística para manter e ampliar os serviços essenciais, com a construção de hospitais de campanha e ampliação dos leitos de UTI etc.;

(iii) a circulação de tecnologia, com acesso de todos à internet, com a inclusão digital gratuita em favelas e periferias, com a fabricação de respiradores, equipamentos de proteção e kits de teste, com a mobilização dos laboratórios universitários, com o investimento massivo em ciência e tecnologia etc.;

(iv) a circulação de informação, com o combate à subnotificação, com a garantia de publicidade dos dados, com o compartilhamento de métodos de higienização e de protocolos para os infectados, com o combate as fake news, com a divulgação do debate científico, a liberação de artigos acadêmicos, a mobilização de redes de aprendizagens, produção, difusão e circulação de saberes territoriais, etc.;

(v) a circulação de proteção, com equipamento que possam aumentar a proteção de todos os trabalhadores que estão na linha de frente, enfermeiros, médicos, agentes públicos, trabalhadores da logística e do setor de entregas, comunicadores, lideranças comunitárias etc.;

(vi) a circulação de liberdades, com medidas de restrição e controle que sejam resultado da liberdade e da mobilização democrática, com o veto de imposições administrativas autoritárias, prisões ou leis marciais para a garantia da quarentena, com medidas responsáveis para o maior desencarceramento possível de presos provisórios, presos com doenças crônicas, idosos, gestantes e lactantes, com a substituição das medidas de internação de jovens por medidas a serem seguidas em meio aberto etc. (Cf. Recomendação n. 62 do CNJ);

(vii) a circulação de apoio psíquico, com a proliferação de diversas iniciativas comunitárias e institucionais de acolhimento do mal-estar e do sofrimento que partem da indissociação entre vida, saúde mental, realidade social e econômica, com o atendimento online gratuito para profissionais de saúde, com o reconhecimento de que é função de todo trabalhador da saúde a detecção do sofrimento psíquico em emergências humanitárias etc.;

(viii) a circulação da biodiversidade, com a promoção da diversidade biológica como forma de proteção contra a emergência dos novos vírus (cinturão vivo), o fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambiental e monitoramento das unidades de conservação e dos territórios indígenas, o enfrentamento das queimadas na Amazônia, a construção de uma nova relação ética entre todos os viventes etc.

Todas essas iniciativas de circulação da cooperação social e institucional, além de comporem uma agenda urgente para o período do contágio, podem formar uma sólida linha de atuação pós-crise. O fortalecimento deste novo pacto social, ecológico e democrático, baseado na requalificação da circulação, deve permitir que a mobilização continue por outros meios, e através de outras medidas que serão necessárias. No nível global, é a oportunidade de pensarmos uma mundialização fundada na solidariedade e na cooperação internacional, em contraposição à crise dos blocos regionais e às tentações nacionalistas e reacionárias que, à direita ou à esquerda, sonham com uma arcaica desglobalização. No caso do decrépito governo brasileiro, é o que pode evitar uma rápida tentativa de reestabelecimento dos currais eleitorais fundados na mentira, a retomada de uma austeridade radical alheia à realidade, ou uma solução militarista “por cima”, lançada para enfrentar a inépcia do próprio presidente e a instabilidade trazida pela pandemia.

Que a experiência coletiva de uma mobilização solidária e transversal sirva, portanto, de vacina para essas armadilhas e componha o terreno concreto para uma democracia adequada ao mundo que emerge diante de nós.

 

Coronavírus e milícia: a morte favorece a quem?, por José Cláudio Souza Alves

Artigo de opinião originalmente publicado no blog ContraPoder, em 08 de abril de 2020.

Ele era meu amigo. Conhecíamo-nos desde 1986. Nos últimos anos a vida não tinha sido fácil para ele. O desemprego, a falta de grana e a aposentadoria que não saía o desesperava. Morava na casa que os pais haviam deixado. Mas em todo este tempo, nunca perdeu a generosidade que lhe era peculiar. Sofreu uma queda de bicicleta e teve um coágulo no cérebro. Ficou quase duas semanas no Hospital de Saracuruna (o Adão Pereira Nunes), em Duque de Caxias, junto com mais 49 pacientes, numa única e imensa enfermaria, cujas camas ficavam a um palmo, uma das outras e sem divisórias. Neste período, usou sua própria roupa e não lhe deram banho. Ao receber alta, voltou para casa. Passou, então, a ter um quadro de febre muito alta. Levado às pressas para um Posto de Saúde, faleceu. O laudo da causa mortis falava em insuficiência respiratória. Não fizeram o teste para coronavírus. Como havia suspeita de contaminação, não houve velório. Enterro com dois parentes e caixão lacrado. Os familiares que cuidaram dele ficaram de quarentena. Há uma grande probabilidade de ter contraído coronavírus no hospital. Logo, há uma probabilidade do caso ser uma subnotificação de coronavírus disfarçada de insuficiência respiratória. Independente da causa verdadeira da morte, a família teve que desembolsas R$ 2.800,00 pelo enterro, num caixão que parecia feito de MDF. A única funerária que detêm o monopólio dos enterros, numa cidade de um milhão de habitantes, acumula indícios de ser mais um dos negócios lucrativos da milícia, some-se a isto o controle que exercem sobre os serviços nos hospitais públicos. Da consulta ao enterro, passando pelos exames e o preço da urna funerária, a morte, indiferente à causa, em si mesma, torna-se uma manifestação de poder. A estrutura legal e formal de hospitais, cartórios, funerárias e cemitérios são perpassadas pelo poder miliciano, com seus representantes na Delegacia, no Batalhão, na Câmara de Vereadores e na Prefeitura. O coronavírus é a ajuda que recebem no momento, em meio à crise de uma economia em quarentena.

A morte sempre foi a manifestação derradeira de poder. Grupos de extermínio, ainda mais em sua fase miliciana, sempre souberam disto. Bolsonaro ao se eleger, enaltecendo torturadores e assassinos da ditadura militar, comprovou o efeito eleitoral disto. A dimensão da morte é tão eficiente, que nem precisa ter corpo, ou prova. Pelo contrário, o que venho chamando de chacinas invisíveis mostra que é possível aprofundar e ampliar o poder da morte pelo desaparecimento dos corpos. A princípio, haveria uma aparente contradição no uso desta expressão, já que chacina implica em algo visível, exposto, com o objetivo de demonstrar força no uso da violência. Neste sentido, invisível não seria um adjetivo aplicável. Contudo, chacinas invisíveis realizam a junção de duas práticas, ambas violentas. De um lado, o homicídio de muitas pessoas e do outro o desaparecimento destes corpos. Fica explícito, pela junção das duas dimensões, uma potencialização do ato violento. A visibilidade invisibilizada da chacina revela o alto poder de dano provocado à vida de inúmeras pessoas presenciada pelos habitantes do local onde ocorreram as mortes e a dissuasão de qualquer forma de registro, investigação ou aplicação da lei. Ao final, ocorre a potencialização da força e impunidade dos assassinos frente à impotência e aprofundamento do terror para os moradores daquela região.

Com o coronavírus, a morte apenas segue seu percurso de exaltação nacional. Os mais desprotegidos entregues ao sistema público de saúde, controlados por milicianos ou não, serão os mais atingidos. Invisibilizados, em chacinas ou em pandemias de casos não notificados, comporão o exército de cadáveres de reserva, fornecedores de ganhos para funerárias, cartórios e cemitérios, quando existir corpos, ou de mais poder territorial para milicianos, na ausência do que enterrar. Com ou sem corpo, a morte é ocultada, por atestados de óbitos sem a causa verdadeira, por cemitérios clandestinos ou não, pelas águas dos rios. Mas quanto mais ocultada, mais a morte se torna forte. A morte é para ser sentida, vivida, na dor da ausência, no sofrimento do desamparo, na solidão e no medo. A morte sem corpo é o paroxismo do desamparo dos que não podem fazer nada. Membros de uma comunidade soltam o cadáver de uma pessoa executada e dada como desaparecida, dos galhos imersos dentro de um rio no qual ele foi jogado, pelo simples fato de que ninguém ali se imagina na mesma situação dele, ou seja, sem direito a corpo, luto, caixão e enterro. A morte sem corpo, invisível, é o cúmulo do terrorismo do Estado, de onde vêm os novos, não tão novos assim, algozes, travestidos de benfeitores, a serem enaltecidos em redes sociais, palanques e eleições. A morte sem causa verdadeira, vírus transformado em insuficiência respiratória, junta no mesmo buraco os contaminados ou não. É o pico estratosférico da angústia de uma nação inteira desigual, desinformada, desalentada onde a morte fez sua morada, para permitir que capitães, milicianos e empresários seus apoiadores, destruam direitos dos trabalhadores, liquidem políticas sociais e movimentem a economia dos seus ganhos repartidos entre os que sempre lucraram com a invisibilidade programada dos mais pobres.

A cova, contudo, é berço. Cada cadáver, uma semente. Na morte, uma nova vida. O que germina não é a covardia e o medo. Estes são heranças de colonizadores, burgueses, ditadores, torturadores, milicianos e assassinos. O que brota é a esperança, tão monolítica quanto o passado. Os que nunca desistem jamais se renderão. Quanto mais a milícia e o vírus avançam, novas formas de resistência, imunidade, proteção e conhecimento surgirão. A guerra criminosa ou biológica não possui determinismos. Pois o humano, pelo seu conhecimento, adaptabilidade e resiliência sempre seguiu avançando. Claro que entramos numa nova fase de mortes globais, numa escalada capitalista que destrói a natureza, envenena alimentos, desmonta sistemas de saúde, amplia lucros legais/ilegais de Bancos/Financeiras/Empreiteiras/Agronegócio/Mineradoras/Estados/Máfias/Milícias/Cartéis e aprofunda a espoliação do trabalhador e da natureza. Entretanto, se a morte é mais ampla e a cova/berço é mais funda, maior será o dossel da floresta que hoje erguemos. Nela, amigo, sua morte não será em vão. Todos os que tombaram estarão segurando os braços dos que se erguem por um mundo sem donos, senhores nem carrascos.

 

Racismo e desigualdades: o que há de democrático na Covid-19?, por Emanuelle Goes

Artigo publicado no Portal Geledés, em 10 de abril de 2020.

“Quando a América branca pega um resfriado, a América negra pega pneumonia”, Steven Brown (Urban Institute).

A Covid-19 é democrática? Debates sobre a transmissão do vírus têm levantado essa discussão, que todas as pessoas independentes de raça, classe, gênero estão expostas ao coronavírus da mesma forma. Mas como é possível que em países e sociedades com desigualdades profundas as populações sejam atingidas de maneira igualitária? Ao desembarcar Brasil o novo coronavírus mostrou que não era bem assim, a “patroa” em quarentena transmitiu o vírus para a funcionária que não tinha sido informada de risco de contágio, a trabalhadora doméstica de 63 anos que morreu, sendo o primeiro registro de morte no País. O vírus ao atravessar a barreira racial mata.

Aprendo com Grada Kilomba (1) ao dizer que a divisão geográfica resultante dessa coreografia racista pode ser vista como uma fronteira entre o mundo de “superiores” e o mundo das/os “inferiores”, entre o “aceitável” e o “inaceitável” […] evitando a contaminação das primeiras (brancas) pelas segundas/os (negras). Mas, o inverso o coronavírus nos mostrou que pode e é aceitável.

O lugar onde o Estado não chega, o vírus irá chegar como acontece com todas as epidemias, este lugar tem raça/etnia e gênero, são as pessoas negras, as mulheres negras que ocupam esses territórios.

No Brasil ainda não temos dados desagregados por raça/cor para a Covid-19, mas basta olharmos para epidemias anteriores, a mais recente do zikavírus ou das doenças negligenciadas como tuberculose, hanseníase e sífilis. São as pessoas negras que vivem em situação de vulnerabilidade, seja no contexto de rua, de prisão ou nas moradias precárias. “Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita […]. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”, escreveu Maria Carolina de Jesus (2) em Diário de uma Favelada.

Neste lugar o racismo estrutural se faz presente. Bairros negros segregados, onde pessoas negras são alocadas em áreas marginalizadas, à margem, impedidas de terem contato com recursos e bens brancos. A guetificação foi criada para promover o controle político e a exploração econômica das pessoas negras. Nos Estados Unidos já podemos ver a segregação racial do novo coronavírus e a sua distribuição desproporcional, na última terça-feira (7) a população negra representava 33% dos casos em Michigan e 40% das mortes, apesar de serem apenas 14% da população do estado.

No Condado de Milwaukee, Wisconsin, onde as/os negras/os representam 26% da população, eles são quase metade dos 945 casos e 81% de suas 27 mortes, segundo um relatório da ProPublica. Em Illinois, os negros representaram 42% das mortes, mas apenas 14,6% da população do estado. Em Chicago, os dados são ainda mais graves: os negros representam 68% das mortes da cidade e mais de 50% dos casos, mas representam apenas 30% da população total da cidade.

O racismo é um determinante social da saúde, as condições de vida e morte das pessoas negras estão atravessadas por ele. A população negra acumula morbidades como hipertensão, diabetes, câncer, HIV/Aids e tuberculose, sendo o reflexo das condições desiguais às quais está submetida ao longo da vida. Nos serviços de saúde, negras e negros estão expostas ao racismo nas suas diversas formas, desde a iniciativa em procurar o serviço até no acesso ao teste, diagnóstico e tratamento, momento em que se instala o viés racial implícito que vai direcionar a tomada de decisão dos gestores, profissionais e trabalhadores da saúde.

O novo coronavírus não discrimina, mas para os médicos em saúde pública que estão na linha de frente em resposta à pandemia já pode ser visto o surgimento de viés racial e econômico, assim começa o artigo The Coronavirus Doesn’t Discriminate, But U.S. Health Care Showing Familiar Biases. Em uma análise inicial, o texto informa, “parece que é menos provável que os médicos encaminhem os afro-americanos para testes quando comparecem ao atendimento com sinais de infecção”. Em Memphis, um mapa de calor mostra onde o teste de coronavírus está ocorrendo, revelando que a maior parte da triagem está ocorrendo nos subúrbios predominantemente brancos e ricos, e não na maioria dos bairros negros e de baixa renda.

Deixar viver, deixar morrer, é desta forma que as sociedades estruturadas pelo racismo organizam as vidas de pessoas negras e brancas. O mundo tem essa estrutura, pois hierarquiza a humanidade, humanos (brancos/as) e subumanos (negros/as e indígenas).

A antinegritude é o fundamento da humanidade (4), e é essa humanidade que busca a salvação nos subumanos, ao tentar mais uma vez transformar a África em cobaias ou decidir onde vão realizar os testes para o tratamento do novo coronavírus. Estão todos no mesmo pacto histórico-político-ideológico de genocídio negro, vivemos em um mundo antinegro.

O racismo é um processo histórico que se renova e aprimora ao longo do tempo. O racismo define como as pessoas negras vão viver adoecer e morrer nos lembra Fernanda Lopes (5). A ONU recomenda que os países comprometidos com a equidade racial na saúde criem esforços para garantir esse compromisso, pois as discriminações tendem a adensar as taxas de mortalidade pelo novo coronavírus. Sabe-se que as pessoas presas, são majoritariamente, homens negros e mulheres negras, são esquecidos/as justamente por isso, não porque cometeram um crime e sim porque são negros/as, que o enfrentamento ao racismo e a garantia da equidade racial se tornem centro do debate da pandemia do sul ao norte global, porque o que vejo daqui é um genocídio negro em curso.

Referências

  1. Grada Kilomba. Memórias Da Plantação: Episódios De Racismo Quotidiano. Ed. Cobogo, 2019.
  2.  
  3. Carolina Maria de Jesus. Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada. 10ª ed. Editora Ática. 2014
  4. María Lugones. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, jan. 2015.
  5. João H. Costa Vargas. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1oSemestre de 2020 – n. 45, v. 18, p. 16 – 26.
  6. Fernanda Lopes. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: Tópicos em Saúde da população negra no Brasil. In: Brasil. Ministério da Saúde. Seminário Nacional da Saúde da População Negra. Brasília, 2004.

(Outras referências estão lincadas no texto).

 

Se não é pra todos, não é legal!, por Fabiana da Silva, Jota Marques e Wesley Teixeira

Artigo originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 09 de abril de 2020.

Necessidade de fechamento por coronavírus evidenciou que a escola não é uma ilha

A escola não é uma ilha, isolada do contexto em que está inserida. A n ecessidade do fechamento desse espaço, durante a pandemia da Covid-19, reforçou essa ideia. É vazio fazer a defesa do ensino a distância, neste momento, sem considerar as condições econômicas e sociais que rodeiam a escola.

Quando nos concentramos na realidade dos alunos das camadas mais vulneráveis da sociedade é que encontramos o problema: estudantes sem acesso à internet e nem equipamentos que permitam a eles a entrada e a efetivação do acesso à educação. O discurso do uso da tecnologia dentro da realidade do "não ter" (celular, acesso à internet, computador) é uma das maiores violências que esse processo vem promovendo na vida desses alunos.

A falta de preparo dos profissionais da educação no uso das ferramentas tecnológicas também é um ponto nessa discussão. O professor foi formado para utilizar equipamentos em uma sala de aula, junto a práticas pedagógicas construídas sob táticas do cotidiano e nas adaptações do currículo formal das unidades de educação. Esses docentes não são blogueiros dando dicas de educação. São profissionais com formações técnicas. Ademais, é importante salientar que o sistema de educação a distância é contrário justamente ao fortalecimento do vínculo educador-educando, fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.

Defender a escola pública presencial é defender o direito de crianças e jovens periféricos ascenderem socialmente. Nos últimos 30 anos, muitas mulheres negras e pobres no Brasil encontravam na educação uma oportunidade de ascensão social, e por isso trabalharam duramente para oferecer o estudo formal aos filhos e filhas.

Nós, autores e autora deste texto, somos fruto desse esforço de mulheres que entenderam a importância do chão da escola enquanto espaço de transformação social. A educação é a ponte que separa o saco preto e a invisibilidade. A escola, nos moldes que conhecemos, tem falhas e está em constante transformação muito por conta da falta de investimento nos profissionais que atuam dentro dela, mas não é acabando com ela que vamos ver as mudanças que buscamos fazer.

A importância da universidade e da pesquisa

Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século 21 não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo." O trecho é do artigo “O fim da era do humanismo”, de Achille Mbembe, também autor de "Necropolítica".

Foi a partir da tendência de seguir o capitalismo ultraneoliberal, comandada por uma ultradireita, que a tecnologia foi utilizada para propagar fake news e ódio racial e de gênero. O crescimento nada sutil dessa prática, desde de 2016, ocorreu quando o mercado financeiro assumiu totalmente o controle da agenda do Poder Executivo e Legislativo. Esse grupo impôs o congelamento do que era visto como um "gasto" nas áreas sociais (em saúde, educação e assistência) através da emenda constitucional 95. Tirou direitos que protegem os trabalhadores e desmontou a estrutura da seguridade social com a reforma da Previdência, aprovada no ano passado.

Entretanto, a crise do coronavírus chegou para enfraquecer o discurso, de um dia para outro, daqueles que afirmavam que essas medidas de congelamento eram necessárias para o crescimento da economia. Esses atores sentiram o impacto de uma sociedade desprotegida, com lideranças despreparadas que continuam a reafirmar o dogma da economia, mesmo diante da morte. É natural que aqueles que só pensavam em armas e eram defensores da morte não queiram e nem consigam combater um vírus invisível.

É nesse momento que fica explícita a contradição daqueles que chamaram as universidades de balbúrdia. Cortaram uma parte considerável de um orçamento que já vivia sufocado havia anos e perseguiram ideologicamente os editais de fomento à pesquisa. A resposta das ruas, ainda em 2019, foi o “tsunami da educação”, que deixou nítido: quem se mete com a educação compra briga com aluno, professor, tia, primo, avô. Compra briga com o povo.

Em meio à pandemia, é a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que desenvolve um protótipo de ventilador pulmonar mecânico, de baixo custo, para ser reproduzido em massa. Assim como foi a UFBA (Universidade Federal da Bahia), em conjunto com a Fiocruz, que criou um canal de informação, “Tele Coronavirus”, para ajudar a divulgar informações e tirar dúvidas da população.

É nítido o valor de projetos universitários que buscam baratear materiais de proteção e higiene nesse momento de pandemia. Além de mostrar o papel fundamental de tantos pesquisadores e pesquisadoras pelo Brasil que buscam alternativas para conter o vírus, apesar de muitos deles terem tido as bolsas de pesquisas cortadas no último ano.

Covid-19 nas favelas

Nós atuamos em projetos sociais ligados à educação popular que já estavam nesta defesa, tanto na participação de grandes atos, quando no diálogo com o território. No momento de crise da Covid-19, nossa atuação não seria diferente. Buscamos responder coletivamente às necessidades das favelas e cobrar ao poder público que faça o mesmo. Com a suspensão das nossas atividades presenciais, nos fortalecemos em rede para pensar nos territórios vulneráveis onde atuamos, que neste momento enfrentam sérios problemas por conta da suspensão de serviços.

Hoje, sabemos que, para além de ofertamos atividades educativas, culturais e esportivas, nós precisamos canalizar nossas energias para ajudar nossos alunos e seus familiares com algo mais essencial em tempos de pandemia: comida e acesso à informação. Orientações precisas sobre a necessidade do cuidado em uma realidade em que encontramos moradias precárias, falta de saneamento básico e água tratada é o que diferencia a vida e a morte. Enquanto atuantes na transformação social de territórios em vulnerabilidade social, estamos envolvidos na luta por garantias de direitos básicos.

As favelas têm mais coisas em comum além da violência. Exemplo disto é a atuação de grupos como a Coletivo Marginal, que atua na Cidade de Deus há dois anos, e promove ações de educação popular, comunicação comunitária e política. A iniciativa é pensada e feita por jovens periféricos e tem como missão promover uma alternativa de educação pública, crítica e criativa, para o desenvolvimento sustentável de territórios populares na cidade do Rio de Janeiro. O trabalho é realizado a partir dos eixos da educação popular, do direito à cidade e da comunicação comunitária.

A missão do “Escola dentro da Escola”, por exemplo, é propor uma ocupação crítica e criativa de espaços formais da educação pública, a fim de fortalecer as relações entre os alunos, as famílias, o corpo docente, o equipamento público, o território e o conhecimento do direito à cidade.

Além da Marginal, que realiza ações de apoio humanitário na Cidade de Deus durante a crise do Covid-19, o Movimento de Educação Popular +Nos, que existe há seis anos no Rio de Janeiro, também promove ações de apoio e logística para que a ajuda chegue aos territórios favelados. Por conta da pandemia, as atividades nas 17 unidades do Pré-Vestibular Popular, como as turmas de teatro, o reforço escolar e o Curso + Nós na Defensoria, foram suspensas.

Na favela do Parque das Missões, a Associação Apadrinhe Um Sorriso faz, há 11 anos, um trabalho de educação popular que tem no seu escopo a transformação social por meio da educação, cultura e esporte. Entendemos que o nosso trabalho transforma o território, que enxerga, nas nossas ações, uma fonte de esperança. Por causa do Apadrinhe um Sorriso, hoje o Parque das Missões saiu do mapa da invisibilidade. Somos mais favela, pois a educação, cultura e esporte mostrou que a violência só acontece quando o Estado, em vez de garantir direitos, os tira.

Fabiana da Silva é pedagoga formada pela UERJ. Mulher negra e favelada, ela é idealizadora e coordenadora da ONG Apadrinhe um Sorriso, além de atuar como assessora da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

Jota Marques é educador popular, conselheiro tutelar de Jacarepaguá e morador da Cidade de Deus. Nascido no interior do Paraná, atuou em diversos estados do Brasil, com experiência em instituições de base comunitária, sistemas socioeducativos e movimentos sociais. Na Cidade de Deus, fundou e coordena a Marginal, uma escola de educação popular, comunicação comunitária e política.

Wesley Teixeira é morador da Mangueirinha, na Baixada Fluminense, e articulador do Movimenta Caxias. Foi coordenador da União dos Estudantes de Duque de Caxias e atualmente coordena o Movimento de Educação Popular +Nós. É militante do coletivo RUA e do Movimento Negro Unificado, além de colaborar com a Voz da Baixada.

PerifaConnection

PerifaConnection é uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Nina da Hora, Salvino Oliveira e Jefferson Barbosa.

 

Crise tem cor e gênero, por Flávia Oliveira (O Globo)

Artigo de opinião originalmente publicado no Jornal O Globo, para assinantes, no dia 10 de abril de 2020.

"(...) A crise atual tem cor e gênero. É negra e feminina. A Covid-19 aportou no Brasil pelos corpos de maior renda e pele mais clara, retrato da elite de uma sociedade assentada no racismo e profundamente desigual. A doença, que em pouco mais de um mês alcançou quase 18 mil brasileiros e beira mil mortes, está se espalhando por periferias e favelas, habitadas predominantemente por famílias negras. Na cidade do Rio, dez comunidades são classificadas formalmente como bairros pela prefeitura; até anteontem, quatro delas (Rocinha, Vigário Geral, Manguinhos e Maré) registravam seis dos 73 óbitos confirmados.

A doença e a morte ameaçam os grupos populacionais que agregam variáveis de pobreza multidimensional. Faz tempo que organismos multilaterais elencam, além da falta de dinheiro, outras características que tornam uma família vulnerável: residências com mais de três moradores por cômodo, pouca ventilação, paredes e cobertura frágeis; falta de saneamento básico; baixa escolaridade; rede de proteção social insuficiente; dificuldade de acesso à internet.

São aspectos que, no Brasil, alcançam principalmente negros, mulheres, idosos pobres, nordestinos. (...)"

Leia o ARTIGO COMPLETO aqui!

 

Na pandemia, Doria e Covas tratam favelas e bairros nobres como iguais, por Cíntia Alves

Artigo originalmente publicado no Jornal GGN, em 13 de abril de 2020.

Há uma série de medidas anunciadas, mas nenhum programa completo e sintonizado com as especificidades de territórios que são um prato cheio para a COVID-19.

Praticar distanciamento social em um condomínio de classe média ou alta em São Paulo não é a mesma coisa que fazê-lo dentro de dois cômodos minúsculos em Heliópolis ou Paraisópolis, as duas maiores favelas do estado. A realidade socioeconômica de quem mora nas comunidades é, em si, um fator de peso quando o assunto é coronavírus.

Não à toa, alguns acadêmicos e setores da imprensa têm questionado quando as autoridades virão a público com um programa completo e específico para o enfrentamento da crise sanitária nas favelas, onde o vetor de propagação do vírus pode provocar um genocídio.

O problema é que, a julgar pelas manifestações do governador João Doria e do prefeito Bruno Covas, esse grande pacote não virá.

Na coletiva de imprensa do dia 10 de abril, o secretário de Saúde do Estado, José Henrique Germann, afirmou que as comunidades pobres e os bairros nobres não serão tratados com “distinção” neste momento.

Ele ainda disse que um plano exclusivo para as favelas começou a ser discutido, mas chegou-se à conclusão de que “não seria efetivo” e a solução a curto prazo seria correr atrás da estrutura hospitalar para tentar socorrer os contaminados. “Temos de partir para a assistência propriamente dita”, pontuou.

Doria, por sua vez, argumentou que embora a responsabilidade sobre as grandes favelas sejam dos municípios, o governo estadual está “apoiando todas as prefeituras” financeiramente e através da estrutura da rede pública de saúde.

Germann acrescentou que medidas foram e continuarão sendo anunciadas para as favelas, mas elas são “uma área de trabalho como todas as outras” para o grupo de gestão de crise.

As aglomerações inerentes à situação habitacional precária, claro, trazem “riscos” maiores, são uma verdadeira bomba-relógio, mas o que mais poderiam fazer?

Essa visão do governo contrasta com iniciativas que brotam nas próprias comunidade. Em Paraisópolis, por exemplo, lideranças organizaram uma vaquinha virtual para contratar, por conta própria, equipe médica e ambulâncias. Chegaram a cogitar o uso de parte do dinheiro arrecadado para alugar casarões para hospedar temporariamente os idosos e outros moradores em grupo de risco. Uma tentativa de fazer “isolamento vertical” quando famílias sofrem por não terem espaço físico para distanciamento social.

A postura pragmática do governo Doria é a mesma da Prefeitura. Na mesma coletiva de imprensa, Bruno Covas sustentou que os hospitais de campanha em construção na capital são “hospitais de porta fechadas” que não escolherão pacientes pela conta bancária ou CEP. E dobrou a aposta na igualdade social fora de contexto.

“O município não faz distinção entre classes sociais. O atendimento é para qualquer um, não importa de onde ele venha. A cloroquina [que será comprada pela Prefeitura] é para os hospitais municipais, não é para de distribuir nas ruas, sejam elas do Jardins ou Paraisópolis”, disparou o prefeito.

Na sexta, após a coletiva de imprensa, o GGN conversou com a secretária de Desenvolvimento Social do Estado, Célia Parnes, que comentou sobre uma série de medidas que foram anunciadas pensando nas favelas.

Entre elas, a distribuição de cestas básicas, o vale-refeição que compensa a merenda suspensa nas escolasa fabricação e distribuição de 2 milhões de máscaras de tecido nas comunidades de todo o estado, a suspensão de água pela Sabesp, a regulação do preço do gás, além da possibilidade de destinar duas escolas na região de Paraisópolis para criação de leitos e previsão de distribuir cestas de higiene pessoal e produtos de limpeza doméstica. [Confira a entrevista aqui, e o resumo das medidas já anunciadas pela Prefeitura e governo estadual aqui e aqui.]

Quando Doria lançou o programa de monitoramento de aglomerações por geolocalizações, Célia reforçou que as comunidades receberão atenção especial.

“Vamos colocar estações de rádio base nessas comunidades para conseguir monitorar mais proximamente as regiões de mais adensamento. Vamos ver não só o deslocamento das pessoas, mas o índice de incidência de contágio”, disse. Célia reconheceu que “nessas regiões, o vetor de coronavírus é mais veloz.”

O secretário de Saúde da capital, Edson Aparecido, foi quem mandou a real: a situação das favelas é um drama que se arrasta há décadas e, na pandemia do coronavírus, o poder público se prepara para ser o bombeiro no meio de um grande incêndio.

Segundo o secretário, além das medidas já anunciadas, as comunidades terão campanhas de conscientização e apoio das equipes do programa Saúde da Família, que visitam os moradores fazendo acompanhamento e prevenção. Mas segurar o avanço de um novo vírus nos becos e vielas dependeria de um planejamento a longo prazo.

“É impossível falar em ação sem lembrar da necessidade de programa habitacionais e saneamento. A Prefeitura enviou projeto de lei para a Câmara, para usar recurso excedente da Operação Faria Lima em Paraisópolis. Um bilhão de reais que seriam usados na área da Faria Lima, a gente quer investir em Paraisópolis, seja para habitação ou saneamento.”

 

Covid-19 e a População em Situação de Rua: da saúde à segurança pública?

Artigo originalmente públicado no site do IFCH-UFRGS, em 14 de abril de 2020.

Isole-se, distancie-se, lave as mãos, use álcool gel, #fiqueemcasa!” são algumas das principais orientações médicas para o combate ao coronavírus - Covid-19. Não há dúvida sobre a importância de tais recomendações, mas cabe perguntar: e para aqueles que não têm casa?

Há mais de uma década estamos engajados na pesquisa, na realização de projetos de extensão e na colaboração para a organização política da população em situação de rua em Porto Alegre. A população de rua abarca um número crescente de pessoas no país e é alvo de programas e políticas nacionais para sua atenção desde 2009, a partir da implementação da Política Nacional para População em Situação de Rua. O estudo antropológico junto a esta população vem mostrando que o incremento das políticas e a maior visibilidade dos corpos e modos de vida destas pessoas não conseguem reverter duas fortes perspectivas sobre o assunto: (1) àquela pautada pela visão de que a população de rua deve ser suprimida a partir simples da retirada das pessoas da rua; (2) àquela que subentende as pessoas em situação de rua como os sujeitos da “falta”. Em tempos de pandemia do Covid-19, os riscos associados a tais posturas implicam, de um lado, a produção de políticas de concentração compulsórias realizadas a partir de um modus operandi da segurança pública (hierarquizar, segregar e vigiar) e, de outro lado, a retirada da agência dos sujeitos, tornando a população de rua alvo de ações que acentuam os processos de repressão e exclusão social.

A pandemia do Covid-19 é um reflexo da desigualdade. Uma emergência sanitária que nos faz pensar sobre como são tratados historicamente os menos favorecidos. Não se enfrenta somente a emergência, mas sim a permanência de uma violência estrutural em que as formas de implementação das políticas estatais são um agente importante. Embora o Covid-19 se dissemine democraticamente, as taxas de mortalidade não são democráticas e diferentes populações estão sujeitas a maiores e menores riscos. Estar isolado no conforto de uma casa pode fazer diferença entre a vida e a morte. Ter acesso a serviços de saúde, a medicamentos e a uma alimentação saudável também são elementos diferenciadores. Possuir condições de acessar água e produtos de higiene corporal e doméstica são outros fatores nessa balança de riscos, bem como a presença de vínculos relacionais de proteção. A ameaça do Covid-19 não é apenas viral. A ameaça do Covid-19 é coproduzida pelas condições desiguais de vida da população brasileira. Se isso é verdade, as pessoas em situação de rua, por suas condições de vida, estão bastante suscetíveis ao vírus.

 Como a exposição é desigual e as suscetibilidades variam, as políticas importam. As experiências locais de recepção da pandemia evidenciam que a estruturação do sistema de saúde, o investimento em políticas científicas, a expansão da testagem e um aparato eficiente de gerenciamento de populações fazem diferença nos impactos contextuais da pandemia. Para populações com maiores riscos em função de suas condições de vida, as políticas fazem diferença decisiva entre a vida e a morte. No caso da população em situação de rua, a maior aposta contra a disseminação do vírus, a orientação: #fiqueemcasa, tem efeito nulo.

 Como diversos trabalhos na área da antropologia com as políticas públicas insistem, é preciso ir além das políticas globais para investir em estratégias de combate afinadas com a cultura e com condições de vidas locais; ao invés de meros “detalhes” contextuais, tais elementos estão no cerne das possibilidades de enfrentamento à pandemia. O “Plano de Contingenciamento da Pandemia do Corona Vírus (Covid-19) para a População em Situação de Rua de Porto Alegre” foi produzido por um coletivo de organizações da sociedade civil, profissionais do serviço público e representantes das pessoas em situação de rua. No dia 26 de março de 2020, este documento foi entregue aos representantes do Poder Público Municipal e tem dado suporte a algumas iniciativas somente porque foi construído em diálogo com a população de rua - atendendo às suas expectativas e indo ao encontro das suas condições de vida.

 Entre as medidas sugeridas, constam à disposição de espaços públicos e materiais de higiene necessários para banhos e limpeza de mãos, roupas e utensílios; a ampliação de espaços de acolhimento como abrigos e albergues com remodelação de suas estruturas de modo a permitir o distanciamento social necessário para evitar a  disseminação do vírus; o investimento em programas de habitação que possibilitem a menor ocupação de abrigos e albergues; a atenção especializada de saúde para população de rua, a qual já conta com doenças preexistentes e muitas vezes negligenciadas pelo sistema de saúde; a testagem da população de rua em relação ao Covid-19 e a criação de espaços de quarentena para permanência dos atingidos pelo vírus, bem como de lugares protegidos para grupos de maior risco, como idosos, soropositivos, doentes e mulheres grávidas; a garantia de segurança alimentar e de uma renda mínima que possibilite a sobrevivência de pessoas que, em muitos casos, dependem da realização de pequenos serviços autônomos e eventuais, da venda de mercadorias em sinaleiras e do recolhimento de bens de caridade, escassos em tempos de isolamento social. 

 Todas essas sugestões vão além da orientação #fiqueemcasa, ao mesmo tempo em que ressaltam que o enfrentamento ao impacto do Covid-19 na população em situação de rua ultrapassa a produção de espaços especializados para segregação dessas pessoas nas cidades. Embora importantes, precisamos estar atentos ao fato de que não devem ser a única estratégia empreendida, pois isso significaria apenas maior segregação e exclusão social dessa população, correndo o risco de transformar uma questão de saúde pública em política de segurança pública. As pessoas em situação de rua não devem ser percebidas como riscos, mas sim como população em risco com a pandemia do Covid-19. Num cenário bastante desigual de distribuição de suscetibilidades, talvez a pandemia nos permita repensar os rumos de nossas políticas e formas de vida atuais. A absurda construção de uma polarização entre economia e vidas humanas que naturaliza o sacrifício de determinadas populações, expondo-as à morte em nome do perigo da fome, pode estar evidenciando que, no presente cenário, há muitas outras ameaças a combater, para além do coronavírus – Covid-19.

Patrice Schuch - Doutora em Antropologia Social, Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Em conjunto com o professor Ivaldo Gehlen, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS, coordenou pesquisas censitárias na cidade de Porto Alegre sobre população de rua.  Também orienta vários estudos antropológicos sobre a população de rua, tendo desenvolvido projetos de pesquisa e de extensão realizados junto ao Movimento Nacional da População de Rua, ao Jornal Boca de Rua e à Escola Porto Alegre

Calvin Da Cas Furtado - Mestre em Políticas Públicas, atualmente doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UFRGS. Desenvolveu o documentário “A Vida é Sempre um Mistério”,  sobre população de rua,  e realiza pesquisa sobre violência, políticas públicas e população de rua. - 

Caroline Silveira Sarmento - Mestra em Antropologia Social, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UFRGS. É colaboradora do Jornal Boca de Rua e desenvolve pesquisas antropológicas sobre gênero, políticas públicas e violência.

 

Covid: há mais chance de letalidade entre negros, por Alma Preta

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, por Pedro Borges, do Alma Preta, em 15 de abril de 2020.

Proporção de óbitos já supera a de pessoas brancas – embora o vírus ainda não tenha entrado com força nas comunidades pobres. Informações de raça são ignoradas em mais de 300 casos de mortes e quase 2 mil casos de internações.

Dados do Ministério da Saúde mostram indicadores mais elevados de contaminação e morte pela Covid-19 entre os brancos. A pesquisa apresenta que 73,9% dos hospitalizados até o momento pertencem a esse segmento racial, enquanto 23,1% dos internados são negros.

Apesar de os brancos se manterem entre os que mais morrem pelo coronavírus, há uma diminuição do abismo quando comparados ao grupo racial negro. De acordo com os dados, 64,5% das vítimas de Covid-19 são brancas e 32,8% são negras. Ou seja, enquanto negros representam 1 em cada 4 pessoas internadas pela doença, quando falamos em letalidade, esse número diminui para 1 em cada 3 mortos, segundo o Ministério da Saúde.

Em entrevista ao Alma Preta, Cléber Firmino, médico e integrante do grupos de profissionais da saúde Negrex, acredita que ainda há uma presença majoritária de pessoas brancas infectadas, mas que o cenário tende a se modificar.

O início da pandemia no Brasil foi pelas classes sociais mais altas com menor número de pessoas negras. Acreditamos que o vírus ainda não tenha entrado com força nas comunidades mais pobres”, afirma.

A pesquisa mostra a existência de muitos casos de pessoas internadas e mortas pela Covid-19 sem a identificação do quesito raça/cor. Entre os óbitos, em 341 casos essa informação foi ignorada, bem como em 1.942 pessoas internadas.

A ausência de indicadores em muitos casos e a maior letalidade entre os negros quando internados exigem atenção, segundo Cléber Firmino.

Isso mostra a importância do Ministério da Saúde gerar dados e políticas públicas específicas. Sabemos que apenas estão sendo notificados casos que tenham sido hospitalizados, podendo haver uma subnotificação. Também fica apontado em vários estudos que negros têm menos acessos aos serviços de saúde”, completa.

O boletim do Ministério da Saúde indica 19.638 pessoas infectadas com a doença no Brasil e 1.056 casos de pessoas mortas em decorrência do coronavírus. As informações são das 14h do dia 10 de abril.

A divulgação dos indicadores de raça/cor são uma novidade nos boletins do Ministério da Saúde. A incorporação das informação é resultado de um pedido do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

No dia 8 de abril, a Coalizão Negra por Direitos, grupo que reúne mais de 150 entidades do movimento antirracista, também protocolaram pedidos no Ministério da Saúde e em secretarias estaduais de saúde para que os dados venham desmembrados pelos quesitos raça/cor.

De acordo com informações do Ministério da Saúde, quase 80% dos usuários do SUS no Brasil são negros.

O vírus pode ser fatal para quem tem diabetes, asma ou hipertensão. Estas são doenças crônicas pelas quais a população negra está mais vulnerável. De acordo com o relatório de Política Nacional de Saúde da População Negra lançado em 2017 pelo Ministério da Saúde, por exemplo, a hipertensão é mais alta entre os homens e tende ser mais complicada em negros, de ambos os sexos.

Por sua vez, a diabetes atinge com mais frequência os homens negros, 9% a mais que os brancos, e as mulheres negras, em torno de 50% a mais do que as brancas.

 

O SUS e a Atenção Primária à Saúde na rede de enfrentamento da pandemia, por Ligia Giovanella

Artigo originalmente publicado no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz), em 19 de abril de 2020.

A Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde considera necessário manter um debate qualificado e a difusão de informações e orientações adequadas com transparência para o controle da Covid-19. Nós, do comitê gestor da Rede de Pesquisa em APS da Abrasco, neste momento excepcional de muitas incertezas, temos dialogado, em encontros semanais virtuais, sobre estratégias de atuação da APS no SUS para o enfrentamento da Covid 19. Para discutir essas estratégias, foram constituídos grupos de trabalho que estão elaborando análises que foram apresentadas e discutidas no seminário.

Nós nos alinhamos à iniciativa da Abrasco, que divulgou em carta Sugestões para o fluxo de atendimento de pacientes sintomáticos respiratórios nas unidades de atenção primária, unidades de pronto atendimento e serviços ambulatoriais, preocupada com a proteção de profissionais de saúde e dos usuários, na busca de reduzir/prevenir o contágio.

O objetivo do seminário foi discutir a potencialidade da contribuição da APS no controle da epidemia, em especial, da Estratégia Saúde da Família, que ainda resiste, apesar das tentativas de desmantelamento, desde 2017 e do atual governo.

São tempos incertos que exigem reinventar processos de trabalho, estabelecer novos fluxos, fortalecer redes.

O Sistema Único de Saúde com seus princípios de universalidade, integralidade e equidade e a capilaridade de seus serviços pelo território nacional, tem potencial para lidar com esta pandemia. No entanto, o SUS cronicamente subfinanciado, nos últimos anos sofre um desfinanciamento agudo com a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos públicos e já afetou de maneira direta a saúde, ocasionando redução de R$ 20 bilhões dos recursos da saúde no orçamento federal de 2020. E, mesmo hoje, frente à pandemia, os recursos federais não superam essas perdas. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), para o combate à Covid-19 foram alocados até 14 de abril R$ 18,9 bilhões: R$ 5,6 bilhões de recursos do Ministério da Saúde remanejados e R$ 13,3 bilhões de recursos novos. Destes, R$ 7,8 bilhões foram empenhados e apenas R$ 5 bilhões, liquidados: R$ 2 bilhões transferidos a estados e R$ 3 bilhões transferidos a municípios.  (R$ 13 bi novos para o SUS e R$ 15 bi liberados para os planos de saúde!)

O enfrentamento desta pandemia depende do fortalecimento do Sistema Único de Saúde em todos os seus componentes: de vigilância, de cuidado em todos os níveis, promoção, prevenção e pesquisa: de Mais SUS – Mais Estado – para Mais Saúde

Certamente,  a experiência internacional mostra que as medidas de isolamento social, associadas à testagem ampla com identificação de casos, à busca dos contatos e isolamento estrito de casos e contatos, testar, testar, testar e proteção adequada dos profissionais da saúde têm conseguido diminuir o contágio, prevenir o crescimento exponencial de casos e reduzir sofrimento e morte.

O modelo da APS brasileira com suas equipes de saúde da família e enfoque comunitário e territorial, com comprovados impactos positivos na saúde da população, tem um papel importante na rede assistencial de cuidados e pode contribuir para a abordagem comunitária necessária no enfrentamento de qualquer epidemia.

O enfrentamento desta pandemia depende do fortalecimento do Sistema Único de Saúde em todos os seus componentes: de vigilância, de cuidado em todos os níveis, promoção, prevenção e pesquisa: de Mais SUS – Mais Estado – para Mais Saúde

No controle de uma epidemia além da garantia do cuidado individual – que no caso da Covid-19, para reduzir mortes, torna necessário prover atenção oportuna com transporte sanitário exclusivo, leitos hospitalares e UTIs equipadas que permitam a intubação dos pacientes por longo tempo –, é necessária uma abordagem comunitária. E nossas equipes de APS conhecem seus territórios, sua população, suas vulnerabilidades e têm papel importante na abordagem comunitária. Urge ativar esses atributos comunitários da ESF, associar-se às iniciativas solidárias das organizações comunitárias, articular-se intersetorialmente para apoiar sua população em suas diversas vulnerabilidades e garantir a continuidade das ações de promoção, prevenção e cuidado criando novos processos de trabalho na vigilância em saúde, no apoio social e sanitário aos grupos vulneráveis, na continuidade da atenção rotineira para quem dela precisa.

O modelo da APS brasileira com suas equipes de saúde da família e enfoque comunitário e territorial, com comprovados impactos positivos na saúde da população, tem um papel importante na rede assistencial de cuidados e pode contribuir para a abordagem comunitária necessária no enfrentamento de qualquer epidemia

As apresentações e debates no seminário em síntese apontam para:

- A reorganização dos processos de trabalho depende de cada contexto, de cada UBS, de cada município. Não há um modelo único.

Temos mais perguntas do que respostas.

O seminário nos deixa algumas questões e pressupostos:

Separar os fluxos de atenção dos sintomáticos respiratórios e dos pacientes com outros problemas/necessidades: a linha de cuidado começa por telefone específico para atenção aos sintomáticos respiratórios com comunicação às equipes de casos de sua área para acompanhamento diário por telefone. Como organizar a atenção de sintomáticos respiratórios? Definir estabelecimentos específicos para o atendimento aos sintomáticos respiratórios que necessitam de cuidado presencial? Construir tendas no espaço exterior das UBS?  Separar fluxos no interior das UBS, sem produzir contágio, em geral é muito difícil. Separar equipes de profissionais que atendem sintomáticos respiratórios permite uso mais racional dos EPIs.

Reduzir ao mínimo o número de profissionais que entram em contato com casos suspeitos/sintomáticos respiratórios.

Reduzir atendimento presencial ao mínimo necessário: organização de teleconsulta, grupos usuários por whatsApp, por agente comunitário de saúde (ACS), grupos de condições e agravos acompanhados por médicos e enfermeiros a distância, teleapoio do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) etc.

Disponibilizar INTERNET PARA TODOS, profissionais de saúde e população. O poder público deve instalar wifi em cada bairro, em cada comunidade, articular com operadoras para ampliar a internet de todos os cidadãos que têm contas telefônicas pré ou pós pagas; no mínimo, articular para disponibilizar maior acesso (minutos, mensagens e internet) para todos os profissionais, incluindo todos os ACSs (vide exemplo de Portugal).

Testar, testar, testar: identificar casos e buscar contatos e apoiar o isolamento domiciliar. A experiência internacional de países que têm conseguido controlar a epidemia mostra que a testagem ampla ao identificar casos leves e assintomáticos possibilita o isolamento destes e seus contatos, reduzindo o contágio e o número de mortes. Mesmo ainda não dispondo de testes suficientes, devemos exigir que testes sejam disponibilizados com urgência.

Transporte oportuno e específico para Covid-19, com fluxos de referência e contrarreferência bem estabelecidos, associado à regulação de leitos, e evitando que casos suspeitos entrem em contato com muitas equipes profissionais.

Monitoramento a distância de casos em tratamento domiciliar pelas equipes de saúde: contatos telefônicos diários/de 12/12hs – a mudança de quadro para grave pode ser muito rápida.

Para finalizar gostaria de ressaltar os três grandes eixos de ação para as equipes de Saúde da Família em seus territórios, como apontado pela professora Maria Guadalupe Medina:

i) vigilância em saúde nos territórios, com apoio ao isolamento social e de casos e contatos, educação em saúde, notificação; acompanhamento cotidiano a distância dos casos em cuidado domiciliar;

 ii) apoio aos grupos vulneráveis por sua situação de saúde e ou social, articulado a iniciativas comunitárias, e articulação intersetorial;

iii) continuidade dos cuidados rotineiros da APS (como pré-natal, hipertensos, diabéticos, vacinação) com novas formas de cuidado cotidiano a distância (com disponibilidade de acesso à internet, whatsApp, telefone, teleconsulta…)

As escolhas de estratégias para o SUS e a APS hoje terão consequências para o SUS no futuro.

Uma boa atuação do SUS levará ao seu fortalecimento. O enfrentamento da pandemia tem revelado a distribuição desigual de serviços de saúde e exige a construção de redes assistenciais regionalizadas, bem como o fortalecimento da autoridade sanitária estadual, o que pode ser um legado positivo para o sistema. Mas podemos também caminhar para uma maior mercantilização e privatização, a depender das escolhas feitas. Por exemplo, podemos ampliar a capacidade instalada pública laboratorial ou financiar o setor privado. Na APS, a criação da Adaps [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde] neste período também sugere uma opção pela privatização.

Podemos também sair desta pandemia com uma APS mais integral, mais fortalecida, se aprofundarmos seus atributos comunitários.

Incentive o isolamento social – fique em casa, lave as mãos, use máscara.

Lançamos um fascículo especial sobre o tema da APS no enfrentamento da Covid-19, que contempla artigos referentes a algumas das análises apresentadas, de nossa publicação APS em Revista, que tem como editor Allan Claudius Queiroz Barbosa, da Face UFMG.

Convido todos a se cadastrar na rede de pesquisa APS, para receberem o boletim semanal e participar de nossas atividades.

Assista a integra do seminário  Desafios da APS no SUS no enfrentamento da Covid-19

* Ligia Giovanella é Pesquisadora da Ensp/Fiocruz, co-coordenadora da Rede APS.

 

 

Nas periferias, cai o mito da “doença democrática”, por El País Brasil

Artigo publicado no blog Outras Palavras, em 06 de maio de 2020.

Em SP, os 300 mil habitantes da Vila Brasilândia convivem com a maior taxa de óbito por covid-19. O distanciamento é dificílimo. A perda de renda, dramática. Os hospitais próximos estão à beira do colapso. Há famílias inteiras contaminadas.

Por Felipe Betim, no El País Brasil.

“Ih, filho, minha vida tá embaçada”. Essas são as primeiras palavras de Ilma Paulino, de 47 anos, ao ser perguntada como a pandemia de coronavírus vem afetando sua rotina. Moradora de Vila Teresinha, subdistrito de Brasilândia, em São Paulo, ela vive com seus dois filhos —um deles com depressão— e precisa cuidar da irmã com epilepsia. Por causa das idas ao médico e dos cuidados diários, não pode ter trabalho fixo há dois anos. Assim, se mantém com o auxílio de um salário mínimo do INSS da irmã e os bicos como diarista, que rendiam cerca de 200 reais por semana. “Eu arranjava esses trabalhos, mas agora nem isso estou conseguindo. As pessoas estão com medo de receber gente em casa”, conta a mulher. Enquanto conversa com o EL PAÍS, recebe uma cesta básica do coletivo comunitário Preto Império, que atua em parceria com a rede de cursinhos pré-vestibular Uneafro e a agência de jornalismo Alma Preta. “Se não estivessem me ajudando, estaria perdida”, afirma a mulher, que solicitou a renda básica emergencial do Governo Federal, mas ainda não obteve resposta.

Em casa, Ilma mantém a rotina de lavar bem as mãos e manter tudo limpo. Seu irmão, que tem mais de 60 anos, e mora em outra rua, está entubado na UTI do Hospital Geral Vila Penteado. De acordo com a sobrinha, que repassa diariamente os boletins médicos, ele não vem respondendo aos tratamentos. “E eu vou levando minha vida, como Deus quer. Mas até onde vai, não sei”.

O relato de Ilma retrata algumas das dificuldades enfrentadas pelos moradores da periférica Brasilândia, localizado na zona norte de São Paulo e um dos mais populosos da capital paulista. São cerca de 300.000 habitantes divididos em 43 subdistritos. De acordo com os dados da prefeitura, comandada por Bruno Covas (PSDB), a Brasilândia concentra o maior número bruto de óbitos (confirmados ou suspeitos) por coronavírus. No boletim desta segunda-feira, 4 de maio, a região aparecia com 103 mortes confirmadas ou suspeitas. Esse número maior se deve principalmente ao maior número de habitantes. Outro fator que deixa a região ainda mais vulnerável é o atraso na inauguração do Hospital Municipal da Brasilândia, prometido pela prefeitura para maio. Mas, quando se analisa a taxa de óbitos, Brasilândia aparece com 36,5 mortes por 100.000 habitantes. Belém (zona leste), Pari (centro) e Artur Alvim (zona leste) aparecem no topo, com taxas superiores a 56 óbitos por 100.000 habitantes.

O EL PAÍS circulou de carro pela Brasilândia e conversou com algumas pessoas na manhã da última terça-feira, 28 de abril. Entre as 9h e 14h, pôde constatar que a maior parte das ruas tinha pouco movimento de carro e pessoas —algumas vias estavam completamente vazias—, enquanto que a maioria dos comércios —salvo mercados, mercearias e algumas oficinas e bares— se manteve fechada. As aglomerações são pontuais: elas acontecem em locais com obras públicas, em filas da Caixa Econômica Federal e das Lotéricas, e na distribuição de marmitas do programa Bom Prato, do Governo do Estado, no horário do almoço. Também cabe ressaltar que, entre os que circulavam pelas ruas ou utilizavam transporte público, grande parte usava máscara de proteção para tampar a boca e o nariz.

“Graças a Deus tenho minha família para me ajudar, eles estão dando muita força para mim”, conta Maria de Fátima Nunes, costureira aposentada de 62 anos. Ela vive com suas três filhas, três genros e oito netos. Todos têm evitado sair de casa nas últimas semanas. Além de sua aposentadoria de um salário mínimo, a família consegue manter o isolamento por causa das filhas, todas com emprego registrado, apesar do corte de 50% no salário. Por ter restrições alimentares, também conta com a doação de alimentos orgânicos entregue pela Preto Império. “Caso contrário, eu teria que estar na rua para buscar comida e tudo. Mas eu acabo ficando muito depressiva por estar isolada. Dá uma tristeza muito grande por causa da vontade de fazer as coisas e não poder”.

A conscientização de pessoas como Maria de Fátima e sua família é mais recente, de algumas semanas atrás, conforme o número de casos e mortes foi aumentando pelo bairro, segundo vários relatos. “Ainda assim, muitos colocam a máscara e, na hora de conversar, tira”, explica Elaine Reis, de 44 anos. Mesmo assim, ainda é possível ver, como nos outros bairros de São Paulo, pessoas conversando a pouca distância em bares e na porta de casa ou adolescentes empinando pipa.

Os relatos também são de que o movimento nas ruas aumenta nos finais de semana. Trabalhadora da área da saúde e moradora da região, Elaine argumenta que a informação sobre os riscos da covid-19 vêm circulando não só a partir dos meios de comunicação, mas também nas ruas. “Outro dia um carro de som passou anunciando, explicando, informando como todos deveriam agir. Mas não é todo mundo que está se cuidando, se preocupando se vai ter futuro. Ainda há muitas pessoas que não usam máscara para sair e não estão fazendo totalmente a quarentena”, explica. Elaine não se refere aos trabalhadores que não podem parar —”estes estão se cuidando mais”, garante—, mas sim àqueles que “agem como se estivessem de férias”.

Seu marido é motorista de aplicativo e viu o movimento cair. Fica a maior parte do tempo em isolamento junto com a filha, além de outros parentes que moram em casas coladas uma da outra. Cabe a Elaine, que está na linha de frente do combate ao coronavírus, sustentar a família. “Os gastos com comida, água e luz aumentaram. Também tivemos que gastar o dobro com uma internet mais rápida, porque a outra não estava dando conta com todo mundo em casa usando”, conta a mulher. “Por outro lado, nossa renda mensal diminuiu uns 60%. Tivemos que nos endividar, parcelar o cartão de crédito, que tem juros abusivos…”. Seu marido foi aprovado no programa de renda básica emergencial do Governo, mas, por questões burocráticas, ainda aguarda a liberação dos 600 reais pela Caixa.

Dimas Reis, de 32 anos, nascido e criado na Brasilândia e hoje coordenador do coletivo Preto Império, confirma que há pessoas, principalmente alguns jovens, que “estão desacreditando no que está acontecendo e não têm noção do impacto” da pandemia. “Pode acontecer como em uma casa aqui da esquina, onde a avó ficava isolada mas o neto saía toda hora. A avó acabou infectada, mas o neto continua bem”, relata. Porém, explica que todos os bairros da periferia de São Paulo apresentam “condições semelhantes de educação, alimentação e saneamento precário” e estão mais expostas ao coronavírus “por causa da ausência do Estado”. Os bairros periféricos, sobretudo nas zonas norte e leste, concentram a maioria das mortes por covid-19. Paralelamente, os hospitais das redes municipal e estadual, muitos deles localizados nas periferias, possuem taxa de ocupação de leitos UTI superior a 80% ―alguns já atingiram o 100%, como o centro de referência Emílio Ribas.

Trabalhadores na informalidade

Outro fator muito característico das periferias paulistanas e brasileiras é o do trabalho informal, recorda Dimas. “As pessoas precisam matar um leão por dia e tentar garantir a subsistência e muitas não conseguem se isolar. O isolamento é necessário, mas é extremamente impactante para as famílias. Elas ficam sem condições, sem perspectiva de manter seus planos, de pagar suas contas fixas, de comer…”, explica. Por conta dessa situação de vulnerabilidade, a Preto Império cadastrou, via agentes comunitários de saúde, cerca de 200 famílias de renda baixa. Até a última terça-feira já havia distribuído 300 cestas de alimentos como óleo, arroz, feijão e macarrão, além de fazer entregas semanais de 150 marmitas. “Fiquei impactado com um pai que veio a pé de outro bairro com o filho para pedir comida, mesmo sabendo que já estávamos entregando e buscando resolver. Ver isso e naquele dia não poder ajudar foi bem dolorido”, conta.

Outro dos beneficiados pelas doações da Preto Império está o pedreiro Ivanilson Ramos do Nascimento, de 47 anos. Ele vive com o pai, aposentado de 77 anos que recebe um salário mínimo mensal, seu irmão e dois sobrinhos. Assim como Ilma, não tem trabalho fixo desde 2013 e se sustenta com bicos. “Sou autônomo e tirava por mês uns 2.000 reais. Mas agora está faltando serviço, estou parado há quase dois meses”, explica.

Contudo, Ivanilson precisa interromper o isolamento social para fazer alguns trabalhos como pedreiro, pintor e eletricista que, segundo conta, ele não pode recusar. “Não existe para mim trabalhar de casa. Meu serviço é braçal, né? Se eu não vou lá pessoalmente resolver, eu fico sem nada. Mas, hoje, não consigo nem 400 reais por mês”, conta ele, que também solicitou a renda básica emergencial do Governo e aguarda resposta. “A casa é própria e isso ajuda, mas tem água e luz para pagar. Não estamos passando necessidade porque a gente se ajuda, mas estamos precisando. A situação de minha ex-esposa e meus filhos é mais tranquila. Ela trabalha com faxina e foi demitida, mas pelo menos está recebendo o segundo desemprego”.

“Acho que todo mundo em casa pegou”

Na casa de dois quartos e um banheiro onde vivem as sete pessoas da família da professora Michele Tamara Fernandes Teixeira, de 38 anos, somente o sogro e o marido dela não apresentaram algum sintoma associado ao coronavírus. Sua sogra foi a primeira a apresentar sinais como febre e cansaço. Ela acabou internada com o diagnóstico de infecção urinária no Pronto Socorro Municipal 21 de Junho, na região da Freguesia do Ó. “Ela nunca chegou a ser testada para a covid-19, nunca saberemos o que ela teve, mas está até hoje sem paladar”, diz a professora.

Como não havia confirmação da doença, e o diagnóstico era somente infecção urinária, a professora acompanhou a sogra ao longo dos cinco dias de internação. E foi justamente ali, dentro do hospital, que ela acredita ter sido infectada. “Não me deram uma máscara para usar dentro do hospital”, diz. “Nem para mim e nem para ela, que ficou em um quarto com mais sete pessoas, e ninguém usava máscara”. Poucos dias depois, Michele começou a ter diarreia e febre incessante. Procurou três hospitais particulares e somente no último foi realizado o teste para a covid-19 nela, depois que um raio-x mostrou manchas em seu pulmão. Ficou dois dias internada.

Quando voltou para a casa, foi a vez do filho passar outros dois dias no hospital com sintomas parecidos. Sem condições de se isolar em uma casa tão pequena para tanta gente, o efeito dominó na família seguiu, atingindo a filha mais nova e, na sequência, a mais velha, que chegou a ficar com falta de ar. Dos cinco membros da família que apresentaram sintomas, somente Michele e o filho conseguiram realizar o teste para a covid-19. E só o dela deu positivo. Para ela, tudo poderia ter sido evitado se a sogra, a primeira a adoecer, tivesse sido testada para que o restante da família pudesse se proteger do contágio. “Se tivessem feito um teste nela ou se tivessem me dado máscara no hospital onde ela ficou, nada disso teria acontecido”, diz Michele. “No fim, acho que todo mundo em casa pegou, mas no meu marido e no meu sogro foi assintomático”.

Hospital da Brasilândia ainda não funciona

Brasilândia conta 17 Unidades Básicas de Saúde, além de outros equipamentos municipais, mas o único grande centro para atendimentos complexos da região é o Hospital Geral Vila Penteado, administrado pelo Governo do Estado. Os moradores ainda aguardam pela inauguração do Hospital Municipal da Brasilândia. Em nota enviada ao EL PAÍS, a Secretaria Municipal da Saúde garante que a obra será entregue em maio. “O equipamento contará com 150 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 30 leitos de transição exclusivos para o tratamento de pessoas com o Novo Coronavírus. Quando pronto, será um hospital e maternidade com 305 leitos e beneficiará 2,2 milhões de pessoas da região”, explica. “Vale lembrar que a administração municipal retomou, a partir de 2017, diversas obras deixadas paradas pela gestão anterior em áreas como Saúde e Educação, o que ocasionou a revisão de prazos inicialmente previstos”, acrescenta.

A gestão municipal também diz que vem realizando ações comunitárias preventivas e se aliando a lideranças locais e associações de bairro para desinfectar as ruas, distribuir máscaras e passar informações através de carros de som. “As unidades de saúde têm atendido diariamente os usuários com sintomas de síndrome gripal. Sendo leve, são medicados e orientados para o isolamento domiciliar. Estes pacientes são monitorados diariamente e com retorno até o quinto dia. Se apresentarem piora nos sintomas, são encaminhados para hospitais de campanha, conforme critérios clínicos”.

Esta reportagem contou com a colaboração de Marina Rossi.

 

O massacre que interrompeu a quarentena no Complexo do Alemão, por Jeniffer Mendonça

Artigo originalmente publicado no blog Ponte, em 17 de maio de 2020.

Favela carioca pedia alimento e calma, mas recebeu tiros que deixaram 13 mortos; para especialista, operações avulsas e pontuais são usadas por grupos da polícia para subir valor de propinas

“Como a gente não vai se aglomerar se quando está no meio do tiroteio, no meio da guerra, a gente precisa aglomerar todo mundo no cômodo mais seguro da casa para poder se esconder e se proteger?”. O questionamento é da comunicadora e moradora do Complexo do Alemão Tiê Vasconcelos, 25 anos. Em plena pandemia, a comunidade da zona norte do Rio de Janeiro foi alvo de uma operação policial que deixou 13 mortos na sexta-feira (15/5).

A ação contou com presença da tropa mais letal do Rio, o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e de policiais da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos). Para Tiê, foi a operação mais “pesada” na comunidade na pandemia por conta das mortes e do aparato policial. Embora tenham reduzido até o final de março por conta do novo coronavírus, as incursões policiais ainda são presentes. “Tinha caveirões circulando pelo morro o tempo inteiro, muita munição, muita granada”, descreve. “Mais uma vez a favela sangrando, mais uma vez mães gritando pela perda dos filhos”, lamenta.

A comunicadora conta que, com a falta de assistência do Estado, os próprios moradores precisaram se mobilizar para garantir que a população tivesse acesso a água, alimentação e higiene. “Quando [a pandemia] começou, muita gente, eu até, estava há mais de 20 dias sem água caindo na caixa d’água. Como adaptar esse método de prevenção para nossa realidade de favelado, sendo que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda lavar as mãos?”, questiona.

Com as operações, além de tentar se proteger dos tiros, os grupos ficam impossibilitados de entregar cestas básicas às famílias. “Enquanto a gente tá gritando, pedindo ajuda, pedindo doações, levando doações, fazendo um papel voluntário que deveria ser do governo e não nosso, essas ações [policiais] prejudicam a nossa tentativa de minimizar um pouco esse impacto do coronavírus”, critica Tiê. “Se pudesse ter revertido o valor que gastou [na operação] com cestas básicas nos ajudaria muito mais”.

Para a antropóloga da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jacqueline Muniz, essas operações policiais favorecem a disputa de territórios, onde a falta de acesso a direitos básicos, como água e luz, propicia que grupos armados explorem o fornecimento desses serviços. “Estamos falando de uma economia política do crime. A pandemia está afetando o bolso do crime e não é à toa onde acontece isso: não vai acontecer em Botafogo, por exemplo, num bairro elitizado, que não está sob controle de nenhum domínio armado”, pontua.

De acordo com Jacqueline, por um lado, as milícias, que costumam cobrar taxas de moradores nas áreas onde atuam, viram sua arrecadação diminuir por conta do fechamento de estabelecimentos comerciais dessa população com as medidas de isolamento. Por outro, as facções criminosas, que inclusive têm feito ameaças a quem desrespeitar a quarentena, temem que a proliferação do vírus afaste compradores de suas mercadorias.

Um dos meios de conseguir dinheiro por esses grupos de policiais, segundo ela, é a cobrança de propina pela liberação de criminosos que venham a ser presos. “Muitos desses tiroteios servem para aumentar o preço do alvará do funcionamento das firmas. Outros servem para tirar o traficante de estimação e colocar o miliciano. Então, é preciso que a gente veja qual é o rendimento que isso tem e a quem interessa uma operação dessas sem planejamento, sem gestão, sem preservação de vidas”, analisa a professora.

Segundo o jornal Extra, um dos mortos era Leonardo Serpa de Jesus, o Léo Marrinha, tido como um dos líderes do tráfico nas comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, na zona sul da cidade do Rio. Ele estava como “procurado” no site do Disque Denúncia, desde 2016, e era apontado como integrante da facção CV (Comando Vermelho). Outro que morreu na operação era Leandro Nascimento Furtado, o Diminho ou Oliver, indicado como chefe do tráfico em favelas do Alemão e também em uma do Complexo da Penha, o Parque Proletário.

No episódio 66 do PonteCast, o sociólogo José Cláudio Alves Souza explicou que as milícias e as facções dependem da estrutura das forças da segurança pública, a diferença é que os primeiros se elegem a cargos públicos e políticos. “É claro que vão ter acordos. Aqui no Rio de Janeiro, o TCP, Terceiro Comando Puro, é quem vai fazer negócio com milícia, alugar espaço para boca de fumo. E o CV é quem vai bater de frente”, declarou.

Jacqueline questiona o emprego dessas operações num contexto de pandemia quando as forças de segurança deveriam estar auxiliando as medidas de isolamento, inclusive preservando a vida de policiais. “O que estamos vendo é um barateamento da vida, não só do policial, como da população. E como esse policial é saído da periferia também, parece que há um desprezo à vida daqueles que moram nas comunidades populares, sejam eles policiais ou não”, prossegue. “O que vemos é um triplo risco: ou morre de Covid, ou morre no tiroteio ou morre porque perdeu o trabalho. Essa população fica com uma escolha impossível de morrer, morrer ou morrer”.

De acordo com ela, com o afastamento de cerca de 1300 policiais infectados ou com suspeita da doença, isso afeta a cobertura de policiamento de aproximadamente de 300 mil a 600 mil habitantes. “Uma coisa é a polícia do bem que está fazendo o policiamento que tem que fazer para apoiar a vigilância sanitária”, aponta. “Outra coisa é a polícia dos bens. Essa tem outros interesses e vê na pandemia uma janela de oportunidades para aferir lucro e aumentar a sua capacidade de dominação. E, evidentemente, a moeda para a ameaça é a violência, é a vida”, declara a antropóloga.

Para o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Doriam Luis Borges de Melo, apesar do estado ter sido palco de outros massacres, como a Chacina do Pan, em 2007, em que uma operação da PM e a Força Nacional de Segurança resultou em 19 pessoas mortas e dezenas de outras feridas no Complexo do Alemão, a diferença é a legitimação institucional da letalidade policial por parte do governo, já que houve aumento de 92% de mortes em operações policiais do Rio em 2019.

“Por mais que a segurança pública sempre fosse de confronto, nunca se verbalizou essa ideia do extermínio”, explica. “O que já era legitimado ganha uma dimensão muito maior, como uma meta política, nesse governo Witzel e isso é muito perigoso se a gente ver ao longo desses 500 dias quantas pessoas foram mortas pela polícia”.

Outro lado

A reportagem questionou as secretarias das polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro a respeito da operação no Complexo do Alemão e das análises dos especialistas sobre a ação. As duas pastas não responderam até a publicação.

 

 

Discussões acadêmicas

Esboço de crítica do discurso de "Guerra Contra o Coronavírus", por Marcella Araújo

Texto gentilmente cedido pela autora, Marcella Araújo, e pela revista onde ele foi publicado originalmente, a Horizontes ao Sul. 

No dia 16 de março de 2020, Emmanuel Macron, presidente da França, disse em comunicado à nação que “nous sommes em guerre” [nós estamos em guerra][3]. No dia seguinte, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, tuitou “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN” [O mundo está em guerra contra um inimigo oculto. Nós vamos vencer][4]. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, por sua vez, disse, em coletiva de imprensa, que deveria agir como um “wartime government” [governo em tempos de guerra][5]. Na cobertura televisiva de várias emissoras brasileiras, as chamadas sobre a “guerra contra o coronavírus” foram igualmente recorrentes[6]. Mas nós não estamos em guerra.

Em uma proposição que ficou famosa[7], um general prussiano chamado Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. O tratado Da guerra, editado e publicado postumamente (1832) por sua esposa, Marie von Bruhl, difere de inúmeros outros escritos sobre a guerra que priorizavam oferecer manuais para os campos de batalha. Clausewitz, por sua vez, pretendia analisar as especificidades do fenômeno da guerra e educar as mentes dos comandantes. Sem mergulhar na discussão sobre a guerra como um instrumento da política de Estado[8], que colegas da Ciência Política poderão fazer com muito mais profundidade, gostaria de frisar este ponto: a guerra é um fenômeno social, um entre outros tipos de conflito.

Como Georg Simmel propôs: o conflito é uma forma de interação social. Só é possível marcar uma posição levando em consideração a existência do outro e manifestando contra ele argumentos ou o uso da força[9]. Conflitos, nesse sentido, envolvem alteridade e reciprocidade – ainda que para marcar antagonismos. Em situações em que os conflitos escalam para o uso da força, cabe lembrar que, em nossa vida coletiva, não aceitamos qualquer exercício de poder - ele precisa vir devidamente justificado. No Estado Democrático de Direito, é a lei que descreve as situações, os direitos e deveres, respaldando o emprego do aparato da força. Mas antes é a crença na legitimidade da lei que garante que ela seja cumprida e são as justificações dadas às formulações racionais contidas na lei que sustentam a própria legitimidade da legislação.

Minha crítica ao discurso da guerra nesta conjuntura pretende apontar os riscos da sua adoção. Sigo em duas frentes. A primeira é identificar as operações discursivas da declaração de guerra: ela circunscreve um coletivo que está sob ataque, ela identifica uma liderança com autoridade para levar adiante os confrontos em defesa desse coletivo e ela nomeia um inimigo agressor. Quando autoridades nacionais recentemente declararam “guerra contra o vírus”, esse “inimigo oculto”, a um só tempo, elas se posicionaram como as lideranças à frente da guerra, em nome de certos entes sociais – a pátria, a economia nacional, as famílias, as empresas, os trabalhadores.

No Brasil, no dia 18 de março, o Governo Federal solicitou o reconhecimento do estado de calamidade pública, dispositivo legal que permite o aumento dos gastos públicos sem violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde 2000. Parte da oposição defendeu que a pandemia põe em xeque a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos[10]. O temor de alguns parlamentares é que a vigência do estado de calamidade pública vá além da flexibilização fiscal e abra a brecha para que o presidente Jair Bolsonaro justifique decretar estado de sítio, dispositivo legal previsto no artigo 137 da Constituição Federal de 1988, para situações de guerra[11]. Nesse caso, liberdade de imprensa e liberdade de reunião seriam suprimidas, apreensões em domicílio e intervenções em empresas de serviços públicos seriam permitidas, entre outras medidas. O estado de calamidade pública está vigente no Brasil desde 20 de março[12].

A segunda frente da crítica se detém sobre a discussão da procedência do vírus. Donald Trump não é o único a falar insistentemente que o vírus é chinês[13]. Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) acusou o governo da China de ter escondido informações sobre o coronavírus e comparou a pandemia ao acidente nuclear de Tchernobil (1986), criando uma crise diplomática cujos desdobramentos ainda estão por ser sentidos[14]. Se para muitos o “inimigo” tem uma natureza espectral – ele é invisível a olho nu, oculto, difuso, paira no ar, penetra, adoece e mata corpos humanos –, o racismo contra nacionais e descendentes do primeiro país acometido pela doença procura torná-lo apreensível. A tentativa de atribuição de nacionalidade ao vírus o qualifica, demarca as fronteiras do lugar onde ele teria nascido (ou sido criado, segundo algumas teorias conspiratórias, as quais me poupo de discutir), mas também transforma o fantasma em sujeito. O portador “original” do vírus deveria ter sido tratado e, se a China supostamente não foi transparente na divulgação de informações, ela seria o sujeito inimigo.

Os dois pilares dessa crítica que proponho aqui – a metáfora da guerra para o enquadramento da situação indeterminada presente, por um lado, e o “inimigo oculto”, espécie de fantasma que vai sendo subjetivado, por outro – são tomados de empréstimos de dois sociólogos urbanos e da violência urbana cariocas: Marcia Leite e Michel Misse, respectivamente. Meu propósito ao trazer esses autores é apontar algumas consequências que podemos antever, caso a crise sanitária seja tratada como uma “guerra ao vírus”.

Como o fantasma da violência se tornou um sujeito social no Rio de Janeiro e quais foram os efeitos do emprego da “metáfora da guerra” para combatê-lo? No início dos anos 1980, a “violência urbana” começou a rondar as grandes cidades brasileiras. Em texto intitulado “Violência: o que foi que aconteceu?”, Michel Misse (2002) destaca que a representação da violência nas reportagens e nas falas cotidianas dos moradores do Rio parecia tratá-la como um vírus, no movimento inverso que fiz neste texto. Em suas palavras: “A tal da violência, que parece agir como um espectro ou fantasma, esconde-se ou dissemina-se, é tratada como uma epidemia, um vírus, um micróbio, ou como um Sujeito onipresente, onisciente, onipotente”[15]. Entre os anos 1980, como analisa Misse em inúmeros artigos acadêmicos e em sua tese de doutorado, o que houve foi uma transformação do fantasma social da violência em um sujeito social da violência[16]. Por meio de criminalizações e incriminações das práticas de venda no varejo de drogas, eis que os traficantes de droga se tornaram portadores privilegiados da violência – ainda que ela não se esgotasse neles[17].

Uma das consequências desse processo foi a propagação da “metáfora da guerra”[18], uma guerra contra o “Estado paralelo” dos traficantes de drogas, nas falas de moradores do asfalto carioca e nos discursos das autoridades públicas, como Marcia Leite analisou em sua tese. Artigo mais recente da autora[19], retraça o percurso da “metáfora da guerra” até a “pacificação de favelas”, destrinchando efeitos políticos e cotidianos do emprego da força contra o “inimigo interno” sobre as vidas de moradores de favelas, durante quase trinta anos. Basta lembrarmos os tantos símbolos empregados[20] durante os processos de ocupação militar recente de favelas cariocas, como parte do programa de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): “caveirões” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), incursões de policiais militares pesadamente armados, apagamento de pichações de siglas de facções do tráfico, hasteamento da bandeira nacional no cume dos morros, toques de recolher e revistas indiscriminadas de moradores. Um desenrolar de cenas de “reconquista dos territórios”[21]. Entre muitas outras, a tese de Juliana Farias “Governo de Mortes” descreve densamente as consequências da lógica da guerra e do estado de exceção nas favelas cariocas[22]

Retomar a discussão da sociologia do conflito e as pesquisas de Michel Misse e Marcia Leite, neste texto sobre a pandemia de Covid-19, pretende pinçar elementos e tendências dos processos em curso e abrir perspectivas de inteligibilidade e contestação. É pela “guerra” e as brechas legais que ela permite o caminho que queremos seguir para enfrentar a pandemia?

Na contramão desse discurso de guerra, vemos um outro discurso em gestação: o da solidariedade. Foge às possibilidades deste texto explorá-lo em sua multiplicidade. Restrinjo-me a destacar as cooperações transnacionais em busca da contenção e cura da nova doença. No dia 13 de março, uma equipe da Cruz Vermelha da China com nove médicos, toneladas de equipamentos hospitalares e máscaras chegaram à Itália[23], um dos países europeus em que a crise sanitária está mais aguda, com número de casos e mortes superiores aos da própria China. Cuba[24], por sua vez, enviou 65 médicos para a cidade de Milão, epicentro dos adoecimentos e óbitos. O próprio ministro da Saúde brasileiro, Luiz Mandetta, mais de um ano após encerrar a participação de cubanos no Programa Mais Médicos, pretende reconvocar dois mil deles para fortalecer a rede de saúde pública e o atendimento aos doentes no país[25].

Espero com estas linhas tê-los/as chamado a atenção para os perigos do discurso da guerra. Essa metáfora, a nível mundial, pode nos levar ao acirramento de tensões, racismos e autoritarismos. Temos, em paralelo à exacerbação de conflitos, testemunhado também esforços humanos impressionantes de profissionais de saúde em todo o globo e uma inflexão muito significativa nos debates sobre macroeconomia e política econômica, com a (re)emergência de debates sobre as vidas, a subsistência e o bem estar social[26].

Não estamos em guerra. O que vivemos é uma crise sanitária e econômica, cheia de imprevisibilidade, mas também com grandes aberturas a novos tempos de cooperação.

Pandemia de Covid-19, Assassinato de Marielle e Movimento Escola sem Partido - aproximações, por Roberto Eduardo Albino Brandão

Acesse o VERBETE em nossa plataforma!

O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade, por INCT-InEAC/UFF

Texto de Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros[27], originalmente publicado no blog d'O Globo, em 30 de março de 2020. 

Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.


Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.


Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.


Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.
As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.


Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.


Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.


Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.


Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.


Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.


Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.
Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.

 

A Renda Cidadã e a reinvenção do dinheiro, por Antonio Martins

Texto publicado no blog do CEE-Fiocruz, em 02 de abril de 2020.

Ressuscita-me, para que ninguém mais tenha
de sacrificar-se por uma casa, um buraco
Vladimir Maiakovski

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
Caetano Veloso

Nas crises agudas, o oculto – as verdades longamente sepultadas pela repetição acrítica da vida ou pela ideologia – frequentemente aflora como óbvio. Bastaram as primeiras semanas da pandemia do coronavírus para derrubar dois mitos do pensamento econômico vulgar. Não, os Estados não podem gastar apenas o que arrecadam – pois têm o poder de emitir moeda (e agora o empregam, em especial, para salvar os bancos). Sim, é possível oferecer aos seres humanos dinheiro não vinculado a trabalho. Agora, até os governos mais retrógrados o reconhecem. Nos EUA, Trump fala em um “cheque de 1.500 dólares” aos mais atingidos pela crise. No Brasil, a Câmara dos Deputados rejeitou em 26/3 uma esmola proposta por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes (“voucher” de R$ 6,66 por dia) e deu o pequeno, mas importantíssimo, passo em direção à Renda Cidadã.

Mas há dois problemas principais com esses arranjos. Primeiro, são, além de limitados no tempo, raquíticos e por isso incapazes de assegurar vida digna – em especial, em tempos de pandemia e colapso da atividade econômica. Segundo, vêm como parte menor de imensos pacotes de resgate dos cassinos financeiros. Nesse sentido, assemelham-se mais a medidas indiretas em favor das grandes empresas. A população receberá os recursos e os consumirá de imediato para saldar parcialmente dívidas e compras, permanecendo dependente e desempoderada. Enquanto isso, os Estados estão despejando volumes infinitamente maiores de dinheiro para socorrer os especuladores que fazem apostas mastodônticas nos mercados financeiros – exatamente estes que nos projetaram na crise atual. Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política.

Este texto defenderá duas ideias opostas a essa lógica – uma proposta de aplicação imediata, e uma provocação para reflexões de longo prazo. Primeiro: é preciso estabelecer uma Renda Cidadã de Emergência universal, igualitária e digna. Ela será paga em complemento – e não em substituição – aos rendimentos regulares. Seu valor deve ser suficiente para proteger os cidadãos da crise sanitária (permitindo-lhes permanecer em casa) e da provável depressão econômica (evitando que pereçam por falta de dinheiro, numa sociedade mercantilizada, ou se vejam falidos, em alguns meses).

Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política

Uma boa hipótese inicial sobre essa renda: R$ 100 diários, ou 3 mil mensais, para todos os brasileiros – numa primeira etapa, enquanto durar a pandemia. O valor pode parecer exagerado, à primeira vista; mas ao longo do texto ficará claro que não é. Está entre o salário-mínimo do Dieese (R$ 4.342,57) e o PIB per capita do Brasil (R$ 31.833 anuais em 2017). Para a grande maioria das famílias, essa renda representará bem mais do que recebem hoje de seus empregadores ou em seus negócios próprios (segundo o IBGE, o rendimento mensal familiar é R$ 5.426,70, mas devido à desigualdade 73% recebem menos que isso e 23,9%, menos de dois salários mínimos). Para uma pequena minoria, pouco ou nada representará (o 1% mais rico, recebe em média R$ 27,7 mil mensais; e o 0,1%, R$ 213,6 mil!). Além de salvadora, uma Renda Básica de Emergência será, portanto, um primeiro movimento de grande relevância para reduzir a desigualdade abissal que marca o Brasil há 500 anos.

De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro. Elas serão movimentadas por meio de aplicativo (os menos habilitados digitalmente receberão cédulas impressas pela Casa da Moeda e entregues por estafetas dos Correios). Os Reais Sociais terão, assim como o dinheiro tradicional, curso forçado – ou seja, o mesmo poder de compra e a aceitação obrigatória que caracteriza o dinheiro comum.

Mas é possível criar moeda a partir do nada? Esta questão nos remete à parte mais instigante – e mais potencialmente transformadora – do argumento. Quase toda a moeda contemporânea é criada a partir do nada. A crise tornou evidente essa verdade, pouco visível em tempos normais. Em 12 de março, quando os tremores dos mercados financeiros se acentuaram, o Banco Central dos EUA (Federal Reserve, ou Fed) anunciou, sem um segundo de debate no Congresso ou com a opinião pública, a primeira grande intervenção de resgate. Criou-se, a partir do nada e sem alterar uma virgula no orçamento do país, 1,5 trilhão de dólares, para socorrer as corporações e bancos em crise. Desde então, os bancos centrais de todo o mundo têm anunciado que produzirão quantidades ilimitadas de dinheiro, para salvar os especuladores e manter os cassinos funcionando. No Brasil, a equipe de Paulo Guedes já anunciou um pacote de medidas que têm natureza diversa mas que, eu seu conjunto, permitem aos mercados financeiros utilizar R$ 1,2 trilhão – o que significaria R$ 6 mil para cada brasileiro. A saída dos Estados, para preservar o cassino global que sequestra as economias, é proteger (e enriquecer ainda mais) os especuladores cuja cobiça alimentou a crise.

De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro

A alternativa exige romper um tabu. É preciso reinventar a moeda. Nosso artigo mostrará que ela perdeu mais aceleradamente que nunca, nos últimos trinta anos, o caráter de unidade de conta. Esse termo técnico designa o aspecto de comum presente no dinheiro. Ele é o lubrificante necessário para fazer girar a produção e circulação de riquezas. Viabiliza uma miríade de relações econômicas e sociais que, sem ele, seriam árduas e desnecessariamente complicadas: comprar uma camisa, vender um trabalho de edição de vídeo ou alugar uma casa, por exemplo.

Mas o dinheiro é, ao mesmo tempo, reserva de valor e, nessa condição, ferramenta de desigualdade e alienação. Ele consolida, amplia a multiplica as diferenças de riqueza. Subordina os que não o possuem às ordem dos que o concentram. Naturaliza essa submissão: se trabalho numa fábrica de minas terrestres, que serão utilizadas para matar crianças numa guerra, faço-o por dinheiro – para sustentar minha família e a mim mesmo.

Hoje, esse segundo caráter da moeda soterra e sufoca quase completamente o primeiro – de Bem Comum. A necessidade de dinheiro nos condena ao trabalho cada vez mais insano. As dívidas condicionam todos os nossos planos. Como se verá, isso não ocorre apenas devido a ações como as do Fed. São os bancos privados, hoje, que corriqueiramente criam – do nada – quase toda a moeda. É aristocracia financeira que a concentra e controla. Desfazer esta imensa distorção exigirá transformar todo o sistema monetário e financeiro. A Moeda-Comum e os Bancos Públicos serão chave. Mas a Renda Cidadã de Emergência pode ser o deflagrador. A crise sanitária e econômica ligada ao coronavírus ceifará milhares de vidas (a maior parte, desnecessariamente) e causará enorme sofrimento. Mas pode parir uma ordem social nova.

II.

Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas. O distanciamento social é agora a única arma disponível para reduzir o número de infecções, “achatar a curva” da propagação da covid-19 e evitar o colapso hospitalar que devasta a Itália – e poderá ser ainda mais catastrófico em países como Estados Unidos e Brasil. Mas em economias de mercado, marcadas pelo individualismo e pela competição, com populações empobrecidas, endividadas e precarizadas pelo neoliberalismo, ficar em casa pode significar outra forma de morte: o despencar no abismo da exclusão. Uma parcela expressiva das populações, que não tem reservas, enfrentará dificuldades até mesmo para se alimentar, manter o teto ou seguir as medidas de precaução indispensáveis contra a doença. Muitos outros, embora não tão ameaçados, verão seu padrão de vida desabar, deixarão de cumprir compromissos financeiros e terminarão, quando a vida social regressar, mais empobrecidos e submissos a dívidas e bancos. Governantes criminosos – como já faz Jair Bolsonaro no Brasil – explorarão a fragilidade para incitar os desesperados contra a quarentena e outras ações protetivas.

Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas

A Renda Cidadã de Emergência pode enfrentar esses desafios – desde que cumpra certas condições. Primeiro, seu valor precisa ser realmente relevante, ou seja, suficiente para assegurar uma vida frugal, porém digna. Uma boa referência é o PIB per capita – base da proposta formulada neste texto, de R$ 100 diários, por pessoa. Os R$ 600 mensais aprovados no Brasil estão muito longe disso. Um motorista de aplicativo, uma faxineira, um bartender ou um pedreiro auferem, líquidos, cerca de R$ 100 ao dia, nas regiões metropolitanas. Seus custos são compatíveis com essa renda. Será injusto que seu padrão de vida, que nada tem de luxuoso, despenque, enquanto a elite financeira refestela-se e lucra com recursos do Estado. Como nota à margem, vale lembrar que os banqueiros brasileiros estão se aproveitando das dificuldades da maioria para impor após, o coronavírus, taxas de juros ainda mais altas e condições mais leoninas para rolagem das dívidas.

A segunda condição é a universalidade: a Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis. Num mundo em que as máquinas realizam cada vez mais tarefas antes obrigatórias aos humanos, a Renda Cidadã é uma das formas de garantir que todos se beneficiem de uma parte da riqueza social produzida no planeta.

Do ponto de vista prático, a Renda Cidadã não pode excluir todos aqueles que, participando igualmente do combate à pandemia, têm um emprego ou rendimento formal, em que recebem acima de 3 salários mínimos. Isso é ainda mais verdadeiro para os milhões cujas ocupações exigem permanecer trabalhando. Os profissionais de Saúde. Os operários que produzem, entre tantos itens, os respiradores artificiais, o sabão e o álcool gel, o óleo e a manteiga para as refeições preparadas em casa, a cerveja. Os agricultores que nos alimentam. Os comerciários que mantêm em funcionamento os supermercados e farmácias. Os operadores que zelam para que todos tenhamos energia elétrica e internet. Os que movimentem o transporte público. Os jornalistas responsáveis pelos textos que você lê durante a quarentena.

A Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis

É preciso deixar claro: sim, nessas condições, a Renda Cidadã subverte as formas de distribuição usuais de renda e riqueza que nossa sociedade acostumou-se a aceitar acriticamente, como se fossem as únicas possíveis. Se o estado de calamidade pública durar cem dias, serão distribuídos igualitariamente, no Brasil, 2,1 trilhões de Reais Sociais (S$ 2,1 tri), que terão o mesmo poder monetário dos Reais hoje existentes. Isso dará, à população poder econômico inédito – individual e coletivo. Muitos usarão o dinheiro para pagar suas dívidas, o que os tornará menos dependentes da ditadura financeira, e fará os bancos menos poderosos e predatórios. Imagine que, devendo R$ 10 mil no cheque especial, e pagando prestações mensais de R$ 1 mil apenas para não se enforcar ainda mais, você possa saldar seus débitos (e livrar-se da despesa que corrói seu salário) com os Reais Sociais que receberá. Outros planejarão a compra de um bem ou um serviço há muito tempo desejados: uma pequena reforma na casa, uma geladeira e um sofá novos, uma viagem. Alguns, reunidos, terão a soma necessária para iniciar um empreendimento. Quando a vida voltar ao normal, não encontrará uma multidão de pessoas falidas e submetidas aos bancos e às corporações – mas sujeitos sociais com certa potência econômica.

Juntos, os 210 milhões de brasileiros terão reunido, em cem dias, S$ (ou R$) 2,1 tri. Será um ótimo começo. Para efeito de comparação, o 0,1% mais rico do Brasil possui, em títulos da dívida pública, imediatamente conversíveis em dinheiro, R$ 4,4 tri – mais que o dobro. Mas as 200 mil pessoas, que compõem o 0,1% (e cujo salário médio é R$ 213,6 mil mensais), fazem parte (e compram) em outro mundo. Os S$ 2,1 tri, distribuídos entre 210 milhões de brasileiras e brasileiros, mudarão a face do país. Os aeroportos vão se transformar, definitivamente, em rodoviárias. Os restaurantes populares irão se multiplicar como cogumelos – desafiando a monotonia gastronômica das regiões centrais, onde só prosperam, hoje, as cadeias de internacionais. Ninguém será obrigado a trabalhar por um prato de comida: haverá, seguramente, uma elevação do salário médio do brasileiro, hoje cerca de 30% inferior ao do chinês. A lógica da segregação Casa Grande X Senzala será abalada.

É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família. Outras são subestimadas por não gerarem valor, diretamente. Tocar um instrumento nas estações cinzentas do metrô. Contar histórias, nas praças. Zelar por um jardim público. Oferecer refeições, na rua, aos que de outro modo passariam fome. Escrever um romance ou um livro de poesias. Dar aulas de um idioma estrangeiro, ou de culinária – sem cobrar. Relatar, a partir de uma tribo indígena, a experiência de utilização de uma planta para curar uma doença desconhecida. Divertir crianças internadas num hospital. Tudo isso, e tantas outras ações, é motivo para fazer jus a parte da riqueza socialmente produzida. Tudo isso, e muito mais, é motivo para fazer jus à Renda da Cidadania.

É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família

Mas como a sociedade poderá remunerar, com R$ 100 mensais (algo próximo do PIB per capita), atividades que não geram valor mercantil? Aqui, é hora de introduzir talvez o fator mais relevante deste debate, do ponto de vista do imaginário social. Por seu caráter relativamente expressivo, essa Renda Cidadã obriga a pensar sobre os mecanismos que produzem dinheiro em nossas sociedades; e sobre os artifícios adotados pela aristocracia financeira (com a cumplicidade dos Estados) para aproveitar-se das crises para concentrar ainda mais riqueza, e produzir ainda mais desigualdade e pobreza.

III.

Tão assustadores quanto o número de mortes, ou circunstâncias como a escolha de Sofia, a que estão obrigados os médicos no norte da Itália, são os primeiros dados da crise econômica. Nos Estados Unidos, talvez o primeiro país a divulgar dados de desemprego pós-crise, ele disparou. Há três semanas, 200 mil pessoas haviam solicitado seguro-desemprego. Subitamente, esse número saltou, nos sete dias encerrados nesta quinta-feira (26/3), para 3 milhões – quase quinze vezes mais. Análises econômicas confiáveis preveem, para os países ocidentais, taxas de desemprego entre 20% e 50%, até o final do ano. Do ponto de vista financeiro, a realidade é igualmente assustadora. Os bancos, avalia um texto recente, estão afundados em trilhões de dólares de dívidas. Boa parte desses débitos deixarão de ser pagos.

Mas há um truque ideológico, aqui. A mídia comercial atribui, acriticamente, este colapso econômico ao… coronavírus! Será verdade? A lógica elementar e os fatos sugerem que não.

Quando as autoridades agem corretamente, a quarentena é curta: dura, ao máximo, dois meses. Veja o caso de Wuhan, na China – o ponto do globo onde a epidemia eclodiu de surpresa. O isolamento radical foi decretado em 23 de janeiro. O número de casos e de óbitos começou a cair já em 5 de fevereiro (treze dias depois) e recuou, a partir de então, abruptamente. Por isso, em 1º de março foi fechado o primeiro dos dois hospitais construídos em emergência para enfrentar a doença. Desde 18/3 (exatos 55 dias depois de iniciado o isolamento), não se registra mais um único caso de transmissão local.

Dois meses, embora tardem a passar, são um período curto, na existência das pessoas – e, ainda mais, das economias. No Brasil, a vida adulta média dura 700 meses (chega a 840 no Japão…). Em sociedades não tisnadas pelo individualismo extremo, a quarentena — excluída a dor da pandemia – seria uma oportunidade para desacelerar, refletir, encontrar-se consigo e com os problemas e belezas do mundo. A produção de bens e serviços certamente cairia de modo abrupto. Mas seria retomada em seguida – na maioria dos casos, com compensações. Uma geladeira que era necessária, e cuja compra foi adiada pela quarentena, será, de qualquer maneira, comprada em seguida. Uma viagem adiada será reprogramada. Os funcionários contratados continuarão sendo necessários. Por que demiti-los? Qual o motivo para drama?

A resposta está em algo que as análises convencionais agora procuram ocultar. A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões.

Dois textos de Outras Palavras, [1 2] que se apoiam em artigos da revista The Economist e do Financial Times explicam o movimento em detalhes. Não é possível reproduzir toda a história aqui. Eis um resumo sintético da cadeia de contágio: a) Os mercados financeiros retomaram, assim que amainou a crise de 2008, a “exuberância irracional” que os caracterizou durante todo o período neoliberal. Os bancos foram irrigados por montanhas de dinheiro, liberadas pelos Estados a partir da lógica interesseira do trickle-down, segundo a qual o dinheiro despejado no topo da pirâmide social escorrerá pelas bordas, até chegar à base; b) Para continuar lucrando irresponsavelmente, os grandes bancos globais emprestaram estes dinheiro sem critérios. Ao eclodir a pandemia, o volume de créditos concedidos por eles havia superado os picos de 2008. E as grandes beneficiárias eram, desta vez, as maiores corporações não-financeiras com atuação global. Parte delas recebeu dinheiro mesmo estando tecnicamente falidas; c) A crise expôs os desatinos. As grandes empresas com queda de receita (nos setores de aviação civil, automobilístico ou de hotelaria, por exemplo) serão, provavelmente, incapazes de pagar os créditos irresponsáveis que lhes foram oferecidos pelos bancos. A constatação fez desabar, também, o preço de suas ações nas bolsas de valores; d) Os próximos a ser atingidos serão os próprios megabancos globais. Eles próprios vão se tornar inadimplentes, se um número expressivo de empresas que lhes devem deixar de pagar suas dívidas.

A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões

A formação das montanhas de crédito que permitem girar o capitalismo financeirizado não pode ser explicada em detalhes nos limites deste texto. Para compreendê-la, recomenda-se, por exemplo, o livro Just Money, da economista britânica Ann Pettifor. Na obra, o foco da autora é desvendar a criação de dinheiro, no capitalismo neoliberal. Ao contrário do que sugerem os mitos fundadores da ideia de moeda, esta não surge a partir de um trabalho realizado, ou de algo produzido. Não está ancorada num bem raro e supostamente precioso, como o ouro. Desde os anos 1930, a moeda é criada a partir do nada por Estados e bancos. Na era do keynesianismo, foi manejada, no Ocidente, por governos que a utilizaram para viabilizar uma grande invenção civilizatória: o Estado do Bem-Estar Social. A partir dos anos 1980, o neoliberalismo apropriou-se das máquinas simbólcias de imprimir dinheiro. São os bancos comerciais, hoje, que criam quase toda a moeda disponível. Em busca de aumentar incessantemente os lucros, eles emprestam um volume de dinheiro muitas vezes maior do que aquele que possuem, em depósitos. A prática chama-se “alavancagem”. Exemplo eloquente: ao permitir a ampliação da alavancagem, numa canetada em 23/3, que não passou por debate algum entre a sociedade ou no Congresso, o BC brasileiro autorizou os bancos comerciais a criar do nada – e emprestar – 1,2 trilhão de reais!

IV.

É este cassino que está desabando, diante de nossos olhos, a partir do grão de areia representado pelo coronavírus. Em condições normais, uma paralisação das atividades produtivas, por tempo limitado, teria efeitos muito reduzidos. Um sistema bancário saudável financiaria os prejuízos dos cidadãos e das empresas — e permitiria pagá-los ao longo do tempo, com juros remunerativos, porém módicos. Mas a economia mundial está submetida a uma máquina especulativa global – a mercados de apostas em que os volumes negociados a cada dia são vinte vezes maiores do que o comércio mundial movimenta num ano. Por isso, um leve sopro na mesa pode fazer ruir o castelo de cartas. Foi o que ocorreu com o coronavírus.

Os dramas – tanto os sanitários quanto os humanos – são incalculáveis. Mas um sistema erigido sobre uma pilha gigantesca de interesses egoístas é incapaz de se autorreformar. Por isso, todas as ações de combate à crise deflagradas pelos governos ocidentais têm um componente essencial: salvar os bancos e a oligarquia financeira. A palavra de ordem é: custe o que custar. O grosso dos 5 trilhões de dólares “contra o coronavírus”, alardeados na quinta-feira, numa reunião do G-20 destina-se a irrigar os cassinos. As grandes corporações, endividadas e insolventes, não serão autorizadas a falir. Os bancos globais, ainda menos. A experiência da crise de 2008 ensina a tramar algo muito maior. A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas.

A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas

Ao final de cada crise, restam escombros e desigualdade. Em 2008, as corporações utilizaram o dinheiro ofertado pelos Estados para “modernizar-se” e demitir em massa. Passada a crise, a conta foi jogada no colo das sociedades – obrigadas a políticas drásticas de redução de serviços públicos e direitos sociais. Que virá agora, se em uma semana já há 2 milhões de novos desempregados, apenas nos Estados Unidos?

V.

Há em curso, em todo o mundo – ainda que em silêncio – uma revolução no pensamento pós-capitalista. Os que se mantêm aferrados às formas de luta dos séculos passados perdem espaço. Aos poucos, surgem novas perspectivas, que dialogam com os sujeitos sociais paridos pelas novas configurações do sistema. O antigo proletariado, que vendia sua força de trabalho diretamente a um patrão; e que se concentrava em grandes unidades fabris, perdeu a condição de sujeito universal – aquele que, segundo Marx, só poderia ser livre quando libertasse, ao mesmo tempo, o conjunto da sociedade. Surge, aos poucos, um precariado. Seu centro não são mais as fábricas, mas as metrópoles. Ele está disperso. Suas reivindicações são muito menos homogêneas. Mas há um projeto comum, ainda que oculto e inconsciente, entre elas. O precariado deseja, assim como seu irmão mais velho, que as riquezas produzidas socialmente sejam repartidas entre todos. Nesse sentido, há uma linha que une uma garota que se expõe ao coronavírus, ao entregar refeições na rua, a Marx, Bakunin, Kropotsky ou Rosa Luxemburgo.

Há um amplo leque de projetos, em gestação, para realizar esta ideia, nas condições do século XXI. A construção e garantia do Comum. O Green New Deal, que articula a agenda ambiental à social, ao propor uma grande redução das emissões de CO², alcançada com intensos investimentos em infra-estrutura limpa (usinas eólicas e solares, ferrovias, despoluição de rios, saneamento, etc etc etc) e garantia de emprego digno para todos que o desejarem. No contexto em que vivemos, a Renda Básica da Cidadania destaca-se entre elas.

Ela pode representar, para as maiorias e para a luta por superar o capitalismo, o que a jornada de oito horas significou, há cem anos. Ela estabelece um objetivo comum, e muito concreto, para um vastíssimo leque de lutas dos precarizados. Embora tenham um mesmo sentido, estas lutas são hoje díspares e dificilmente dialogam entre si. (Pense, por exemplo, na reivindicação de direitos trabalhistas, por um motorista uberizado, e na exigência, por um povo indígena, do direito a ser remunerado pelo uso de um fármaco desenvolvido graças a seus conhecimentos ancestrais).

A Renda da Cidadania emerge agora, além disso, por pegar o sistema num contrapé. Duas grandes crises econômicas – a de 2008 e a que está se abrindo agora – deixaram claro que é possível criar dinheiro (e, portanto, redistribuir riqueza) a partir do nada. Diante de uma pandemia, será possível permitir que isso se faça a favor apenas do 0,1%? Se resta algo de democracia, na política contemporânea, a resposta é não. A crise pode voltar a ser, como tantas vezes, o elemento de que dispomos para sair do sono e da letargia

* Publicado no site Outras Palavras, em 27/03/2020.

 

Como a pandemia pode aprofundar nossas desigualdades, por Laura Carvalho

Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal, em 16 de abril de 2020.

A valorização súbita dos sistema públicos de saúde, das redes de proteção social, das políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade tem levado alguns analistas a considerar essa crise como um golpe fatal no neoliberalismo ou, quem sabe, no próprio capitalismo. Para muitos, a trágica pandemia ajudaria a parir um belo mundo novo, bem mais justo e sustentável.

Não é, no entanto, o que prevê Dani Rodrik em artigo recente: o economista e professor da Harvard Kennedy School considera que essa crise apenas reafirmará as visões de mundo de cada um, no que identifica como um super viés de confirmação. De fato, o que temos visto no Brasil é que, enquanto alguns acreditam que a crise abre caminho para a taxação de grandes fortunas, outros entendem que o urgente é o corte de salários de servidores públicos, e alguns ousam sair às ruas para denunciar mais uma conspiração globalista contra o presidente da República. Por isso, para Rodrik, o mais provável é que a covid-19 apenas reforce tendências anteriores, como a crise da globalização, o fortalecimento do autoritarismo populista ou a dificuldade da esquerda em desenhar programas atraentes para a maioria dos eleitores.

É bem provável que seja assim. Mas as transformações trazidas pela pandemia podem alterar as bases sobre as quais tais tendências vão operar e, portanto, seus resultados. Nesse sentido, é fundamental compreender como essa crise pode ser um vetor relevante de concentração de renda, riqueza e poder.

Sobram evidências de que a pandemia não é tão democrática quanto muitos gostam de fazer parecer. Sim, ela está prejudicando a vida de todos, mas os mais pobres sofrerão muito mais os seus impactos na saúde e na economia. É o que mostram os dados de outras pandemias. No caso da gripe espanhola, uma pesquisa publicada na revista médica The Lancet sugere que as taxas de mortalidade foram até trinta vezes maiores em regiões mais pobres. A pandemia de 2009 do H1N1 não foi tão diferente: um estudo de 2013 apontou uma taxa de mortalidade 20 vezes maior em países da América do Sul do que na Europa, por exemplo. Ou seja, tudo indica que os países com a menor dotação de recursos para enfrentar a crise atual, sobretudo se levarmos em conta a enorme fuga de capitais para países ricos em meio à incerteza nos mercados financeiros globais, sofrerão os efeitos mais devastadores da pandemia.

Se a correlação de forças atual não permitir a adoção das medidas necessárias para mitigar os vetores de concentração de renda que essa crise já está trazendo em seu auge, não há razões para esperar que depois seja diferente

Mas não são apenas as desigualdades globais que vão aumentar. Dentro de cada país, os mais vulneráveis também estão mais sujeitos aos impactos da crise econômica e de saúde pública. Além da perda de renda e trabalho em meio ao que deve ser a maior queda anual do PIB de nossa história, a base da pirâmide está mais sujeita à contaminação e a desenvolver casos mais graves da infecção por covid-19. Isso porque o risco de contaminação é elevado pelo número de pessoas que dividem o mesmo dormitório, pelo uso de transporte público, pela falta de saneamento básico e pela dificuldade de manter o isolamento sem reduzir sua renda para abaixo do nível mínimo de subsistência. Já a gravidade dos casos e, portanto, a probabilidade de óbito, depende da existência de comorbidades (doenças crônicas associadas) e do acesso à saúde. Em estudo preliminar, mostramos que, no Brasil, a proporção de pessoas com comorbidades associadas à covid-19 aumenta significativamente entre os menos escolarizados (54% para quem só frequentou o ensino fundamental, ante 34% para quem frequentou o ensino superior, por exemplo). Além disso, o número de leitos de UTI no SUS é quase cinco vezes menor do que na rede privada.

Os primeiros números divulgados pelo Ministério da Saúde apontam que o novo coronavírus já é mais letal entre negros no Brasil: pretos e pardos representam 1 em cada 4 hospitalizados, mas 1 em cada 3 mortos. Em Nova York, os dados indicam que a letalidade entre negros e latinos é duas vezes maior do que entre brancos.

Como se já não bastasse a ampliação das desigualdades de renda, raciais e de gênero, dada a carga maior de trabalho doméstico que vem recaindo sobre as mulheres, a pandemia também tende a ampliar a concentração de riqueza. Em particular, os pequenos negócios terão mais dificuldade de sobreviver. Muitos serão absorvidos por negócios maiores, outros irão à falência. Em ambos os casos, a concentração de mercado nos setores mais afetados irá aumentar, prejudicando a concorrência e, assim, os consumidores.

Por fim, o mercado de trabalho também deve sofrer algumas mudanças estruturais. Para além da escalada brutal do desemprego, que por si só já tende a retirar poder de barganha de trabalhadores nas negociações salariais, o crescimento do trabalho remoto pode levar a uma pejotização ainda maior das relações de trabalho e abrir espaço para um aumento das jornadas, que se tornam menos monitoráveis.

Não será surpresa nenhuma, portanto, se alguns de nós sairmos de casa, finda a primeira fase da pandemia, para se deparar com um mundo ainda mais desigual. Só que enquanto isso, outros enxergarão apenas um mundo com patamares ainda maiores de dívida pública. O primeiro grupo defenderá, por exemplo, tornar a renda básica permanente e resolver injustiças históricas do nosso sistema tributário. Já o segundo tentará emplacar uma agenda ainda mais agressiva de cortes de gastos, prejudicando de forma desproporcional os que utilizam serviços públicos e dependem de nossa incipiente rede de proteção social.

Se a correlação de forças atual não permitir a adoção das medidas necessárias para mitigar os vetores de concentração de renda, riqueza e poder que essa crise já está trazendo em seu auge, não há razões para esperar que depois seja diferente. Renda básica emergencial, recursos para o SUS, realocação de leitos da rede privada de saúde, produção de testes e respiradores, medidas efetivas de isolamento, crédito subsidiado para micro, pequenas e médias empresas e preservação de vínculos empregatícios sem perda de renda são alguns dos temas que exigem mobilização imediata, sobretudo para que as medidas sejam tomadas na magnitude e no tempo necessários. O mundo do pós-pandemia está sendo construído agora.

Laura Carvalho é Professora Livre Docente do Departamento de Economia da FEA-USP, autora de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico” e colunista do jornal Nexo. Podcast Entretanto. Twitter: @lauraabcarvalho

 

A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus, por Marcelo da Silveira Campos

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em 17 de abril de 2020.

A ideia do isolamento vertical não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino como cidadania vertical.

Isolamento parcial, ou vertical como vem sendo denominado, consiste essencialmente em retirar das relações sociais somente os grupos mais suscetíveis à mortalidade pela Covid-19 como, por exemplo, as pessoas acima de 60 anos e portadores de condições de risco como hipertensão, diabetes, doenças respiratórias. A defesa do atual presidente Bolsonaro por essa medida, na base do discurso bolsonarista, toma como justificativa a “volta ao trabalho” em massa. É precisamente isso que fez insuflar as pequenas (ainda bem) carreatas em 12 de abril a favor da “volta ao trabalho” ou ainda o encontro o “corpo a corpo” do presidente, em Goiânia, com alguns apoiadores um dia antes. Entretanto, em constantes reuniões e pronunciamentos no Planalto, diga-se muitas vezes contrárias às diretrizes do próprio Ministro da Saúde – demitido, aliás, pela defesa do isolamento horizontal – e da Organização Mundial da Saúde, as autoridades federais admitem que não há qualquer estudo para justificar tal orientação e que o pico da Covid (hoje com mais de 30 mil casos confirmados e oficialmente registrados) será em maio. No dia 14, novamente, o presidente distorceu a declaração do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, ao questionar a quarentena e dizer que ele está certo na condução da crise. 

Sabemos bem, diariamente desse contexto particular, lamentável e muito específico do Brasil: o país deve ser um dos poucos mantém um chefe de Estado dizendo para pessoas “irem trabalhar” concomitantemente com o número de casos aumentando vertiginosamente dia após dia . Entretanto, o que quero chamar a atenção para reflexão é que a ideia do isolamento vertical, contudo, não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino neste texto como cidadania vertical no Brasil. Em termos sucintos, podemos dizer que a cidadania é vertical no Brasil porque ela, desde sempre, é uma cidadania fundamentalmente hierarquizada: os grupos privilegiados, que constituem uma pequena parcela da população, possuem a maioria dos recursos sociais, jurídicos, econômicos e simbólicos para exercer a diferenciação e reproduzir a desigualdade no espaço público e no espaço privado; por outro lado, a maioria da população – as classes menos privilegiadas que compõem fundamentalmente o mercado de trabalho dos serviços domésticos, trabalhadores da indústria de bens e serviços, trabalhadores do mercado informal e os profissionais da saúde que atuam na ponta das redes de assistência em saúde e social – não detém os mesmos recursos sociais, jurídicos e econômicos para exercer os direitos no espaço público e privado, ou seja, para ser e exercer uma cidadania horizontal. 

Ora, como se sabe é a composição do nosso mercado de trabalho durante o século XIX, constituído basicamente pela escravidão massiva de negras e negros, que fez uma cidade como a do Rio de Janeiro ter aproximadamente 50% da população formada por escravos. É do mesmo século XIX que uma das primeiras obras consideradas sociológicas no país – Os sertões de Euclides da Cunha – descreve como, na recém-república, a forma como Canudos atraiu centenas de nordestinos pobres despertando a ira dos grandes fazendeiros e da elite política localista: morreram mais de 15 mil pessoas no país sendo a grande maioria, os pobres e pardos. 

 Chamo a atenção para esses dois pontos porque, no meu entender, eles estão articulados na reação sociopolítica à Covid-19; e constituem, hoje, o maior risco para o alastramento da doença em nosso território e um novo genocídio da população pobre e periférica do país. Em outras palavras: a defesa política do isolamento vertical (e os seus defensores) representam o maior risco à nossa democracia, bem como, representam a continuidade e reprodução do que proponho aqui como uma cidadania vertical. 

Logo, como consequência, os trabalhadores das classes médias altas e altas continuarão em seus isolamentos horizontais, trabalhando no chamado home office, e tomando as medidas de não exposição pública necessárias para todas e todos. Em contrapartida, o isolamento vertical atingirá majoritariamente os moradores das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, os trabalhadores da saúde que dedicam suas vidas ao trabalho na ponta da saúde pública e assistência social, os empregados domésticos, os 12 milhões de desempregados e, evidentemente, os encarcerados nas masmorras superlotadas de todos os nossos estados. Estes sim estarão expondo – novamente, aliás – suas vidas ao isolamento vertical. E, mais uma vez, retomará a cidadania vertical no país. 

Nas comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, pelo menos sete mortes (notificadas oficialmente) foram registradas em cinco favelas: Rocinha, Vigário Geral, Maré, Manguinhos e Cidade de Deus. É nesse contexto que agora ocorrem as medidas de “higienização” nas comunidades, novamente, onde são alvos privilegiados (como já os são cotidianamente nas operações policiais e sistema prisional) as populações e classes “mais perigosas”: corpos negros, pobres e periféricos. Há, nesse ponto, ainda uma associação entre perigo e a “volta ao trabalho”: se rearticula um discurso de “isolamento” para as comunidades e favelas – “é lá que está o perigo” – ao mesmo tempo que sabe-se que neste momento lá está a maior dificuldade de acesso à renda, educação, saúde e posição home office no mercado de trabalho. Que evidentemente será desigualmente distribuída por raça, gênero e posição social.  

Os dados oficiais da pandemia divulgados nesta semana à pedido da Coalização Negra por Direitos (e mais 150 entidades) revelam justamente, com base no último boletim epidemiológico, o que nós sempre soubemos: o coronavírus é muito mais letal entre nós negros, como aponta Tay Cabral. O percentual de óbitos de negros e negras é 32,9% maior que o de pessoas negras hospitalizadas (23,1%). E o mais importante é que 67% dos brasileiros negros dependem integralmente do SUS. Ou seja, não possuem recursos materiais, simbólicos e privados para o tratamento da Covid-19. O Cadúnico (cadastro necessário para os acessos aos programas sociais e rendas mínimas) tem 71,5% de negros, com renda média de R$ 285 por mês. Quando correlacionamos gênero, classe e raça no Brasil, iremos observar que 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. 

Lembre-se da “divisão sexual do trabalho” relacionada à distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho e nas profissões associadas prioritariamente à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. São desigualdades sistemáticas e reproduzidas a partir de hierarquizações associadas, especialmente, ao trabalho informal e às trabalhadoras da saúde. O isolamento horizontal, logo, é uma medida somente posta para os mais ricos e com capital cultural em todos os países do globo. Entretanto, a especificidade da cidadania vertical no Brasil é que a defesa explícita do isolamento vertical pode vir a ser enunciada pelo Poder Executivo porque para uma parcela da população brasileira o direito à vida, à saúde, à integridade física do corpo – os chamados direitos civis e sociais – só podem ser aceitos e legitimados para uma pequena parcela privilegiada. Que, evidentemente, estará menos exposta ao coronavírus.

Afinal de contas, essa é a história de nossa composição do mercado de trabalho formal após a escravidão nos grandes centros urbanos. Essa também é a nossa história – que só começou a mudar poucos anos atrás – com a educação superior, com os cursos de medicina e direito instaurados em poucas capitais para que voltado para as classes altas, compostas de homens brancos. Que constituíam, ao mesmo tempo, a elite política, jurídica e econômica de nosso país. Aliás, essa é também a história dos nossos direitos humanos, onde, os presos oriundos das classes médias e altas intelectualizadas compunham as motivações para as grandes campanhas para a defesa dos direitos humanos. Enquanto os chamados “presos comuns” – vejam que apenas no Brasil essa expressão pode ser verbalizada – ocupavam e morriam nas masmorras brasileiras.

Ora, a defesa do isolamento horizontal, portanto, igualmente distribuído para os diferentes grupos, setores e classes sociais da população – com todos submetidos à mesma medida de quarentena – é algo mais do que necessário. É uma afirmação de cidadania universalizante no Brasil. 

Mas infelizmente inconcebível para boa parte dos setores privilegiados. Trocando em miúdos como nos ensina a canção do Chico: o isolamento horizontal está relacionado fundamentalmente a uma concepção prática no espaço social – público e privado – de exercício de uma cidadania plena (parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a “Cidadania plena para um americano negro”) para todas e todos. O que em nossa história republicana continua a ser tarefa urgente a ser construída e reconstruída cotidianamente: uma cidadania plena para os brasileiros, especialmente, para os negros e negras, os periféricos, as empregadas domésticas, as trabalhadoras da saúde que não querem mais nada de vertical. E sim horizontalidade.      

1  HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui.,  São Paulo , v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007.

2 Parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a cidadania plena, nos EUA, para os negros.  PARSONS, Talcott. ([1965] 1993), “Cidadania plena para o americano negro? Um problema sociológico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 22, p. 32-61.

Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF. 

* Uma versão sucinta deste texto foi publicada no Boletim “Cientistas Sociais e o Coronavírus” publicados em uma ação conjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).

 

Mentira epidemiológica – A morte à vista, lucro imediato, economia a prazo, por Heleno Correa

Artigo originalmente publicado no blog do CEBES , em 28 de abril de 2020. 

Por Heleno Correa, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e diretor executivo do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes)

Os países da Europa e tardiamente os EUA e a Suécia estão colocando em prática políticas de isolamento ou distanciamento social. A necessidade de desativar fábricas, comércio e turismo e fazer o fechamento quase completo do que não são atividades essenciais à manutenção da vida mudou completamente a política de não emitir dinheiro nos bancos centrais e estão liberando renda mínima básica para cidadãos subitamente desempregados ou sem trabalho autônomo.

Governos ultraliberais que atendiam à “TROIKA” BCE-CEE-FMI (Banco Central Europeu, Comissão Econômica Europeia, Fundo Monetário Internacional) e ao Federal Reserve estadunidense passaram da defesa das ideias econômicas de Ludwig Von Mises, Frederick Hayek, Milton Friedman, impulsionadas por Karl Popper e Keneth Rothman – criadores do Fórum Mundial de Davos – para girar 180º e executar o modelo de defesa econômica do estado defendido entre 1933 e 1937 por John Maynard Keynes que recuperou os EUA da depressão com o “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt (1).

Três países permaneceram isolados no mundo propondo a política de deixar adoecer e morrer para enterrar muita gente com a COVID-19. Os EUA, Brasil e Hungria. As propostas do sociopata maior – Donald Trump – junto com seu Pateta sul-americano no Brasil são de deixar todo o mundo adoecer e quem sobreviver ficará imune para trabalhar até morrer de cansaço, fome ou balas (2).

Para alguns médicos que não estudaram epidemiologia devemos deixar todos ficarem doentes e deixar chegar a morte dos que vão sucumbir em até treze semanas. Quem sobrar viverá com uma “economia forte” cheia de banqueiros felizes, sem investimento do estado nos programas que toda Europa e até Trump estão colocando para a Renda Mínima Cidadã que o ex-senador Suplicy defende há mais de vinte anos. A ignorância custa mais caro que o investimento do estado. E a hipótese de ignorância em abril de 2020 é a mais benigna.

Os princípios do isolamento ou distanciamento social são:

  • As pessoas não podem sair de casa, exceto por motivos indispensáveis: compras, trabalho, farmácia, hospital, banco ou companhia de seguros (com justificativa extrema).
  • É proibido levar as crianças para passear ou ver amigos ou familiares, exceto para cuidar de pessoas que precisam de ajuda, mas com medidas de higiene e que mantenham a distância física.
  • Todos os bares e restaurantes devem ser fechados, apenas permitido a retirada de pedidos.
  • Todo o entretenimento deve ser fechado: esportes, filmes, museus, festas municipais.
  • Casamentos não podem ter convidados. Os funerais não podem ter mais do que um punhado de pessoas.
  • O transporte de massa deve permanecer aberto. ”

É lógico supor que para ficar em casa as pessoas devem receber apoio de dinheiro para comprar comida e remédios. O objetivo de diminuir o contágio por contato social requer que as pessoas privadas de trabalho e renda possam sobreviver. Para isso a renda mínima cidadã funciona e não pode ser colocada apenas durante “três meses”.

As famílias trabalhadoras de renda estável têm buscado colaborar com o distanciamento social. Passaram a dedicar mais cuidado aos idosos e às crianças. Dispensaram empregadas diaristas garantindo o pagamento de seus salários enquanto afastadas. Dividiram o trabalho entre familiares e vizinhos. Com isso pretendem diminuir a chance de que as trabalhadoras e trabalhadores domésticos enfrentem ônibus lotados indo e vindo expostas ao contágio todos os dias.

A renda das famílias de classe média e média-baixa consegue sustentar os salários dos empregados por trinta, talvez sessenta dias a contar do início da quarentena. Depois disso existe uma incógnita por que até mesmos os que são funcionários públicos estáveis, como os que são perseguidos pelo governo bozo-guedes-mourão não terão certeza de receber seus salários em dia.

O Calote salarial aplicado pelo governo do estado de Minas Gerais pode chegar a outros estados, de tal forma que nem mesmo os militares terão certeza de receber parte do que o Banco Central do Brasil destina aos investidores e donos de bancos. O país caminha para uma grave depressão, com fome e miséria. Todas as famílias trabalhadoras que “não são ricas” precisam de alternativas de políticas públicas de sustentação de renda em menos de sessenta dias. De acordo com Ana Roxo definimos como ricas as pessoas que podem ficar um ano sem trabalhar.

O medo começa a chegar aos trabalhadores que recebem de seus empregadores para ficar em casa. A dispensa remunerada dos servidores domésticos tem o limite de que eles também se sentem inseguros sem uma Renda Mínima Cidadã. Pensam que uma dispensa remunerada agora pode significar que não vão retornar depois e que a epidemia-pandemia é apenas um pretexto. O medo e a razão andam juntos. Nem muita conversa resolve. Estão todos em mau estado psicológico, especialmente os de contratações mais recentes.

Contra eles trabalha o desmando dos governos falando que para impedi-los de trabalhar vão tirar de circulação os ônibus. Equivale a um toque de recolher para pobres trabalhadores que ao passar um único ônibus lotado irão se engalfinhar para entrar amassando seus corpos contra o contágio pelo Coronavírus. Chegou a hora de brigar para que os mafiosos controladores das empresas de ônibus coloquem mais ônibus rodando nas ruas e só permitam passageiros sentados. A solução não é retirar o transporte para a quarentena. A solução é oferecer mais transporte e menos lotação com proteção para os motoristas, cobradores e inspetores de linha.

E o governo Brasileiro continua enviando ao Congresso Nacional medidas que chama de “reformas” para retirar direitos trabalhistas, sociais e de seguridade social. Retira e bloqueia pagamentos do programa de transferência de renda chamado de “bolsa família”, retira direitos trabalhistas, fecha o intercâmbio científico, fecha pós-graduações, terceiriza o Sistema Único de Saúde criando “agência” que não é nem Agência segundo a lei brasileira e não passa de uma ONG governamental federal, e deixa os trabalhadores sem renda para enfrentar o desemprego. Trabalha para aprofundar a depressão econômica e apresenta aquele que vai dar o tiro de misericórdia – o Coronavírus.

A maldade ultraliberal está concentrada no interesse das duzentas pessoas que são donas de financeiras, têm dinheiro nos bancos, controlam os políticos e juízes. Com essas medidas estão ajudando o serviço mortal do Coronavírus como carrasco de quem eles já condenaram. O Brasil está na contramão do mundo e usa medidas epidemiológicas ruins e ineficazes como o fechamento de fronteiras, cuja finalidade é geopolítica e não sanitária. Os vírus não passam pela aduana. Passam pelo avião presidencial, que serve de coiote.

Os profissionais de saúde que apoiam o governo revelam a incapacidade de ver o mundo real e de aprender. Alguns são médicos especialistas ou clínicos que não estudaram epidemiologia, não se atualizaram, não viram os exemplos recentes da China e da Coreia, ignoram o que aconteceu na Itália que se aproxima do modelo privatista destruidor do SUS. Partem de premissas verdadeiras e pelo método errado chegam a conclusões erradas. É tarde para aprender? A ignorância ou o desimportar-se com a vida das pessoas que dizem valorizar parecem pouca desculpa para não serem capazes de ver o que acontece. Nem que custe a vida dos outros que dizem preservar.

Profissionais de saúde do governo ultraliberal aprenderam a defender a economia de mercado da escola de Chicago acima da economia capitalista moderada de Keynes. Ignoram a economia socialista como opções de defesa da vida. A trupe guedes-mourão-maia-alcolumbre vai levar o país à morte de milhares de pessoas indefesas e defenderá o trabalho contagiante, dizendo que deseja salvar pessoas. ‘Deixai qualquer esperança vós que entrais’ nessa trilha, citando Dante.

Isso coloca a estratégia de Testagem Universal que foi a chave do sucesso de bloqueio na Coreia do Sul como única alternativa para o distanciamento social absoluto e planejado que parece ter sido aplicado com sucesso na Alemanha.

Coloca também como criminosa a estratégia de liberar comércio e atividades não essenciais para a população trabalhadora esperando que a epidemia seja extinta DEPOIS de morrer muita gente pobre, periférica e sem meios de salvar suas vidas em uma UTI dos poucos hospitais aparelhados.

Os primeiros modelos epidemiológicos de disseminação de surtos epidêmicos em populações vulneráveis surgiram na Inglaterra em 1927. São modelos complexos que exigem muitas variáveis para calcular a taxa de reprodução de casos novos. O modelo de Kermack-McKendrick foi aplicado a muitas epidemias e tem sido trabalhado com a busca de um equilíbrio em que o número de casos novos a cada contato com pessoa doente seja menor que um. São modelos de cálculo diferencial compartimentalizado chamados basicamente de “SIR” – Suscetíveis, Infectados e Recuperados (3).

A imprensa brasileira não publica ou esconde os modelos epidemiológicos que desmentem o número de 70% de adoecimentos como piso necessário para interromper a epidemia. É MENTIRA seja por critérios estocásticos seja por critérios determinísticos que tenhamos de tolerar o charlatanismo epidemiológico praticado pelos ministros da Saúde.

NÃO é necessário infectar 70% para reduzir a zero novas infecções. Isso depende da chance de novos contatos infectantes que dependem de muitas variáveis modeláveis para reduzir o “R-zero” ou Ro que é a taxa de reprodução de casos novos a partir de um caso transmissor, sintomático ou não. Repito. Qualquer modelo epidemiológico sobre chegarmos a um Ro que seja menor que 1 é multivariável.

Os técnicos governamentais da saúde mentiram para lançar esse número mágico, falso e cruel de 70%. Certamente com isolamento total a taxa de infecção nova já teria chegado a zero. Como os serviços de alimentação e sustentação da vida impedem isso é possível que modelos com todas as variáveis mostrem que chegaremos a taxas de adoecimentos entre dez e vinte por cento dependendo do planejamento social.

Escolas NÃO SÃO necessárias à sustentação da vida no modelo de sala de aula que temos. Nosso modelo Escola confinada é fonte de infecções. A entrada desordenada de estados e municípios nas medidas de confinamento pelas escolas sem planejamento anterior foi errada. A saída pela volta das mesmas escolas é pior. Ambos os movimentos de entrada e saída desconsideraram combinar estratégias de sustentação com as famílias trabalhadoras desses escolares. A manutenção da quarentena exige planejamento democrático participativo e regras de consenso. Quarentena bruta é sujeita a descumprimento e ao arbítrio do guarda da esquina, como em qualquer ditadura.

A mentira dos 70%, e mesmo 100% mágicos desconsidera que a mobilidade social cria novos contatos e é apenas uma das variáveis que determinam a sustentação da epidemia (4). Todas as outras variáveis não são constates e podem ser alteradas por organização da vida social (5-6). O planejamento atual só fala na economia e desconsidera o poder econômico do estado nas mãos do Banco Central (banqueiros) e do ministro da economia. O modelo de “saída gradual para infectar 70%” é mentiroso, incompetente e assassino. Chega de empresários comandando a vida e enchendo cemitérios. Chega de charlatães epidemiológicos assassinos.

Referências:

1 . http://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200423-fran%C3%A7a-evitou-mais-de-60-mil-mortes-por-coronav%C3%ADrus-gra%C3%A7as-ao-confinamento

2 . https://www.diariodocentrodomundo.com.br/ministro-da-saude-defende-expor-populacao-ao-covid-19/

3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Modelo_epid%C3%AAmico

4. https://mathworld.wolfram.com/Kermack-McKendrickModel.html

5. https://www.gciencia.com/saude/un-modelo-un-teorema-e-teoria-de-xogos-contra-o-coronavirus/

6. https://pt.slideshare.net/rakraenkel/semina-usp2013

 

Lugares da Covid e territórios do poder: os casos de Duque de Caxias e Rio das Pedras, por Luciano Ximenes Aragão e Marcio Rufino Silva

Artigo originalmente publicado na página da PPGIHD-UFRRJ, em 02 de maio de 2020.

O ritmo e as consequências da expansão da Covid-19 no município de Duque de Caxias e na localidade de Rio das Pedras, no bairro de Jacarepaguá, município do Rio de Janeiro, bem podem fornecer importantes pistas quanto à compreensão dos processos sociais subjacentes à pandemia e ao cotidiano da crise social das cidades brasileiras.

Além de muitas e importantes análises sobre o ritmo presente e as prospecções da evolução da Covid-19 na Baixada Fluminense e nas demais áreas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro[1], circulou, nos últimos dias, uma série de reportagens, em diferentes mídias, a respeito de aspectos peculiares de ambos os lugares indicados no parágrafo anterior, sobretudo do modo como as suas populações estão atravessando o período da quarentena.

Delineando o problema em dois atos

Duque de Caxias, o município mais populoso da Baixada Fluminense[2], cujo primeiro caso oficialmente confirmado de infecção pelo novo vírus data de 24 de março de 2020 (segundo os dados constantes no Painel Rede CoVida, disponíveis em https://painel.covid19br.org/), naquela mesma data teve veiculada uma declaração de seu prefeito, Washington Reis, afirmando que “[...] nossa orientação desde a primeira hora foi manter as igrejas abertas, porque a cura [à doença causada pelo novo coronavírus] virá de lá, dos pés do senhor”.[3] A reportagem reforça, ainda, que a fala do prefeito seria “[...] direcionada a fiéis e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus e de outras denominações”, com o intuito de lhes assegurar que seus templos manteriam as portas abertas diante das medidas de isolamento social constantes em decreto estadual[4] e já adotadas naquele momento por outros municípios. Ao lado da vereadora Leide Nascimento (PRB), que afirmava que os cultos já não estavam acontecendo e que a própria igreja já havia tomado suas medidas quanto à higiene das mãos dos “obreiros e fiéis” que adentravam as igrejas, o prefeito declarou, ainda, que subiria ao “Monte” para “orar”, buscando que “Duque de Caxias tenha a proteção de Deus”. Questionada pela reportagem quanto às medidas locais para combate à COVID-19, a Prefeitura de Duque de Caxias afirmou que agentes de segurança estavam orientando a população, sobretudo os mais idosos, ao isolamento social e que estavam suspensos por 15 dias a realização e feiras livres. Quanto às igrejas e ao comércio, tal decisão ainda era facultativa naquele momento.

Outra reportagem noticiava que, no início daquela mesma semana, o movimento nas ruas do município, inclusive no Centro, ainda estava muito próximo dos dias normais, com comércio aberto, calçadas cheias, filas em bancos e grupos de idosos aglomerados em praças públicas[5]. E, no final de março, a despeito das medidas de enfrentamento à COVID-19 anunciadas pela prefeitura do município, como a aquisição de um centro de saúde particular e a abertura de novos leitos, era notória a resistência do poder local em adotar medidas de isolamento social. Uma reportagem[6], por exemplo, noticiava que, ao contrário de Caxias, “algumas prefeituras da Baixada Fluminense determinaram o fechamento do comércio mesmo antes de haver registro oficial de infectados pelo novo coronavírus”, o que fora o caso de Nova Iguaçu, São João de Meriti, Mesquita, Nilópolis, Queimados, Japeri, Paracambi e Magé. A reportagem, ainda, indica Duque de Caxias como um “reduto bolsonarista”, seja pela maior quantidade absoluta de votos, dentre os demais municípios da região, dispensados ao então candidato Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, seja pelo “alinhamento” do poder institucional local com os discursos negacionistas do presidente quanto à necessidade e eficácia da estratégia de isolamento social diante da pandemia. Ao final, a reportagem cita falas de ativistas sociais locais, que denunciam o baixo investimento público no enfrentamento das desigualdades sociais e raciais locais e a subordinação das populações mais pobres, majoritariamente negra, a religiões neopentecostais e grupos milicianos, bem como a adesão de parte dessa população a discursos mais radicais dessas religiões e a perspectivas anticientíficas preconizadas por essas tendências políticas e teológicas. Por fim, cita iniciativas do grupo “Movimenta Caxias” e da iniciativa “#Coronanabaixada[7], na promoção de campanhas de arrecadação de mantimentos e de reivindicação de políticas locais de enfrentamento à pandemia.

Dias depois, noticiava-se que a 1ª Vara Federal de Duque de Caxias havia derrubado os efeitos de Decreto Federal que definia como “serviço público essencial” atividades religiosas e funcionamento de casas lotéricas[8]. Em 30/03/2020, no entanto, a Advocacia Geral da União (AGU), no entanto, entrou com recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que, por sua vez, atendeu o pedido e liberou a vigência do decreto que incluía “atividades religiosas de qualquer natureza” e “unidades lotéricas” no rol de atividades essenciais[9]. O parecer do TRF-2, assinado pelo desembargador Roy Reis Friede, presidente do Tribunal, acatou as justificativas da AGU quanto ao pedido de suspensão da liminar da Vara de Duque de Caxias, reiterando que a vara teria usurpado competência constitucionalmente entregue ao Poder Legislativo, sendo “competência exclusiva do Congresso Nacional [...] sustar atos normativos do Poder Executivo quando estes exorbitem do poder regulamentar”; a referida decisão, ainda, reiterou que não se poderia “aproveitar o momento de pandemia mundial e calamidade pública para se permitir a perpetração de afrontas à Constituição da República e ao consagrado Princípio da Separação dos Poderes”. Por fim, a decisão advoga que, em “localidades desassistidas da rede bancária”, só é possível às populações mais pobres acessarem serviços bancários básicos por via de unidades lotéricas e que as atividades religiosas foram autorizadas pelo decreto mediante “caráter de cautela”, já que elas só poderiam ser efetivadas “obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”.

Nova reportagem do dia 2 de abril, pouco mais de 15 dias após a promulgação do decreto estadual que estabelecia o isolamento social e o encerramento de atividades não essenciais, relatava que, em Duque de Caxias, ainda havia lojas abertas, aglomerações e filas no Centro e em vários bairros.[10] Em resposta, o prefeito gravou um vídeo informando que já haviam sido promulgados decretos do município determinando o fechamento do comércio e que carros de som da prefeitura andavam pelas ruas da cidade convencendo seus moradores a permanecerem em suas casas. Dez dias depois, Washington Reis foi internado na unidade de tratamento semi-intensivo do Hospital Pró-Cardíaco, no bairro de Botafogo, zona sul do município do Rio de Janeiro, com teste positivo para contaminação com o Covid-19.[11] No dia seguinte à internação do prefeito, o município já contava com 81 casos confirmados e 16 mortes registradas, sendo a segunda cidade com maior número de mortes do Estado do Rio de Janeiro e a última da Região Metropolitana a adotar medidas de isolamento social.[12] Note-se, aliás, que o município de Niterói, cujo primeiro caso oficial foi confirmado em 12 de março de 2020, doze dias antes do primeiro caso de Duque de Caxias, e que durante boa parte do primeiro mês de vigência do decreto estadual figurou como o segundo município com maior número de infectados do Estado do Rio de Janeiro, atrás apenas da capital, em 27 de abril estava com 260 casos confirmados e 19 mortes, ao passo que Duque de Caxias tinha 300 casos confirmados e o altíssimo número de 63 mortos devido ao novo coronavírus.

Não faltaram análises críticas quanto à situação caótica que o município estava vivendo desde o final de março, quando os primeiros sinais de que a situação poderia sair do controle foram veiculadas. Uma situação particular foi relatada em um texto que expôs o vínculo entre a imensa subnotificação de casos no município, a precariedade do sistema público de saúde local e o monopólio dos serviços funerários “em uma cidade de um milhão de habitantes”, o que apontava indícios disso tudo “[...] ser mais um dos negócios lucrativos da milícia”, somado ao “controle que exercem sobre os serviços nos hospitais públicos”. Nesse sentido, José Cláudio Souza Alves afirma que “a estrutura legal e formal de hospitais, cartórios, funerárias e cemitérios são perpassadas pelo poder miliciano, com seus representantes na Delegacia, no Batalhão, na Câmara dos Vereadores e na Prefeitura”. Nessa situação, uma economia de terror é erguida justamente nos escombros de uma “potencialização da força e impunidade dos assassinos”, implicando uma prática de “chacinas invisíveis”, ampliando “o poder da morte pelo desaparecimento dos corpos”, configurando verdadeiras mortes “sem corpo”.[13] Em 13 de abril de 2020, ainda com parte do comércio aberto no município e com depoimentos de pessoas que ainda duvidavam da gravidade da doença, reportagem afirmava que havia espera de até 8 horas em na Unidade de Pronto Atendimento Beira-Mar, dedicada exclusivamente às pessoas com sintomas da doença; nessa unidade, pessoas com febre, gripe ou falta de ar reclamavam das imensas filas e da aglomeração dentro da unidade de saúde.[14] Dias depois, era possível coletar opiniões distintas entre os moradores do município, desde aqueles que defendiam o “isolamento vertical”, onde apenas os grupos mais vulneráveis ficariam em isolamento social, de modo a não “colapsar” a economia do país, até as opiniões de que havia uma pressão excessiva de muitos empresários pelo receio deles não poderem auferir seus lucros via exploração do trabalho de seus funcionários, e que deveria haver maior amparo do Estado aos mais necessitados.[15]

Nesses últimos dias, o quadro da evolução da doença em todo o país e, especialmente, no Rio de Janeiro, só foi se agravando. As imagens de superlotação em unidades de tratamento intensivo e corredores de hospitais e de abertura de covas coletivas em cemitérios passaram a fazer parte do noticiário e do cotidiano de muitas pessoas, sobretudo as mais empobrecidas de algumas metrópoles. Assim como em outros lugares da região Norte do Brasil, que atravessam pouco a pouco a linha do colapso do sistema público de saúde e, logo mais, da rede particular (citemos os exemplos de Manaus, Belém, Macapá, Fortaleza, Recife e São Paulo como os mais críticos do país neste momento[16]), bem como de seus sistemas funerários, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro já convive com o uso de câmaras frigoríficas para armazenamento dos corpos antes de seu encaminhamento ao enterro.[17] Tornam-se cada vez mais comuns, igualmente, relatos de profissionais de saúde que, dada a escassez de leitos e de respiradores para a imensa demanda de tempos de Covid, se veem obrigados a “escolher” pacientes, deixando os menos afortunados à morte pelo sufocamento ocasionado pela ação do vírus nos pulmões. Em um momento em que o município do Rio de Janeiro atingiu a marca de quase 100% dos leitos de UTI ocupados, não é incomum relatos como o do cirurgião-geral e diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Pedro Archer, segundo o qual, dada a escassez de respiradores em uma unidade pública de saúde na zona oeste do município, todos os dias essa “escolha” tem que ser feita.[18]

Na manhã do sábado de 25 de abril, passado um mês desde a confirmação do primeiro caso em Duque de Caxias, imagens divulgadas em redes sociais e posteriormente confirmadas pela prefeitura mostravam cadáveres amontados nos corredores do Hospital Moacyr do Carmo. Dentre os 15 corpos dispostos no corredor, pertencentes a famílias que não podiam arcar com os custos do sepultamento, ao menos 10 seriam de vítimas da Covid-19. Segundo servidores ouvidos pela reportagem, o mau cheiro podia ser sentido de outros corredores de acesso. A reportagem prossegue indicando disputas entre a prefeitura do município e a concessionária de “serviços públicos cemiteriais e administradora dos cemitérios de Duque de Caxias”, AG-R Eye, quanto aos preços cobrados pela empresa.[19] Dois dias depois, outra reportagem afirmava que os corpos já haviam sido retirados do hospital, e que a prefeitura afirmava que tal situação, incomum na unidade, deveu-se à “irresponsabilidade da concessionária que administra os cemitérios da cidade”.[20]

Rio das Pedras, localidade do bairro de Jacarepaguá, atravessada pela Estrada de Jacarepaguá e pela Avenida Engenheiro Souza Filho, tem ocupado, igualmente, muito espaço nas mídias no contexto do alastramento da Covid-19, e por razões muito semelhantes às do município de Duque de Caxias. Além das dificuldades cotidianas de cumprimento das medidas de isolamento social, da subnotificação de casos, outras situações chamaram muita atenção. Em 25 de março, ainda nos primeiros dias da quarentena estadual, reportagem informava que “tráfico e milícia” haviam imposto toque de recolher em favelas e demais localidades do Rio de Janeiro por conta da disseminação do novo coronavírus. Segundo o texto, a ordem de encerramento de atividades e da circulação de pessoas a partir das oito horas da noite, veiculadas por um carro de som circulando nas ruas, foi confirmada na Rocinha e no Cantagalo, na zona sul, em Rio das Pedras e na Cidade de Deus, na zona oeste, e em outras localidades na zona norte do município do Rio de Janeiro. Após relatar a experiencia de outros lugares, onde o turismo em favelas havia sido interrompido e onde traficantes inclusive faziam uso de máscaras e álcool gel, Rio das Pedras, segundo a reportagem um “bairro dominado pela milícia”, teve o depoimento de um morador que afirmava que “eles não estão batendo em ninguém” e que “a maior parte está obedecendo”.[21] Ao que parece, essa “benfeitoria” não durou muito tempo. Pouco mais de 20 dias depois, e quando os casos confirmados de Covid-19 já se aproximavam de 4.000 e estavam registradas oficialmente 350 mortes no Estado do Rio de Janeiro, foram veiculadas denúncias de que grupos milicianos estavam obrigando a reabertura de comércio da Zona Oeste do Rio (especialmente em Itanhangá, Rio das Pedras, Muzema e Gardênia Azul) e parte da Região Metropolitana (especialmente o município de Itaboraí), de modo a efetivar a tradicional cobrança extorsiva de taxas de comerciantes e de moradores, muitos deles já empobrecidos pela interrupção de atividades econômicas devido à quarentena.[22]

Coronavírus e o atravessamento da vida cotidiana

Partimos, aqui, da premissa de que o vírus e sua disseminação nada têm de puramente biológico, já que seu conteúdo político e sua base econômica podem ser observados pelo próprio ritmo de sua disseminação, desde as suas primeiras manifestações. Aliás, David Harvey (2020, p. 13)[28], tratando especificamente do início da disseminação global do vírus, afirma que, para “tentar interpretar, compreender e analisar o fluxo diário de notícias”, sua tendência seria “localizar o que está acontecendo no contexto de dois modelos distintos, mas intersectantes, de como o capitalismo funciona”. Para o geógrafo inglês, o “primeiro nível é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital como fluxos de valor monetário em busca de lucro”, por intermédio da “produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento”; por sua vez, esse modelo complica-se quando é elaborado “através [...] das lentes das rivalidades geopolíticas, dos desenvolvimentos geográficos desiguais, das instituições financeiras, das políticas estatais, das reconfigurações tecnológicas” e, finalmente, “da teia em constante mudança das divisões do trabalho e das relações sociais”. Para o autor, então, ambos desdobramentos se ancoram em “um contexto mais amplo de reprodução social (nas famílias e comunidades), numa relação metabólica e em constante evolução com a natureza [...] e todo o tipo de formações culturais, científicas, religiosas e sociais contingentes” que são fruto do engenho humano através do espaço e do tempo.

Tendo o novo coronavírus surgido, provavelmente em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, importante nexo produtivo e logístico da China contemporânea, e, cerca de um mês depois, tendo expandido seus domínios por Irã, Itália e Espanha e, pouco mais tarde, pelos Estados Unidos, foi por intermédio desses territórios que o vírus foi trazido à convivência brasileira. Inclusive, estudo promovido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo rastreou que 54,8% dos casos importados de Covid-19 para o Brasil, até o dia 5 de março, apenas uma semana após a confirmação do primeiro caso no município de São Paulo, haviam vindo da Itália. A pesquisadora Ester Sabino, uma das autoras do estudo, afirmou ainda que, diferentemente da China e outros países, onde o surto “começou devagar, com um número pequeno de casos inicialmente, no Brasil mais de 300 pessoas começaram a epidemia, em sua maioria vindas da Itália” e, ainda, que “isso resultou em uma disseminação muito rápida do vírus”.[23] Tendo esses passageiros provindo daquele país, grande parte desembarcou em outras cidades, como Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Porto Alegre entre outros, o que explica em parte dessas metrópoles com importantes conexões aeroportuárias terem sido as primeiras a se configurarem como epicentro da doença no Brasil.

Entrando no estágio intitulado pelos estudiosos e autoridades sanitaristas de “circulação comunitária” em meados de março nas duas maiores metrópoles do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, o ritmo da disseminação do vírus certamente adquiriu o carimbo tipicamente brasileiro, passeando pelas vias das aglomerações e do trânsito cotidiano, com toda a sua desigualdade, violência, humilhação cotidiana e abandono aos empobrecidos. Muitos foram os artigos, análises e estudos que mostraram o quanto seria uma questão de tempo até que o vírus, trazido ao país e aos seus maiores centros urbanos grosso modo por uma elite econômica internacionalizada, se desfizesse de um pretenso caráter “democrático”[24] e começasse a vitimizar, pouco a pouco, aos destituídos habitantes de favelas e periferias precarizadas, quase nunca apartados de seus cortes de gênero, raça e outras formas de segregação e isso incluindo também a população de rua[25]. E foi justamente o que ocorreu tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil: negros e pardos passaram ter, inclusive, maior mortalidade assim que se consolidou a circulação local do vírus em ambos países.[26]

E é justamente esse conteúdo político, ou uma produção política da sociedade, que podemos perceber nesses dois lugares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esses lugares, segundo nossa interpretação, parecem paradigmáticos tanto em relação à urbanização e sua forma e conteúdo no âmbito da formação social brasileira, historicamente pautado em formas derivadas do escravismo e suas ramificações quanto ao controle da terra, das rendas e dos excedentes da produção social, quanto aos paradigmas contemporâneos de forças avançadas de gestão da barbárie em temos de capitalismo financeirizado.

A “produção política da sociedade” é uma hipótese teórica aventada pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em várias de suas obras, e podemos defini-la, a princípio, da seguinte maneira:

[Essa produção] significa, de um lado, o ato de estabelecer a equivalência do desigual, a homogeneização, o identitário, e de outro desvela o conflito que está presente de forma imanente na relação de troca – seu caráter de constrição, de equalização forçada e legitimada que torna necessária a mediação de um tertius [terceiro termo] em nossa sociedade: o Estado. A equivalência e a igualdade jurídica, pela dimensão do constrangimento, convivem necessariamente com a dependência e a subordinação nas práticas sociais e nas instituições (SPOSITO, 1996, p. 46)[29].

Nos casos levantados acima, do enfrentamento da Covid em Duque de Caxias e Rio das Pedras, de que modo esse Estado lidaria com as equivalências? De que modo o Estado promove esse “constrangimento” e a “subordinação nas práticas sociais e nas instituições”?

Anselm Jappe, filósofo e ensaísta alemão, publicou recentemente um livro intitulado “A sociedade autofágica” (2019)[30]. Tratando, especificamente, da “crise da forma-sujeito”, o autor põe em dúvida que a “autoconservação” ou “autoafirmação” do sujeito, uma pretensa “base do pensamento moderno”, ainda seja válida nas últimas décadas. Na prática, isso significa que uma “pulsão de morte do capitalismo” estaria na vanguarda de processos sociais cada vez mais irracionais, onde uma “satisfação libidinal” seria alcançada pela apropriação de bens ou corpos, mesmo com o custo do auto-aniquilamento. O “instinto de sobrevivência” é substituído pela pulsão destrutiva e mesmo autodestrutiva. Ainda, segundo o autor,

Desde finais da década de 1990, multiplicaram-se massacres premeditados em escolas, universidades, locais de trabalho e noutros espaços públicos, principalmente nos Estados Unidos, mas não só; atentados qualificados como “jihadistas”, mas que não entram nas categorias tradicionais da política e da religião; ataques, ou mesmo homicídios, imotivados, em locais públicos – muitas vezes por causa de um “olhar de través”; ataques ferozes contra imigrantes, marginais ou homossexuais. [...] É conhecida a violência sádica manifestada por certas formas de criminalidade ligadas ao tráfico de droga, nomeadamente no Brasil e no México, cujos autores sabem, com quase toda certeza, que vão morrer jovens. (JAPPE, 2019, pp. 258-259)

O esgarçamento e a dissolução das formas sociais modernas é assunto tratado por Marildo Menegat em vários de seus textos. Tal como uma compreensão de que “a aparência inabalada das coisas já não corresponde à sua verdade”, lemos que a vida social, especialmente no Brasil e no Rio de Janeiro na Era Covid, “faz do presente a mera espera de um futuro que não se quer, a exemplo de quem aguarda um tsunami sem ter para onde correr”. O resultado dessa “civilização em fim de linha” é que o horror de classes ou segmentos sociais ainda funcionais para a acumulação detêm em relação àqueles que passaram a “ser o outro lado da fronteira do desmoronamento da sociedade” (MENEGAT, 2019, p. 68)[31]. Isso quer dizer que, se o próprio Menegat ainda indicava o encarceramento em massa como possibilidade de gestão dessa massa economicamente disfuncional, em nossos tempos de Covid, o simples laissez-faire da “contaminação de rebanho”[27] fará o serviço final de eliminação física. Ou seja, uma “economia política da barbárie” (2019, p. 78), lastreada pelo Estado de exceção há muito tempo tornado regra, é capaz de “pôr tudo abaixo” caso não se realize a forma tautológica do dinheiro valer mais dinheiro ao final do processo de giro do capital.

Francisco de Oliveira, famoso sociólogo brasileiro falecido em julho de 2019, em seu último livro lançado em vida, intitulado “Brasil: uma biografia não autorizada” (2018), advogava logo no início de seu texto um “adeus do futuro ao país do futuro”. Iniciando com uma “síntese da formação histórica brasileira”, advogava de pronto que o “nascimento” do Brasil ocorrera simultaneamente à modernidade: à conquista territorial, “mesclavam-se a propagação da fé cristã, comércio e exploração de riquezas comerciais” (OLIVEIRA, 2018, p. 27)[32]. O extermínio das populações nativas era o primeiro traço daquela colonização mercantil que se iniciava e, pouco a pouco, enraizava-se em um território, cujo acesso à terra fora de pronto definida pelas capitais e, em seguida, pelas sesmarias. A concentração de terras e, mais tarde, o comércio de escravizados da África constituiu o ambiente propício à empresa mercantil escravista-colonial. Sintetizando um percurso histórico de quase quatro séculos, o sociólogo resume assim a trajetória de nascimento do moderno Estado-nação brasileiro:

Foi um duro percurso, do Quilombo dos Palmares [...] até desaguar, sem tempestade [...], na abolição da escravatura, em 1888. [...] Batia às portas a República. Desde logo, eis os elementos do truncamento brasileiro, mesmo que não se adotasse ponto de vista de desenvolvimento histórico linear. Truncamento que alimentou a autoironia dos brasileiros, cáustica às vezes, mas baseada em fatos: uma independência urdida pelos liberais, que se fez mantendo a família real no poder e se transformou imediatamente numa regressão quase tiranicida; um segundo imperador que passou à história como sábio e não deixou palavra escrita, salvo cartas de amor um tanto pífias; uma abolição pacífica, que rói as entranhas da monarquia; uma república feita por militares conservadores, mais autocratas que o próprio imperador. Num registro não sarcástico: desenvolvimento conservador a partir de rupturas históricas libertadoras. (2018, p. 32)

Este país que, entre as brechas possíveis da história do capitalismo no século XX, empreendeu esforços de desenvolvimento congregando “quinhentos anos em cinquenta”, cedo abandonava a esperança de figurar no primeiro mundo, caído na armadilha da dívida e, posteriormente, do fiscalismo neoliberal e da erosão da nação, atrelado ao ideário prático da assim chamada globalização. Para Oliveira, ao invés de produzir-se um Estado mínimo, fora gestado um “Estado máximo”, guardião dos movimentos do capital, buscando assegurar tais movimentos “contra toda a incerteza, que aliás cresce exponencialmente no mundo globalizado”. Por fim, “a combinação de máxima incerteza, erosão da comunidade política e Estado máximo produziu um Estado que está muito próximo de ser um Estado policial” (2018, p. 75).

Se quinze anos atrás o diagnóstico era de que “o cotidiano havia se transformado [...] numa constante negociação entre a não forma mercantil, que impõe sobrevivências praticamente gângsteres – o narcotráfico, por exemplo, e sua consanguínea violência – e as precárias formas das políticas assistencialistas” (2018, p. 77), hoje talvez o diagnóstico mereça algumas atualizações. Atualmente, no meio de uma grave pandemia, que dia a dia vitima milhares de pessoas mundo afora, em vários lugares do Brasil, os mais pobres acotovelam-se nas portas da Caixa Econômica Federal, buscando o “auxílio emergencial”[28], demorado e ainda pouco acessível a muita gente, e, ainda, precisa negociar sua sobrevivência em contextos de extrema violência operada por grupos milicianos, cuja indissociabilidade com as tramas do Estado é mais do que conhecida. Trata-se de um poder discricionário que simplesmente sofisticou os métodos da espoliação, incluindo a modalidade do pagamento de taxas e pedágios pela “segurança”, o monopólio de serviços essenciais, o acesso ao mercado imobiliário e, ao mesmo tempo, a convivência com a violência do narcotráfico e da guerra contra as drogas. Além disso, a novidade histórica de um governo que, segundo muitos analistas, produz propositalmente o desgoverno e a crise, e cuja declaração do presidente em um dia de alta histórica do número de mortos no Brasil mais a ultrapassagem do total acumulado de mortes na China[29] resume-se a um grosseiro “e daí?”[30], é acompanhada da proposta de banimento de voos comerciais dos Estados Unidos ao Brasil, feita pelo presidente estadunidense Donald Trump, de quem Jair Bolsonaro é aliado de primeira hora, que atribuiu ao Brasil um aumento exponencial e perigoso da curva de contaminações.[31]

Seria esse o cenário para o delírio anarcocapitalista de cores tupiniquins,[32] apropriado às veredas de uma sociedade desigual porque escravista, violenta porque hipermoderna em suas formas de espoliação via o máximo de trabalho abstrato, injusta porque é necessária uma cadeia da equivalência de perpetuação das desigualdades e dos privilégios às rendas e ao dinheiro sem lastro? Seria o Brasil das ruínas de seu projeto modernizador o berço de uma novidade histórica, para além do neoliberalismo privatista, um distópico “modelo” de sociedade onde milícias e famílias ricas isoladas com vieses teocráticos, a verdade de uma “nova sociedade” propagandeada por tantos grupos que cerram fileiras na defesa inconteste de uma forma social moribunda?

Os desafios teóricos e analíticos se multiplicam na mesma intensidade com que a realidade se complexifica. Contudo, aumenta também a necessidade de pensarmos sobre ela. Trata-se de se debruçar sobre o cotidiano (ou de seus resíduos, o infra-cotidiano) para enfrentar o modo sobre o qual ele vai sendo sentido, vivido e tecido. É como se estivéssemos sobre o bastidor de um bordado e a linha não querer acompanhar o desenho que está ali sobre o tecido que aparentemente já tem uma vida própria. Não temos o controle da linha e da agulha. Essa é a metáfora aproximativa para reter o aprofundamento das contradições que se apresentam na produção (social) do espaço. Para além de nossos voluntarismos, aquilo que desejamos, nos confrontamos com a responsabilidade de contribuir com esse estado de coisas.

A linha teórica que se propõe aponta para a crítica da economia política, mas com uma orientação para o entendimento das disputas em torno da apropriação do excedente social, ou seja, de parte do trabalho excedente capturado pelo Estado ou em operações que ora tem origem nas próprias instituições, ora fora delas, ora atravessadas por ela. Isto quer dizer que há momentos da vida social em que se destaca uma crise das instituições, e, em seu lugar, emergem as organizações. Dentre aquelas, a mais destacada é uma crise do Estado, muitas vezes revelada como uma crise fiscal utilizada como panaceia para desviar o excedente social para socorrer o setor financeiro, com a finalidade de que este não recaia na insolvência. Na justificativa para essa iniciativa acumulam-se narrativas emanadas dos setores hegemônicos que mistificam as suas consequências. É preciso alimentar os medos para que seja aceita toda sorte de medidas austeras e que sejam decretadas; todas as formas de extorsão sejam aprovadas pela opinião pública. Cada vez mais o lastro dessa economia, dado pelo trabalho, se esvai.

De certo modo, quando se observa que as referidas operações das instituições, em especial do Estado e que as atravessam, estão nelas mesmas ou fora delas, admite-se a intrincada conveniência dos distintos momentos que ela assume. É preciso aqui apresentar como se manifestam os mecanismos que drenam a renda – no caso aqui destacado, o trabalho excedente, ou que se poderia denominar mais-valia social – daqueles grupos sociais cujo único bem tem sido a sua força de trabalho para aqueles setores muito ricos. Os casos de Duque de Caxias e Rio das Pedras nos mostram evidências dessas operações. Como muitos outros territórios no Rio de Janeiro, nota-se como essas áreas se metamorfoseiam em territórios economizados. As formas de dominação desses territórios observadas são desdobradas a partir do controle daqueles territórios que metamorfoseiam ou resultam em renda de monopólios: o controle (pelas organizações milicianas) sobre novos lotes “edificáveis” na comunidade da Muzema e de parte de Rio de Pedras, o controle sobre o abastecimento de gás, assim como da cobrança pelo acesso às instalações de TV a cabo, são os seus exemplos mais emblemáticos, embora outros possam ser acrescidos. Todo tempo da vida (e até da morte!) são capturados como momentos de acumulação e de monopolização, mesmo que a despeito da suspensão da vida cotidiana, como nos mostram esses tempos de pandemia.

O desenho dos territórios economizados se entrecruza com os momentos da referida “produção política da sociedade” e por essa razão insistimos que esta se coaduna com a exploração e ampliação da dominação e neste sentido, a luta de classes está sendo reposta. Clássicas questões, como a da habitação (e esta envolvendo a terra urbana) e a própria questão urbana têm de ser vistas em outros níveis analíticos, mantendo-se como ponto de partida e de chegada esse conjunto de trajetórias da (e na) cidade. Precisamos retomar o controle da agulha e da linha (e do novelo) para compreender as tramas e tessituras dessa produção social do espaço em ato.

[33]

Luciano Ximenes Aragão (FEBF-UERJ)

Marcio Rufino Silva (PPGGEO-UFRRJ)

 

Em tempos de pandemia: propostas para defesa da vida e dos direitos sociais, por UFRJ

As Escolas de Serviço Social e de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) produziram uma coletânea de artigos com propostas para defesa da vida e dos direitos sociais durante a pandemia do novo coronavírus. As(os) organizadoras(os) Elaine Moreira, Rachel Gouveia, Joana Garcia, Luis Acosta, Marcos Botelho, Mavi Rodrigues, Miriam Krenzinger e Tatiana Brettas reuniram em 20 capítulos diversas discussões sobre conjuntura, políticas públicas e experiências dos sujeitos neste período.

CONFIRA O LIVRO COMPLETO aqui.

 

Covid-19 em favelas cariocas: no limiar entre os direitos humanos e as desigualdades sociais, por Luana Almeida de Carvalho Fernandes, Caíque Azael Ferreira da Silva, Cristiane Dameda e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Artigo originalmente publicado na METAXY é uma Revista semestral do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH/UFRJ, em 20 de maio de 2020

Escrevemos esse manuscrito dois meses após a confirmação da transmissão comunitária no Rio de Janeiro e da primeira morte em decorrência da pandemia do coronavírus. São sessenta dias de orientações de quarentena e isolamento social e estamos próximos do início das medidas de fechamento completo (também conhecidas como lockdown, ou "tranca-rua") na maioria das cidades da Região Metropolitana. Para nós, brasileiras e brasileiros, tudo começa no final de janeiro de 2020: recorrentemente chegam notícias sobre o surto da doença causada pelo novo coronavírus, a Covid-19, que constituiu uma Emergência de Saúde em nível internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, assim, é afirmada como pandemia. A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em áreas sociais como a saúde, sofremos com a intensificação do sucateamento dos sistemas de saúde, fechamento de leitos e hospitais em todo o país. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais medidas de restrição, principalmente diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana María Galindo (2020)[34]: na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do mundo. "Aqui a sentença de morte estava escrita antes da covid chegar em avião de turismo" (p. 124). Não atingimos o pico da pandemia por aqui, embora há quem diga por aí que o pior já passou para as classes alta e média[5]. Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução social da vida imprime na sociedade. Neste sentido, o presente ensaio visa problematizar a relação entre direitos humanos e desigualdades sociais nas favelas cariocas, a partir dos cenários que emergem com a pandemia do novo coronavírus.

O nosso inimigo invisível – o coronavírus – "faz ver e falar" (DELEUZE, 1990; HUR, 2016)[35] sobre essas desigualdades. Especialmente no caso do Rio de Janeiro, o terceiro lugar em contágios e mortes no país, gostaríamos de discutir sobre um tema que consideramos de suma importância: a chegada do coronavírus às favelas cariocas expõe uma forma de relação entre poder público e populações mais pobres que é ubuesca[6]: adjetivo aqui utilizado sob  inspiração de Foucault (2002)[36], em que o autor aponta o cruzamento entre os enunciados científicos e jurídicos usados para legitimar como estatuto de verdade a produção desses discursos que estão alheios às próprias regras científicas e jurídicas. Por isso são:

Textos grotescos – e quando digo ‘grotesco’ gostaria de empregar a palavra num sentido, se não absolutamente estrito, pelo menos um pouco rígido ou sério. Chamarei de ‘grotesco’ o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o ‘ubuesco’ (FOUCAULT, 2002, p. 15)[37].       

Invisível e excepcional o coronavírus foi tido inicialmente como “um vírus democrático” – expressão que compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que evaporou a segurança da nobreza e, o medo da sua contaminação, extrapolou as fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada. "Este vírus é democrático e não distingue entre pobre e ricos ou entre estadista e cidadão comum" (ZIZEK, 2020, p. 25)[38].

Como um vírus pode ser "democrático" (ZIZEK, 2020)[39] em um país tão desigual? A realidade das periferias e favelas mostra-se outra comparada às zonas nobres; as orientações de epidemiologistas, sanitaristas e de outros conhecedores científicos mostram-se incompatíveis com a estrutura material, financeira e social que aqueles possuem, sem condições básicas para seguirem prescrições alimentares, de isolamento, de higiene, sem contar que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e desmoralizam a gravidade da doença, tratando-a como uma “gripezinha” (LÖWY, 2020)[40]. Controlar a contaminação nos países ditos democráticos poderia ser um desafio, aponta Boaventura de Sousa Santos (2020)[41], uma vez que, cada pessoa é “livre” para decidir sobre sua circulação e outros aspectos de operacionalização da vida. Assim como, para os brasileiros, o acesso à informação e aos serviços públicos de saúde por exemplo, também são para todos. Uma utopia, sabemos. “De-mo-cra-ci-a”: cinco sílabas e uma fonética elaborada, mas que, às vezes, não articula e é ineficiente para representar o direito à igualdade e ao exercício livre e participativo da vida nas mais diferentes classes sociais (BICALHO, 2013)[42]. O Brasil apresenta um dos maiores índices no que concerne a desigualdade social (estando na 10ª posição em comparação com outros países do mundo, verificando-se no ano de 2019 ampliação da desigualdade entre os extremos da distribuição da renda do trabalho, de acordo com IPEA[7]).  Para a manutenção da ordem capitalista, o darwinismo social ainda permeia como ideologia explicativa a esse fenômeno e atinge maciçamente os pobres, os negros e a classe trabalhadora, historicamente explorados pelo colonialismo (BOLSANELLO, 1996)[43]. Sobreviverão aqueles mais fortes, capazes de adaptar-se ao ambiente (e, aqui, sobreviver à pandemia).

As especificidades das favelas e periferias não são algo novo. Há locais onde o abastecimento de água é irregular e a coleta de lixo é praticamente inexistente. Conforme descrito no blog Maré Online[8]: na realidade das favelas, onde muitas casas são pequenas com poucos cômodos e muitas pessoas, sem circulação de ar, é quase impossível o respeito às medidas de prevenção propostas pelos órgãos nacionais e internacionais de saúde. No começo da quarentena, já se alertava sobre o risco de convulsão social das favelas, com a perspectiva de empobrecimento muito forte: 7 em cada 10 famílias das favelas teriam suas rendas comprometidas numa primeira análise[9]. São muitos motivos para isso, mas destacamos os que mais nos chamam a atenção: as relações de trabalho são completamente precárias, tendo muitos trabalhadores em relações informais de trabalho, autônomos, terceirizados ou prestando serviços por meio de plataformas. Na verdade, há toda uma economia baseada na prestação de serviços que sustenta muitas das famílias desses locais: manicures, pedreiros, padeiros, empregadas domésticas. Imediatamente, um obstáculo para o atendimento às orientações de quarentena e isolamento social, já que "o pão de cada dia" depende do trabalho, também de cada dia. Toda essa realidade, escancarada pelo coronavírus, existe desde sempre nesses locais. Como ressalta Dornelles (2017)[44]:

O que se verifica, principalmente em tempo de capitalismo de barbárie, como o adotado pela ordem neoliberal, é que os contingentes humanos que se encontram em situação de vulnerabilidade, de exclusão social, são cada vez maiores, em todo o mundo. Compõem uma multidão de seres humanos que passam a ser identificados como inimigos da ordem e perigosos, cuja existência e condições de vida não são tratadas como resultado deste modelo de acumulação de capital, mas sim como segmentos a serem criminalizados e punidos (p. 123).

As favelas surgem em função de uma realidade desigual que se impõe aos trabalhadores, de limitação do acesso ao direito à moradia digna. E não foram poucas as tentativas pela história das favelas que os moradores fizeram de responsabilizar o poder público pelas melhorias, mas também não foram poucas as vezes em que o poder público atuou incansavelmente na destruição de favelas, na demolição de casas e no rompimento de diálogos democráticos com a população. Assim, a lógica do “nós por nós” é imperante em muitos desses territórios.

O novo coronavírus além de causar mudanças sanitárias e econômicas, visibiliza o que vem sendo posto como prioridade e desafia a humanidade na construção de uma nova realidade; neste sentido a pandemia pode ser considerada como um acontecimento, na visão foucaultiana, e a ameaça de contágio pelo SARS-CoV-2 como um poderoso dispositivo. Foucault (2008)[45] afirma o acontecimento como aquilo que ao irromper provoca descontinuidades no âmbito do saber-poder, tornando certo discurso possível ao fazer mudar a épistème de uma época. E, quanto aos dispositivos, são máquinas, redes, sempre parciais, momentâneas (nunca universais e eternas) que respondem por certos efeitos na medida em que se encontram em processo contínuo de produção de objetos (BARROS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009)[46]. Dispositivo, portanto, que questiona o direito à vida, o direito à dignidade (DUDH, 1948)[47], questiona a função do Estado, nossa capacidade empática e os nossos processos de escolha diante da ameaça de morte. O coronavírus dá visibilidade às distintas realidades marcadas pela desigualdade social, como no caso do Brasil. Como ressalta o filósofo português José Gil (2020)[48], a pandemia não é sobre o medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.

  1. COVID19NasFavelas

A cidade do Rio de Janeiro é a que possui a maior quantidade de pessoas morando em favelas no país, representando 22,03% da população do estado. Comparando o Censo de 2010 com o Censo 2000, ocorreu um crescimento de 27,5%. Logo, considerando as proporcionalidades, é possível que tenhamos atualmente mais de 30% de pessoas habitando as favelas na capital do estado[10]. Desde o início da pandemia na cidade do Rio de Janeiro, datada de 12 de março de 2020, a partir do início da transmissão comunitária, até a finalização deste manuscrito (17 de maio), dois meses depois, não há um plano de contingência específico por parte do governo federal, estadual e nem municipal para contenção da contaminação pelo vírus nas favelas, ainda que haja importantes proposições legislativas nesse sentido, como o PL 1000/2020 na Câmara Federal; 1755/2020 na Câmara dos Vereadores do Rio; 2200/2020 e 2568/2020 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Todos os PLs versam sobre planos de atenção emergencial às favelas, na compreensão da importância de que, diante da pandemia, o Estado assuma a responsabilidade por garantir o mínimo para uma quarentena com dignidade. Isso passa por questões contempladas nos três PLs citados inicialmente, como acesso a água, comida e renda mínima, mas também por questões como a que é apresentada no último PL, apresentado à ALERJ, que prevê a proibição de operações policiais nas favelas enquanto durar a pandemia e o lockdown. Em maio, grandes operações voltaram a acontecer, com saldos de letalidade absurdamente assustadores. No Complexo do Alemão, em uma única operação, foram 12 pessoas assassinadas pela polícia, por exemplo.[11]

Enquanto isso, na ausência de ações efetivas dos governantes e com o aumento progressivo de casos e mortes, outro setor das favelas também tem apresentado medidas de “combate” ao coronavírus. O tráfico de drogas, em vários locais, fez recomendações fortes pelo isolamento social, proibindo a ocupação de vias públicas dentro de favelas e aglomerações[12]. Em Acari, o tráfico de drogas estaria usando carro de som, chamado de Carro da Lapada, para avisar aos moradores que não é tempo de férias, mas de proteção, definindo os parâmetros para o toque de recolher e indicando quem está habilitado a sair nas ruas. Esse carro também estaria monitorando aglomerações e fazendo ameaças - as lapadas, gíria local para falar de espancamentos - no caso de descumprimento das recomendações, visto que “se você não abraçar o papo, o papo te abraça”[13]. 

Compreender a realidade reticular e multidimensional nos ajuda a avançar numa postura mais propositiva sobre a realidade das favelas, que são territórios heterogêneos, onde muitas realidades e marcadores sociais coabitam. É importante entender também que problematizar a realidade das favelas não significa abordar somente questões relativas à precariedade e à pobreza. Os moradores das favelas brasileiras reúnem um poder de consumo de R$ 119,8 bilhões por ano, massa de rendimento que supera países como o Uruguai, segundo a pesquisa “Economia das favelas” realizada pelo Instituto Locomotiva e DataFavela[14]. Diante desse cenário, cabe ressaltar a potência da favela no que tange ao poder de resistência, articulação comunitária, solidariedade e engajamento social. Acompanhando o percurso de ações tomadas em relação ao coronavírus são notórias as articulações realizadas nesses territórios a ponto do reconhecimento em 31 de março de um dos ministros da saúde do período, Luiz Henrique Mandetta:

Parabéns as comunidades do Rio de Janeiro. Parabéns as favelas, as comunidades e eu as conheço. Estudei aí. Estudei aí. Fiz ação voluntária tanto ali no Vidigal, quanto na Rocinha quando eu era acadêmico de medicina. Outro dia, fui lançar o programa de doenças sexualmente transmissíveis lá na Rocinha com jovens de comunidade. Parabéns Maré, parabéns pelo trabalho que vocês estão fazendo e o exemplo de dignidade, de comportamento, de inteligência. Da aula de sabedoria que vocês estão dando. Na dinâmica, Heliópolis em São Paulo, todas elas. Paraisópolis. Todas elas. Eu falo do Rio de Janeiro porque fiquei 10 anos naquela cidade.[15]

Em 19 de março, parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde, liderado pelo ministro acima citado, e pelos governantes brasileiros diante da pandemia que se aproximava do nosso país não incluíam as favelas[16]. A primeira tentativa de organização das demandas desses territórios veio, não por acaso, da coalizão entre lideranças do Complexo do Alemão, da Cidade de Deus, do Complexo de Favelas da Maré, da Rocinha e do Santa Marta, com pesquisadores da UFRJ, PUC-Rio e UERJ, em diálogo com a FIOCRUZ[17]. O plano reúne iniciativas na dimensão preventiva, indica necessidade de protocolos para atendimentos médicos, aponta parâmetros para a coordenação das ações territoriais e defende a construção de um Gabinete de Crise de Atenção às Favelas. Ainda que, quando o plano foi apresentado e entregue ao poder público, ações pontuais já estivessem sendo feitas por esse, a articulação de um plano que pensasse as favelas na sua amplitude e diversidade e propusesse saídas organizativas e políticas para o enfrentamento à pandemia só se deu no encontro de pesquisadores (majoritariamente de instituições públicas) com lideranças territoriais. O papel das universidades e institutos de pesquisa nesse momento passa pela reafirmação da sua função social e fortalecimento das políticas que estejam alinhadas com o interesse da sociedade brasileira, sem perder de vista a necessidade de tratar desigualmente os desiguais na medida de sua necessidade; ou seja, na atenção aos princípios de isonomia para o acesso aos direitos, assegurado pela nossa Constituição Federal de 1988.

Uma das principais medidas propostas no plano supracitado é referente à articulação de uma rede de apoio social. A partir da compreensão de que a pandemia traz consigo o empobrecimento para muitas famílias, torna-se essencial a defesa de medidas de solidariedade, como a distribuição de cestas básicas, água potável, máscaras e luvas para proteção individual, materiais de higiene e afins, mas também a luta por políticas públicas de acesso à renda, como a liberação do auxílio emergencial. Ainda em abril, a Câmara dos Deputados votou e aprovou a liberação do benefício, cujos valores variam entre R$ 600,00 e R$ 1200,00.  O início do pagamento da primeira parcela do auxílio emergencial deu-se em 09 de abril; dentre as burocracias estabelecidas para o acesso ao benefício, estavam o acesso à internet, por meio de site e aplicativo,  e o uso de conta bancária: dois pontos dificultadores considerando a realidade brasileira. O resultado foi a formação de imensas filas e aglomerações nas agências da Caixa Econômica Federal e Lotéricas, o que fez com que muitas famílias passassem semanas tentando receber seu benefício, sem sucesso.

As desigualdades sociais aqui discutidas possuem íntimas relações com processos políticos históricos e contemporâneos, que existem desde muito antes da pandemia e existirão ainda após seu fim. Dessa forma, é possível que a vivência da pandemia no Brasil potencialize uma crise sem precedentes. O Ministério da Economia divulgou em uma perspectiva tida como otimista, uma queda de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB)[18] Instituições financeiras como o JP Morgan e BTG Pactual, projetam queda de 7% no PIB brasileiro[19[20]. Evidencia-se que considerando a expectativa atual do Governo Federal, o país irá sofrer a maior queda do PIB na história, visto que valores próximos ocorreram somente no ano de 1981, com a diminuição de 4,39% no valor do PIB. 

Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal, Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4%[21]. Há uma série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado. Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia[22]. Dados revelam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros com menos negros, em maioria absoluta[23]. Ainda assim, o Ministério da Saúde responde que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número de testes a partir dos grupos raciais. Segundo dados da ONG Open Knowledge Brasil[24], apenas o Espírito Santo tem feito os boletins epidemiológicos divulgando os dados referentes ao marcador raça/cor. No Rio de Janeiro uma ação judicial foi protocolada para determinar que os marcadores de raça/cor de infectados e mortos fossem registrados, para que se possa produzir dados mais concisos sobre os grupos vulneráveis à pandemia. A decisão do Juiz Federal Dimitri Wanderley responsabiliza a União pela expedição de diretrizes para o preenchimento obrigatório dos dados em todo o país.[25] A decisão ainda não surtiu efeito nos resultados que são divulgados. Sem orientação geral e supervisão, seguimos operando na lógica de ocultação de dados para a construção de realidades alternativas e falsas, onde marcadores de raça e classe não influenciam nos casos de morte e contágio. Isso se repete em várias outras regiões de favelas ou periferias, não só no Rio de Janeiro.

É importante marcar, nesse momento, que a subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no caso de favelas e periferias, dado que além da superlotação da rede de saúde pública, o acesso aos testes ainda é muito caro na esfera privada. Sem o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, expansão das testagens e aumento de vagas nos Centros de Tratamento públicos, é evidente que a população mais afetada será a mais pobre. Ao mesmo tempo em que os dados oficiais são divulgados, os moradores têm conduzido suas próprias pesquisas sobre contaminados e mortos[26], tal como medidas de combate às fake news. Em 11 de maio, a mídia comunitáriaVoz da Comunidade, do Complexo do Alemão, lançou um aplicativo com informações sobre o novo coronavírus no intuito de viabilizar o acesso em tempo real a informações confiáveis e verificação de notícias, o aplicativo foi realizado com financiamento do Consulado Americano no Rio de Janeiro[27]. No que concerne à confiabilidade das informações em relação aos contágios ocorridos na Rocinha e na Maré, há estudos que apontam que o número de mortes pode ser até três vezes maior que o que foi divulgado pelos órgãos oficiais. As mortes nesses territórios já superam os números de muitas cidades na região metropolitana do Rio de Janeiro, como Niterói ou São Gonçalo. A articulação de redes para a defesa e garantia de direitos da população periférica e favelada tem sido forte. No início de abril, moradores da favela do Santa Marta higienizaram ruas, a partir de articulação com o empresariado local, como afirma um morador: "Conversei com uns amigos meus, eles pagaram os equipamentos e eu comprei luva, materiais simples, e consegui algumas doações para materiais químicos, que vão acabar. A nossa favela é a primeira do Brasil sanitizada com os mesmos equipamentos da China, pelos moradores"[28], e que outras favelas fizeram contato para aprenderem a usar os equipamentos. Outros atores, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público Estadual, também realizaram importantes ações; em 08 de maio, quase dois meses após o começo da pandemia, as entidades conseguiram na justiça uma liminar que obriga o poder público a regularizar o abastecimento de água nas favelas. São pequenas grandes vitórias como essa que caminham rumo a um horizonte onde a favela possa viver com dignidade.

Campanhas de arrecadação de alimentos têm sido mobilizadas por várias instituições, como a Central Única das Favelas (CUFA) e o Instituto Marielle Franco, este lançou um mapa para dar visibilidade às iniciativas de combate contra o coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. As mobilizações também têm ocorrido com frequência através das lives musicais em parceria com artistas e empresas privadas. No dia 02 de abril, foi lançada a campanha Mães de Favela, pela CUFA, construída a partir de pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva e Data Favela, que salienta que as favelas do Brasil têm 5,2 milhões de mães, na qual mais de 70% ficará sem renda durante o isolamento social. A pesquisa publicada na BBC News Brasil, ressalta o lugar de vulnerabilidade e o papel social das mulheres moradoras de favela no sustento e cuidado dos seus filhos e idosos, a partir de um olhar interseccional:

Os mais frágeis da sociedade são os moradores de favela. Os mais frágeis entre os favelados são as mulheres. E os mais frágeis entre as mulheres são as mães. Por que? Porque elas cuidam dos filhos, muitas vezes trabalham no emprego informal, costurando, fazendo unha, e ainda cuidam dos velhos. Porque todos os velhos, 90% dos idosos das favelas, são as mulheres que cuidam: sejam noras ou sejam filhas.[29]

Essa situação é um concreto exemplo do que expressa o conceito de necropolítica, formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018)[49]. No Rio de Janeiro, a expressão já vem sendo explorada pelos que discutem a questão da política de segurança pública, da guerra às drogas, do extermínio da juventude negra e de tantos outros assuntos que estão relacionados ao modo pelo qual o Estado se relaciona com os territórios de favela e periferia. Acontece que, aplicada ao momento de pandemia, podemos colocar em outro patamar analítico o conceito, expandindo a compreensão de um governo da vida que se faz presente nesses locais exterminando das maneiras mais convencionais (pelas operações policiais ou encarceramento em massa) mas também a partir de uma construção histórica marcada pelas ausências, pela desresponsabilização do Estado, pelos impedimentos ao desenvolvimento, pela falta de investimento e planejamento específico, pela ocultação dos dados sobre a realidade de um povo. Ganha um contorno especial, portanto, a compreensão de uma política de morte que se opera ativamente, ao passo que não se garante as condições dignas para o exercício do cuidado, que muitas vezes contradiz as orientações dos órgãos de saúde e especialistas; mas que também se apresenta numa dimensão mais ardilosa, no exercício da desresponsabilização sobre a vida dos mais vulneráveis, no desinvestimento que tem sido feito nos últimos anos nas medidas de proteção social, na desregulamentação do mundo do trabalho e no congelamento do investimento em áreas sociais como ciência e tecnologia e saúde pública, um dos mais duros efeitos dos tentáculos neoliberais na governamentalidade estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia tem sido um importante dispositivo para fazer ver e falar a dura realidade de desigualdade das favelas e periferias no nosso país. Mas, será que ela coloca mais uma vez no mapa essas favelas? A pandemia faz o Brazil descobrir que há gente que passa fome no Brasil?[30] Vamos lá: a “redescoberta” das favelas que tem acontecido na grande mídia e em ações governamentais não acontece exatamente pela preocupação com a favela e seus moradores em si. Lá no começo da pandemia, algumas pessoas falavam que o grande problema do Brasil seria as favelas, em comentários puramente racistas, numa lógica que imaginava que as favelas contaminariam o restante do país. Essa “redescoberta” então tem se dado numa preocupação que é mais intensa com os que vivem fora desses espaços do que com os que vivem ali. Como se favelados e periféricos fossem o grande perigo para a expansão do coronavírus. Será que essas análises consideram que os rastros da primeira morte mostram que o caminho é o oposto, muitas vezes? Ou que os dados indicam que, ainda que "quem pague a conta" sejam os mais pobres, negros, favelados e periféricos, a culpa do contágio não está nessas pessoas, mas em governantes que resistem em lidar com sua responsabilidade e sequestraram nosso país para interesses privados, privatistas, de poucos (LÖWY, 2020)[50]. As favelas, na contramão, são o “setor social” que mais está organizado e ativo no combate ao coronavírus. A análise do mapeamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco[31], revela dezenas de territórios organizados em ações territoriais. Ao mesmo tempo, a iniciativa de pensar políticas públicas para o enfrentamento ao caos que está posto também tem sido das favelas, articuladas em seus coletivos e lideranças. No começo de abril, por exemplo, lideranças da Rocinha entregaram ao governador Wilson Witzel (PSC-RJ) um plano com 17 medidas de combate à pandemia na favela[32]. Além disso, há outros planos comunitários em curso. Em diversas favelas no Rio de Janeiro, como Chapéu Mangueira e Babilônia, há iniciativas de atendimentos psicológicos aos moradores, organizadas por lideranças comunitárias em diálogo com voluntários.[33]

Em tempos de incertezas, o vírus exige de nós paciência, porém “quem tem fome, tem pressa” - essa sentença torna-se um exemplo crucial que demanda reflexões acerca do modo organizativo e, portanto, das desigualdades estampadas na sociedade brasileira.  O coronavírus faz ver as particularidades das favelas e periferias e a negligência do poder público diante das demandas dos mais pobres. Exclusões, habitações precárias, rendas comprometidas pelos trabalhos interrompidos e, pelo que se observa, não se trata apenas de medidas de isolamento dessas pessoas, mas também da suspensão de serviços para prestarem que os impedem de trabalhar. A pobreza se alastra.

Uma preocupação é compartilhada tanto pelos moradores e ativistas quanto pelo poder público. O empobrecimento e a diminuição da qualidade de vida dos moradores de favelas é um grande problema. A maior divergência é sobre as saídas a serem apresentadas: se, por um lado, defende-se a adoção de campanhas de conscientização, lockdown e manutenção do auxílio emergencial, por outro há acenos para saídas que podem provocar ainda mais violações de direitos. O exemplo mais extremo disso é a tentativa de militarização da questão social empreendida pelo Prefeito do Rio de Janeiro, que solicitou uma ação federal para fechar comércios das favelas, apontando, inclusive, que dificilmente conseguirá lidar com o local sem a mediação da Polícia Militar e seu armamento[34]. A demanda de presença que se faz do poder público aqui não passa pelo pedido de mais truculência, mas pela construção de mecanismos que garantam ao mesmo tempo a proteção integral às famílias nesses territórios e seu direito à quarentena com dignidade (com distribuição de itens de alimento, higiene, sanitização das vias públicas, liberação de redes de internet, liberação de auxílio emergencial) e a construção de planos de acesso aos serviços de saúde por todos que demandarem, com testagem, orientação, internação e cuidados para todos. Uma vida saudável tem sido incompatível com a estrutura capitalista posta. Em condições de quarentena os sujeitos moradores de favelas e periferias padecem e mais do que nunca, apontam que a igualdade não existe, nem perante a lei.

Apesar de tanto descaso e violação de direitos, as favelas reconhecem suas necessidades e ainda mais sua força; mobilizam seu capital humano e desenvolvem ações de cunho preventivo e emergencial, assim como solicitam e, à sua maneira, convocam atores importantes para responsabilizar o poder público na garantia de direitos à vida, enquanto esse aparenta nada entender sobre equidade. Fica evidente o importante papel do associativismo comunitário, seja nas doações, seja na proposição de políticas públicas, constituindo-se um ponto de inflexão, um desvio no curso normal das subjetividades moduladas pelos princípios do neoliberalismo, com o indicativo de que as melhores apostas de saídas para a crise são organizadas no encontro com o coletivo. Boaventura Sousa Santos[35] aponta que a reinvenção da democracia passa por uma expansão da democracia nessa dimensão comunitária, nos bairros, na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, no combate aos ideais tão fortes de empreendedorismo e competitividade que hoje imperam. As saídas encontradas pela população que sofre são as ações de solidariedade, de conscientização, de reivindicação específica, as quais são extremamente importantes, no entanto, só o Estado é o garantidor de direitos por meio da criação de políticas públicas localizadas.

Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e quem morre, não só no estado do Rio de Janeiro, apesar desse fazer parte do palco. Ressaltamos que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades distorcidas, sendo que tais marcadores  não têm sido levados em conta pelas estatísticas e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas  – o Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da desigualdade.

Luana Almeida de Carvalho Fernandes é Psicóloga, especialista em Responsabilidade Social e Gestão de Projetos Sociais, mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: luanaacfernandes@gmail.com

Caíque Azael Ferreira da Silva é Bacharel em Psicologia e discente do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CAPES). Pesquisador no Dicionário de Favelas Marielle Franco (Fiocruz). E-mail: caiqueazael12@gmail.com

Cristiane Dameda é Psicóloga, especialista em Proteção de Direitos e Trabalho em Rede, mestra em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CNPq). E-mail: crisdameda@gmail.com.

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho é Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica, mestre e doutor em Psicologia. Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia e ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq). E-mail: ppbicalho@ufrj.br

 

Pesquisas, relatórios e dados

Coronavírus nas favelas (DataFavela)

O estudo realizado em março de 2020 reúne algumas informações preliminares sobre a situação do Coronavírus nas favelas, a partir de 1142 entrevistas em 262 favelas de todo o Brasil.  O estudo é conduzido pelo Data Favela, que surge da parceria entre Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas – CUFA e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. As pesquisas do Data Favela são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do Instituto Locomotiva.

Sobre a pesquisa

"O corona atinge a população de forma desigual. Existem aqueles que, ainda bem, conseguem ficar no conforto do seu lar, com a geladeira cheia, fazendo home office. No entanto, a pesquisa deixa claro que existe milhões de brasileiros, autônomos, e com a geladeira vazia", avalia Celso Athayd e, Fundador da CUFA e do Data Favela e coordenador do movimento #FavelaContraOVirus “Criamos o movimento “Favela Contra o Vírus” com o objetivo de impedir que essas desigualdades provoquem ainda mais mortes nas favelas brasileiras, esse território com mais de 13,6 milhões de pessoas que não tem as mesmas condições de quarentena que os moradores do asfalto” - 'Celso Athayde, fundador da CUFA. 

Coronavírus nas favelas divulg rev2.pdf.pdf-01.jpg
Coronavírus nas favelas divulg rev2.pdf.pdf-06.jpg

Acesse o material

Para ter acesso aos resultados completos da pesquisa, clique aqui.

 

Infográficos da Desigualdade - Casa Fluminense | Série COVID-19

A ONG Casa Fluminense (RJ) deu início à série especial dos Infográficos da Desigualdade. A cada semana serão compartilhados dados, propostas e reflexões sobre a realidade de desigualdades na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com o olhar atento para a precarização e a falta de acesso a direitos básicos que marcam historicamente o cotidiano das periferias.

O contexto da pandemia do COVID-19 evidenciou ainda mais o papel das políticas públicas de garantir segurança para a população, principalmente para os economicamente mais vulneráveis. Começando o papo falando sobre habitação. As principais estratégias para conter o avanço da disseminação da COVID-19 têm sido o distanciamento social e o isolamento domiciliar, para além das práticas recorrentes de higiene. Seguimos defendendo o #FiqueEmCasa, entretanto essas medidas acendem um alerta para parte da população nas periferias da RMRJ que vivem a realidade do adensamento populacional excessivo.


Quartos com mais de 3 pessoas é a realidade de 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio, segundo o Censo 2010 e o IPS 2018. Japeri é o município que possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. Jacarezinho lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, CDD, Zona Portuária e Santa Cruz.

Em um cenário no qual muitas destas casas sequer possuem ventilação adequada, é necessário que o poder público garanta subsídio para compra de material de construção e assistência técnica para essas populações. A adaptação emergencial sobre arejamento não deve ser responsabilidade dessas famílias. Em casos mais graves, é preciso garantir moradias adequadas ou improvisadas em outro espaço, como hotéis, escolas e universidades.

 

Infográfico1.jpg

 

As chuvas do início do mês de março, por exemplo, prejudicaram diferentes áreas do Rio de Janeiro. Hoje, os moradores de Magé, na Baixada Fluminense, praticam o isolamento social dentro de casas interditadas pela Defesa Civil por risco de desabamento.

Segundo os dados do Infográfico da Desigualdade, analisados pela Casa Fluminense, cerca de 6.800 em Magé tem mais de três moradores dividindo o mesmo quarto. Com a pandemia do Covid- 19, outro ponto preocupante é a situação daqueles que ainda precisam trabalhar. Com a diminuição dos transportes públicos, é preciso fazer um longo caminho a pé para pegar uma condução. Confira a matéria completa.

Além disso, na 2ª série dos Infrográficos da Desigualdade, a Casa Fluminense demonstra que o avanço do Covid-19 no Brasil e no mundo agravou a perda de renda familiar e expôs ainda mais a vulnerabilidade dessas famílias que já se sustentavam com muito pouco. Os estudos já têm apontado o aumento do número de famílias na linha da pobreza e abaixo dela. Vimos também o crescimento de casos de violência doméstica após as medidas de isolamento social. Atentos a isso, o segundo Infográfico da Desigualdade vai tratar da cobertura da política pública de assistência social nas cidades da metrópole do Rio, organizada por meio do Sistema Único de Assistência Social - SUAS.

Nas cidades, os Centros de Referência de Assistência Social - CRAS são a porta de entrada para prevenção e atendimento indispensável à proteção social das pessoas mais vulneráveis e que vivenciam situações de violação de direitos. Estamos falando de mulheres e crianças vítimas de violência, idosos, pessoas com deficiência, jovens em medida socioeducativa, agricultores familiares, pescadores e demais pessoas que dela necessitarem.

InfrográficoCRAS.jpg

A realidade é que a rede de CRAS em alguns municípios da Região Metropolitana do Rio está operando muito acima da sua capacidade. Nas cidades de Nova Iguaçu e Rio de Janeiro há menos da metade dos CRAS necessários para atender as famílias residentes, de acordo com dados do Ministério da Cidadania de fevereiro de 2020. As unidades em São João de Meriti, Caxias e São Gonçalo também estão operando acima da capacidade. A Norma Operacional Básica do SUAS estabelece até 5.000 famílias por centro de referência.

Olhar para esta realidade, em pleno contexto de pandemia e distribuição da Renda Básica Emergencial, é refletir sobre seus impactos na abrangência do atendimento à população em situação vulnerável que inclui a realização da inscrição das famílias no tão citado Cadastro Único.

Como medida a curto prazo, já sabemos que serão disponibilizados aplicativos e telefones para o cadastro de quem não está na base e se enquadra nos dois perfis: trabalhador informal recebe até meio salário mínimo ou possui renda familiar de até três salários mínimos. Certamente, algumas perguntas ficam: Que condições essas famílias mais vulneráveis dispõem para realizar sua inscrição por esses meios? Quantas famílias já poderiam estar cadastradas com a priorização da implementação das normas determinadas pela Política Nacional de Assistência Social?

A sobrecarga na rede de CRAS precariza a estruturação e a prestação do atendimento ofertado, tanto para a população que mais precisa como para os profissionais do SUAS. Por isso, é preciso garantir a construção de mais CRAS e Centro de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS e a consequente contratação de mais profissionais para a ampliação do atendimento socioassistencial. A ampliação do alcance das políticas de proteção social básica e especializada são passos fundamentais para a redução das desigualdades e das injustiças sociais.

InfográficosDaDesigualdade
#CoronaNasPeriferias
#COVID19NasFavelas

=========
A série "Infográficos da Desigualdade" faz parte da pesquisa da nova publicação Mapa da Desigualdade | Região Metropolitana do Rio de Janeiro 2020, que será lançada pela Casa Fluminense em abril. Em breve, mais infos!

"Torneiras secas para enfrentar o novo Coronavírus no Rio de Janeiro", da Ouvidora da Defensoria Pública (RJ)

Na última semana, a Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro fez um comunicado à população pelas redes sociais pedindo informações sobre onde está sem água no Rio de Janeiro. O objetivo era indicar à Defensoria onde atuar com urgência para que todas as pessoas tenham condições de seguir as orientações das autoridades sanitárias e, assim, colaborar para a contenção da pandemia de Covid-19, o novo Coronavírus.

Em apenas 5 dias (de 18 a 23/3), foram recebidas 475 denúncias de problemas de abastecimento em 140 lugares diferentes. São majoritariamente favelas e periferias de 14 municípios do estado, localizados principalmente na região metropolitana.

O relatório parcial com as informações desses primeiros 5 dias  já foi repassado aos núcleos especializados da Defensoria Pública. O Núcleo de Defesa do Consumidor já está buscando, com apoio do Ministério Público, uma solução emergencial extrajudicial junto à CEDAE.

Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.

ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)!

Bom Dia Rio: Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água.

O formulário de envio das informações sobre onde está sem água no RJ continua aberto para novas respostas: acesse aqui.

Às favelas e periferias, desejamos força! Saudamos as entidades da sociedade civil que também estão lutando. Contem com a Ouvidoria.

Equipe da Ouvidoria da Defensoria do RJ.

Operações policiais em tempos de coronavírus, do Observatório da Segurança do Rio de Janeiro

Observatório da Segurança do Rio de Janeiro lança o estudo Operações policiais em tempos de coronavírus: os primeiros efeitos da epidemia nas políticas de segurança

O combate ao coronavírus teve um efeito importante sobre as operações policiais, que há décadas constituem o centro da política de segurança no Rio de Janeiro. A Rede de Observatórios comparou dados sobre o policiamento antes e depois do decreto de emergência no estado, de 16 março, e também as informações do último mês com março de 2019.

De 1 a 15 de março, foram monitoradas 58 operações  (grupo de policiais destacados para cumprir um objetivo específico e pontual) e 81 ações de patrulhamento (rondas de rotina, ou o chamado baseamento). 

A partir do decreto de 16 de março e até o dia 31 deste mês, as operações diminuíram 74% (15 ao todo)  e os patrulhamentos, 49% (total de 41). 

Menos operações, menos vítimas: em todo o mês de março de 2020, houve 15 mortes em ações policiais. Em 2019, foram 36. Ou seja: as incursões policiais em favelas tem, sim, um efeito importante na mortalidade.

A participação da Polícia Militar em ações diminuiu 30%, comparando março de 2020 com o mesmo mês em 2019. Já a Polícia Civil teve aumento de 116% nas suas atividades. 

A motivação das ações também mudou de um ano para outro: neste último mês, houve redução de 43% de operações de repressão ao tráfico de drogas, em relação a março de 2019. Aumentaram as ações de cumprimento de mandado (105%) e voltadas a crimes contra o patrimônio (190%). A categoria “outros”, que inclui apoio a medidas de combate à pandemia, cresceu 300%!

Na primeira semana de abril, as operações em favelas voltaram a ocorrer em grande número na cidade do Rio de Janeiro. É inadmissível que os moradores dessas localidades, que vem enfrentando a pandemia em condições precárias, voltaram a se preocupar também com a sua segurança durante operações policiais.

CONFIRA O ESTUDO COMPLETO!

 

Operações1.jpeg
Operações4.jpeg

 

 

 

 

 

 

Operações2.jpeg
Operações5.jpeg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Operações3.jpeg
Operações6.jpeg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pretos têm 62% mais chance de morrer por Covid-19 em São Paulo do que brancos, por Observatório Covid-19

Artigo originalmente publicado no Jornal G1, em 28 de abril de 2020.

Pardos têm risco 23% maior. Dados são resultado de grupo de trabalho entre Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo.

Por Carolina Dantas, G1

Os pretos moradores da cidade de São Paulo têm uma chance 62% maior de morrer por Covid-19 do que os brancos. Os pardos têm 23% mais risco. Os dados são resultado de uma análise científica das mortes registradas na cidade até 17 de abril, uma parceria entre o grupo de cientistas Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo.

Karina Ribeiro, epidemiologista e professora-adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, é autora do estudo e precisou separar os dados por faixa etária e raça/cor, quantidade total de moradores para cada uma dessas informações, além de fazer um ajuste matemático para chegar à taxa de risco por raça na cidade.

A classificação segue um padrão de raça/cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pardos e pretos são considerados como negros em conjunto. Os números também aparecem no boletim epidemiológico da cidade divulgado nesta terça-feira (28).

Mortalidade raça e cor-SP.jpg

Mortalidade por raça/cor em SP — Foto: Carolina Dantas/G1

"Peguei o número de toda a população de São Paulo por faixa etária, o número de óbitos por Covid-19, o número dos residentes por município. Aí, no final, calculamos a taxa de mortalidade ajustada por idade, uma forma de comparar levando em consideração a estrutura toda. Você tem grupo racial com mais gente idosa. Na realidade, a maioria das doenças precisamos fazer esse ajuste para fazer a conta", explicou.

Em números absolutos, temos mais mortes em pacientes brancos. Essa única informação, no entanto, não representa que são eles os que têm o maior risco de perder a vida. O grupo de cientistas leva em consideração as características do vírus Sars CoV-2, a pirâmide etária de cada raça/cor na cidade, entre outros fatores, e assim ajusta o real risco de vida para o grupo racial.

Bairros mais afetados

Mapa mortalidade - SP.jpg

Mapa de mortes por distrito divulgado pela prefeitura com as mortes confirmadas ou suspeitas de coronavírus até o dia 24 de abril. — Foto: Reprodução/Twitter

Água Rasa, Pari, Artur Alvim, Limão e Alto de Pinheiros são os bairros que registraram o maior número de mortes suspeitas ou confirmadas pelo novo coronavírus a cada 100 mil habitantes na capital paulista, segundo o mapa epidemiológico divulgado nesta segunda-feira (27) pela Prefeitura de São Paulo. De acordo com o mapa, as mortes continuam concentradas na periferia da cidade.

Os dados mostram que, na Água Rasa (Zona Leste), foram 47,2 mortes registradas por grupo de 100 mil pessoas na semana epidemiológica terminada em 24 de abril. O bairro registrou 39 mortes confirmadas ou suspeitas neste período e tem 82.564 mil moradores, segundo os números da subprefeitura local.

No Pari, também na Zona Leste, foram registradas 9 mortes confirmadas ou suspeitas de coronavírus até 24 de abril, e também chega a incidência de 47,2 mortes por grupo de 100 mil.

Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, continua sendo o distrito com maior número absoluto de mortos em São Paulo, segundo o mapa da Prefeitura. O bairro passou de 54 para 81 mortes por coronavírus confirmadas ou suspeitas. Crescimento de 39% em apenas sete dias. Por grupo de 100 mil habitantes, a Brasilândia tem 28,7 mortes.

Em toda a cidade de São Paulo, a prefeitura registrou 2.688 óbitos confirmados ou suspeitos na semana epidemiológica até 24 de abril.

SP: Mortes por 100 mil habitantes

  • Água Rasa - 47,2
  • Pari - 47,2
  • Artur Alvim - 44,8
  • Limão - 42,7
  • Alto de Pinheiros - 41,5
  • Belém - 40,6
  • Liberdade - 39,8
  • Vila Formosa - 39,3
  • Campo Belo - 37,6
  • São Mateus - 37,3

Em Artur Alvim, ainda na Zona Leste, foram 45 mortes, alta de 50% em uma semana. O bairro está na terceira posição em concentração de óbitos, registrando 44,7 mortes por 100 mil pessoas.

Mesma situação do Limão, na Zona Norte, que acumulou 34 óbitos por coronavírus na última semana, uma taxa de 42,7 mortes por 100 mil habitantes.

Na Zona Oeste, Alto de Pinheiros, a taxa ficou em 41,5, - em números absolutos foram 17 mortes.

 

Em duas semanas, número de negros mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil, por Agência Pública

Artigo originalmente publicado em Agência Pública, em 06 de maio de 2020.

Em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por Covid-19 no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes.

Já o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor: nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. E o número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida.

A explosão de casos de negros que são hospitalizados ou morrem por Covid-19 tem escancarado as desigualdades raciais no Brasil: entre negros, há uma morte a cada três hospitalizados por SRAG causada pelo coronavírus; já entre brancos, há uma morte a cada 4,4 hospitalizações.

Mortes covid crescem entre negros.png

Os dados são resultado de uma análise feita pela Agência Pública com base nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde que possuem informações de raça e cor de internações e mortes por coronavírus. O Governo Federal divulgou esses números atualizados apenas até 26 de abril.

Para cada morte em Moema, quatro morrem na Brasilândia

Em São Paulo, na maior cidade do país e a que conta maior número de mortes por Covid-19, são os bairros onde a população negra está mais concentrada que trazem a maior quantidade de óbitos pela doença. Segundo a Pública apurou, dos dez bairros com maior número absoluto de mortes causadas pelo coronavírus, oito têm mais negros que a média de São Paulo.

O bairro com maior número absoluto de mortes é a Brasilândia, com 103 casos. A região tem cerca de 50% da população negra — a média de São Paulo é de 37%. No extremo oposto, o bairro com menos negros da cidade, Moema, teve 26 mortes. A média de negros na região é de menos de 6%.

Mesmo ajustando-se as mortes à população, os dois bairros têm realidades diferentes: em comparação ao número de moradores de Moema, Brasilândia tem cerca de 25% a mais de mortes. A Pública considerou os dados do último Censo (2010) para os cálculos de população e raça/cor dos moradores.

Bairros mais mortes são paulo.png

Bairros da periferia e com mais moradores negros que a média de São Paulo têm visto os casos de Covid-19 dispararem — e com eles, as mortes. O Jardim Ângela, bairro com maior porcentagem de negros de toda a cidade, viu as mortes por coronavírus quase que triplicarem em cerca de duas semanas. Grajaú, Parelheiros, Itaim Paulista, Jardim Helena, Capão Redondo e Pedreira, todos bairros com maioria da população negra, mais que dobraram as mortes por Covid-19 nesse mesmo período.

O avanço do coronavírus na periferia de São Paulo vem encurtando a distância de mortes entre bairros mais ricos, onde surgiram os primeiros casos de Covid-19. Em 17 de abril, bairros com menos população negra que a média da cidade tinham 13% a mais de mortes que as regiões onde moram mais negros. Duas semanas depois, essa diferença caiu para 3%. Se a tendência se mantiver, os bairros onde vivem mais negros que a média da cidade devem ultrapassar os bairros onde vivem menos negros.

O jornalista Lucas Veloso, cofundador da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, mora em uma das principais avenidas de Guaianases, bairro localizado no extremo leste da cidade de São Paulo. Ele observa que o movimento de transeuntes no local aumentou nas últimas semanas, em comparação à semana do dia 24 de março, quando o governador João Doria (PSDB) instituiu a quarentena no estado. “Nas duas primeiras semanas [depois do anúncio do decreto], as ruas estavam de fato mais desertas. O movimento da feira que acontece às quartas, por exemplo, tinha caído muito. Havia poucas barracas, poucos feirantes. Mas depois da terceira e quarta semanas, percebi que isso mudou”, relata.

Segundo ele, parte da população local não conseguiu parar por questões de renda. “Muitos dos que moram nas periferias fazem parte dos serviços essenciais. Então, o transporte público de manhã, na estação de trem, não diminuiu tanto. São entregadores, enfermeiros, seguranças. Então, como é um bairro pobre, de periferia, que muitas pessoas estão sujeitas a subempregos, o bairro não consegue parar totalmente”, analisa o jornalista.

Agora, ele observa que até mesmo as pessoas que conseguiam ficar em casa relaxaram as restrições da quarentena. “As pessoas tinham a esperança, no começo, de conseguir o auxílio emergencial do governo e não precisar sair de casa. Só que tem todas essas burocracias que as pessoas não conseguiram resolver, muitas pessoas não têm qualidade de internet e não conseguiram baixar o aplicativo, aí o dinheiro do auxílio não vem. Isso também é um fator que faz as pessoas voltarem às ruas.”

Os locais onde vivem mais negros são justamente os com menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM). Os dez bairros com pior IDHM em São Paulo têm mais negros que a média da cidade. Já os dez com melhor IDHM têm menos negros que a média. Nos dez bairros com maior número absoluto de mortes, oito têm IDHM considerado médio, abaixo de 0,8. São justamente esses oito bairros onde a média de moradores negros está acima da média da cidade.

No Rio, bairros com mais negros que a média da cidade já acumulam mais mortes

Na capital carioca, os bairros com mais negros que a média da cidade já têm mais mortes em número absoluto que os bairros com menos negros.

O crescimento de casos na periferia e nas favelas levou essas regiões a registrarem cada vez mais falecimentos. Atualmente, Campo Grande, com mais de 50% de moradores negros, é o bairro com mais mortes. A região passou Copacabana, que antes era o local com maior número absoluto de falecidos pela Covid-19. Após Copacabana, Bangu e Realengo, dois bairros com maioria da população negra, ocupam o 3 e 4º lugar com mais mortes na cidade.

Bairros mais mortes rio de janeiro.png

A Rocinha, maior favela da cidade, já conta nove mortes nos dados oficiais. Médicos que atendem a comunidade contestam o número e apontam que já haveria 22 mortes na favela.

A relação entre quantidade de casos confirmados e mortes também é bastante diferente entre bairros ricos e pobres do Rio de Janeiro, o que pode apontar dificuldade de moradores das favelas e da periferia de fazerem exames. Na Rocinha, por exemplo, há mais que o dobro de mortes em relação aos casos confirmados que no Leblon. Os bairros com mais casos confirmados são Copacabana e a Barra da Tijuca.

No Amazonas, com colapso do SUS, brancos sobrevivem mais que negros

No Amazonas, entre as pessoas que desenvolvem quadros graves da Covid-19, são mais frequentes mortes de negros que brancos. Segundo a Pública apurou, a cada 2,4 negros em estado grave, há uma morte. Já entre brancos, uma morte foi registrada a cada 3,2 pacientes em situação grave.

Dados covid amazonas.png

O estado, que foi o primeiro a ter lotação máxima de unidades de terapia intensiva para pacientes com Covid-19, tem registrado um aumento mais expressivo entre negros em estado grave que entre brancos. No final de abril, em menos de uma semana, a quantidade de pacientes negros em situação grave mais que dobrou.

A maioria absoluta das mortes no Amazonas são de negros: mais de 13 negros morreram para cada falecimento de branco. A secretaria de saúde já registrou cerca de 850 doentes negros em situação grave e mais de 340 mortes. Já entre brancos, foram 81 casos graves e 25 mortes. Os dados de raça e cor foram atualizados em 29 de abril.

Ministério da Saúde diz que não há estudos que apontem raça como fator de risco

Apesar dos dados mostrarem que negros tiveram maior aumento de óbitos e registram mais mortes entre hospitalizados, o Governo Federal não divulga em detalhes essas informações. Não há, por exemplo, a informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor ou o número de testes em negros, brancos e outros grupos.

Como explica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, não divulgar esses dados impede que profissionais de saúde, a imprensa, pesquisadores e mesmo a população acompanhem se a subnotificação em negros é maior que em brancos. A médica explica que negros dependem mais do Sistema Único de Saúde (SUS) — uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicava que, em
2008, a população negra representava 67% dos usuários do SUS.

“Se o acesso ao exame está difícil no sistema público, como você consegue saber se um paciente negro confirmou ou não a doença? E se há pessoas que sequer estão tendo a chance de serem atendidas, inclusive para internação, sabemos que a Covid-19 está subnotificada na população negra, mas não sabemos quanto”, analisa.

Foi o grupo de trabalho de saúde da população negra, da qual Borret faz parte, que pediu ao Ministério da Saúde que publicasse dados de raça/cor de mortos por coronavírus. O governo só passou a divulgar os dados no boletim referente a 11 de abril, sem detalhar dados de casos confirmados ou de testes. Questionado sobre a falta de dados mais completos, o ministério, já sob a gestão de Nelson Teich, chegou a afirmar que não há “estudos técnicos ou científicos que apontem cor ou raça como fator de risco da doença”.

“Nós sabemos disso, o problema não é raça, mas o racismo, que dificulta o acesso de negros à saúde. O acesso à saúde da população negra é muito pior que da população branca no país. E a gente não tem tempo, o coronavírus não dá tempo para fazermos um trabalho pedagógico sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Precisamos que o Ministério esteja atento a essas questões o tempo todo, como está escrito na Lei.”, critica Borret.

Para Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR), a ausência de dados sobre raça e cor é um problema para a análise do impacto que a Covid-19 tem em diferentes grupos. “Em alguns lugares começaram a fazer análises sobre como a população negra tem sido afetada de forma desproporcional, como nos Estados Unidos, por exemplo. Isso pode estar relacionado a diversos outros fatores, mas é importante ter o dado para começar a fazer esse tipo de análise aqui no Brasil”.

O último boletim Transparência Covid-19, publicação semanal organizada pela OKBR que avalia a transparência dos estados e Governo Federal na divulgação dos dados da pandemia, apontou que 32% dos estados divulgam seus microdados. Dos estados que disponibilizam seus microdados, apenas o Espírito Santo disponibiliza a base incluindo dados sobre raça/cor; no entanto, essa informação não é preenchida em todos os casos registrados (dos 3208 registros coletados até o dia 3 de maio, 1094 tinham o campo raça/cor ignorado).

No último dia 5, a Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou que registro e divulgação de casos de coronavírus no país tenham obrigatoriamente informações sobre a raça/cor dos infectados.

Falta de dados sobre população negra é problema histórico no Brasil

A falta de dados oficiais sobre raça é histórica no país, afirma o advogado Daniel Teixeira. Ele é diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), organização não-governamental voltada para a promoção da igualdade de raça e de gênero.

“Há vários fatores que podem explicar essa alta letalidade [da Covid-19 entre a população negra]. Justamente, ter informações melhores significa a gente, inclusive, confirmar ou até excluir a importância ou relevância de cada um desses fatores, conforme o caso. Porque aí está a riqueza que os dados podem fazer”, defende Teixeira, que diz que a falta deles pode ser “desastrosa”. O pesquisador pondera que a lacuna não ocorre apenas na área da saúde e é comum no país. “A falta desse tipo de recorte pode ser um impeditivo para que a gente tenha políticas públicas que deem conta dessa situação que, historicamente, desconsidera as dimensões de desigualdades estruturais no Brasil”, diz Teixeira.

A jornalista Christiane Gomes, coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, em São Paulo, e integrante do coletivo negro Ilú Obá de Min, afirma que a pandemia escancara a desigualdade racial do Brasil, “fruto de um passado colonial que persiste ainda hoje”. “No começo da pandemia, se dizia muito que o vírus não escolhe classe social nem raça. Mas isso é uma falácia e os próprios números que comparam a quantidade de mortes em bairros como o Morumbi e a Brasilândia exemplificam isso”, afirma.

Ela pontua que o problema não é somente um reflexo da pobreza, mas que a discussão também tem que considerar gênero e raça. “Por exemplo, quem trabalha mais no trabalho doméstico? São as mulheres negras. Quem trabalha mais nos serviços de estrutura, de segurança? Enfim, que é a base da pirâmide social brasileira? É a população negra. Então, é essa população que está mais vulnerável e é a que menos consegue fazer isolamento social. Estamos falando de um problema macro, o Brasil é um país que tem o racismo na sua estrutura”, analisa Gomes, que defende maior transparência de dados da pandemia provocada pelo novo coronavírus, com o objetivo de orientar a gestão pública.

Nos EUA, letalidade do coronavírus também é maior entre negros

O advogado Daniel Teixeira, diretor do Ceert, lembra que a falta de transparência sobre os dados raciais da pandemia também ocorreu em outros países, como os EUA, que oficialmente lidera o número de casos de infecções pelo novo coronavírus no mundo. “No CDC, Centers for Disease Control and Prevention, órgão que monitora os dados referentes à Covid-19 e outras doenças, também não se tem tido uma leitura ampla em relação aos dados”, pondera o especialista.

A pouca disponibilidade dos dados raciais levou a Johns Hopkins University, instituição que é referência na área de saúde no país, lançar um mapa mostrando quais estados norte-americanos têm produzido recortes raciais sobre a nova pandemia. De acordo com o mapeamento da universidade, apenas dois dos 50 estados norte-americanos, Illinois e Kansas, têm estatísticas raciais completas sobre casos confirmados, óbitos e testes para o novo coronavírus.

Desde a publicação do levantamento, houve melhora na transparência: o número de estados que disponibilizam dados raciais sobre os casos confirmados subiu de 34 para 42; já o número de estados que também disponibilizam dados raciais sobre as mortes provocadas pela Covid-19 subiu de 26 para 38.

“Eles estão monitorando e falando da importância para que o façam. É um apelo da universidade, para que isso seja considerado, tendo em vista o impacto desproporcional que já se verifica nos estados e cidades que já fazem esse monitoramento com recorte”, diz Teixeira.

Com os dados, foi possível atestar a maior letalidade da doença entre as comunidades negras no país, como mostraram reportagens da Reuters, sobre maior probabilidade de negros morrerem ao contrair Covid-19 e do Washington Post que repercutiu um estudo na Geórgia, que revelou desproporcionalidade da hospitalização de pessoas negras por Covid-19 no estado.

Teixeira alerta que os números disponíveis, nos EUA e no Brasil, ressaltam “a doença constante do racismo estrutural que se auto reproduz. “Essa é questão central do racismo. Não à toa que um dos movimentos mais fortes dos EUA hoje é o Black Lives Matter, as vidas negras importam. Essa afirmação se dá porque a morte [da população negra] desde sempre e cada vez mais é vista como parte da paisagem social. A ponto de haver pouca revolta com relação a essas mortes, em tão maior quantidade da população negra.”

 

31 Favelas e Complexos com Casos Confirmados: O Perigo das Subnotificações da Covid-19 em Favelas, por RioOnWatch

Artigo originalmente publicado no blog RioOnWatch, em 13 de maio de 2020.

Subnotificação Torna a Pandemia no Brasil a Mais Perigosa do Mundo

As subnotificações de casos e óbitos por Covid-19 no Brasil são gigantescas devido ao número insuficiente de testes realizados e a demora para liberar os resultados. O número alto de óbitos em relação ao número de casos confirmados e o súbito crescimento dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), além do aumento da capacidade de necrotérios em hospitais do Rio são evidências deste fenômeno.

Em abril, especialistas estimaram que para cada óbito confirmado por Covid-19 deveria ter até mais 9 que não foram notificados. O número de casos no Brasil deve ser 15 vezes maior do que declarado. O Brasil é agora o país com a taxa de contágio mais alta do mundo. Nas favelas cariocas as subnotificações explodem. A relação entre os números de óbitos e casos confirmados é duas vezes maior do que no restante da cidade.

Se no começo os efeitos da doença foram sentidos primeiro nos bairros nobres, agora o coronavírus está batendo com força nas favelas e periferias, mas os números oficiais atuais não refletem suficientemente esta realidade.

Comunidades Criam Próprias Ferramentas para Monitorar Vítimas

Até nesta área, mobilizadores de favela estão preenchendo a lacuna deixada pelo Estado. Comunicadores comunitários de várias favelas estão desenvolvendo seus próprios painéis digitais para seguir a evolução dos casos nas favelas cariocas e disponibilizar dados mais realistas. O jornal Voz das Comunidades criou o painel Covid-19 nas Favelas que mostra o número de casos e de óbitos confirmados por comunidades e sua evolução no tempo, com base em dados públicos.

Nesta quarta-feira, 13 de maio, o portal reportou 14 comunidades com 362 casos confirmados e um total de 114 óbitos. A contagem é baseada nos dados da prefeitura disponibilizados no Painel Rio Covid-19—e agora também contempla dados do governo estadual, Clínica da Família Zilda Arns, Clínica da Família Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria – ENSP, Clínica da Família Victor Valla, Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza, Clínica da Família Rinaldo De Lamare, Cms Dr Albert Sabin e Comitê SOS Providência.

O painel do Voz das Comunidades atualmente contabiliza Rocinha (92 casos confirmados), Manguinhos (42), Complexo da Maré (39), Morro da Providência (34), Mangueira (28), Jacaré (28), Complexo do Alemão (27), Cidade de Deus (23), Acari (22), Vidigal (13), Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (7), Jacarezinho (5), e Vila Kennedy (2).

O painel do Vozes contemplava somente dados do painel da prefeitura até esta semana. No entanto, dados compartilhados por várias Clínicas da Família—do Complexo do Alemão, Manguinhos, Jacarezinho, Rocinha, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo—revelavam que as unidades de saúde comunicavam os números de casos e óbitos com teste positivo muito mais rapidamente do que a prefeitura, e possuíam uma cobertura do território mais precisa. 

Por exemplo, a Clínica da Família Zilda Arns, que atua numa parte do território do Complexo do Alemão, criou um painel público próprio, atualizado todos os dias, para monitorar não só os casos e óbitos confirmados, mas também os casos suspeitos com síndrome gripal, com SRAG ou internados, e os recuperados. Também continha dados mais específicos sobre idade, sexo, sintomas e bairros de residência das pessoas contabilizadas. 

Dados da Prefeitura Inadaptados ao Monitoramento das Favelas 

Estas diferenças de dados são ocasionadas devido a escolha de quais bairros—definidos no painel da prefeitura—são categorizados como sendo favela, porque as delimitações dos bairros usadas no levantamento de casos pela prefeitura raramente correspondem às áreas das comunidades. 

Isso revela a amplitude da subnotificação de casos nas favelas cariocas: muitas comunidades fazem parte de um bairro maior, então seus casos não podem ser citados especificamente, são diluídos nos números totais da área onde estão localizados. 

Por exemplo, o território de Rio das Pedras faz parte da área de Jacarepaguá (133 casos) e do Itanhangá (33 casos), então os números de casos confirmados desta favela não são contabilizados pela prefeitura como sendo casos de coronavírus dentro da comunidade. Da mesma forma, os bairros de Pavuna (70 casos) e Costa Barros (27 casos) contém várias comunidades que não fazem parte dos números específicos das favelas. E o Morro da Providência (10 casos) fica dentro da Gamboa, no Centro. Os dados são de 12 de maio.

Relatos de várias partes da cidade demonstram esse fenômeno. Sejam nos dados da prefeitura ou dos painéis comunitários listados acima, todos só consideram favelas e complexos maiores. Isso deixa a grande maioria das favelas do Rio de Janeiro sem sequer dados públicos sobre seus casos. O RioOnWatch tem ciência de casos e mortes, por exemplo, em comunidades pequenas como Pica-Pau em Cordovil, Vila Parque da Cidade, Mata Machado, Tijuaçu, Asa Branca, e Tuiuti. Até favelas maiores como BorelComplexo da Penha e Gardênia Azul, temos notícias de casos, porém não estão enumerados nas listas e painéis citados acima. Outras fontes de mídia também têm reportado ainda outras comunidades impactadas como Vilar Carioca e os complexos São Carlos e Pedreira. É de se concluir, então, que o número de favelas impactadas já seja uma grande proporção dos territórios de favela na cidade.

Por isso, os dados do Painel Rio Covid-19 da prefeitura não atendem a necessidade urgente de monitoramento dos casos de Covid-19 específico das favelas do Rio de Janeiro, porque o governo utiliza delimitações que não correspondem aos limites territoriais das favelas. Como resultado, existe um apagão de dados sobre a realidade da pandemia nas favelas, razão pela qual ativistas de favelas acreditam que a situação nas comunidades já é muito mais crítica do que parece nos dados oficiais. 

Zonas casos covid.png

Zonas usadas pelo monitoramento dos casos de Covid-19: inadaptadas para cobrir os territórios das favelas

Esconder a Escala da Crise nas Favelas Consta Necropolítica

Os dados das unidades de saúde e os levantamentos comunitários já revelam que a prefeitura não está se preocupando em contabilizar casos em favelas, apesar das mesmas correrem o maior risco com a pandemiaSegundo o post da página no Facebook, Voz da Vila Kennedy, existe pelo menos 16 óbitos na Vila Kennedy; e de acordo com o painel da Clínica da Família Zilda Arns já são 10 óbitos no Complexo do Alemão, um número diferente dos 5 contabilizados no painel da prefeitura. A ocultação da escala da crise da pandemia nas favelas só reforça ainda mais as pessoas a acreditarem na retórica insidiosa do Presidente Bolsonaro, ocasionando a não adesão da população de favelas as medidas de prevenção como o isolamento social.

Minimizar o problema nega também o reconhecimento da necessidade de políticas públicas firmes e específicas para lidar com a situação nas favelas. No momento em que, as unidades de saúde pública do município confirmam que as autoridades não divulgam a totalidade dos casos nas favelas, pode-se afirmar que essa falta de transparência é uma política negligente e cruel do Estado para as favelas.

Também é difícil encontrar os números exatos de certas zonas de outras áreas de periferias do país como em São Paulo. Como resultado é impossível saber quantos casos de infectados pelo coronavírus e óbitos realmente existem nas favelas do Brasil. 

Os dados oficiais disponibilizados pelos governos municipal, estadual e federal, são muitas vezes a única fonte à qual a mídia e o grande público podem recorrer para avaliar e analisar a situação e informar a população sobre a pandemia nas favelas, cobrando e fiscalizando as soluções oferecidas pelas autoridades públicas. Sem estes dados, não temos base eficaz para o desenvolvimento e realização de políticas públicas ou cobrança às autoridades. 

A escalada da pandemia nas favelas só não está tão invisível, porque iniciativas como as citadas em algumas favelas da cidade do Rio, se multiplicam a cada dia. 

Lista de Favelas com Casos Confirmados

/>

Acari
Asa Branca
Borel
Caju
Cantagalo
Cidade de Deus

Complexo da Maré

Complexo da Pedreira

Complexo da Penha

Complexo do Alemão

Complexo São Carlos

Costa Barros
Jacaré
Jacarezinho
Mangueira
Manguinhos
Mata Machado

Morro da Providência

Parada de Lucas

Pavão-Pavãozinho

Pavuna (região)

Pica-Pau em Cordovil

Rio das Pedras
Rocinha
Tijuaçu
Tuiuti
Vidigal
Vigário Geral
Vila Kennedy

Vila Parque da Cidade

Vilar Carioca

Caso saiba de algum caso suspeito ou confirmado em alguma comunidade não citada nesta lista, por favor nos envie informações pelo WhatsApp 99832-5575 ou email contato@rioonwatch.org.br.

No momento está sendo divulgado um questionário de uma pesquisa coordenada pela Subsecretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI) e FAPERJ em parceria com a UERJUFRJ e Fiocruz, “com objetivo identificar a existência de prováveis casos de subnotificação nos sistemas de informação, para ajudar as ações de prevenção e promoção de saúde pelos órgãos governamentais”. Veja o questionário Subnotificação da COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro aqui.

 

Em 4 semanas, mortes de pretos e pardos por Covid-19 passam de 32,8% para 54,8%

Dados publicados no editorial do dia 18 de maio de 2020, no Jornal G1.

Brancos, no entanto, ainda representam a maioria das hospitalizações pela doença. Dados foram divulgados pelo Ministério da Saúde nesta segunda-feira (18).

Internacoes-e-mortes-por-covid-segundo-raca-e-cor.jpg

Internações e mortes por Covid-19 — Foto: Cido Gonçalves/G1

A porcentagem de pacientes mortos por Covid-19 entre os pretos e pardos passou de 32,8% para 54,8% entre 10 de abril e 18 de maio, um período de quatro semanas. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (18) pelo Ministério da Saúde.

Já a porcentagem de pacientes brancos hospitalizados pela Covid-19, mesmo que em queda no mesmo período, é a maior: 51,40%. Os pretos e pardos, mesmo que tenham um índice maior no número de mortes, representam 46,7% das internações pela doença.

Esta nomenclatura de raça/cor é a mesma utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pretos e pardos são categorias diferentes e, juntos, podem ser classificados como negros.

Situação no país

O ministério também divulgou nesta segunda seu mais recente balanço de mortes e casos confirmados de Covid-19 no Brasil. Os principais dados são:

  • 16.792 mortes, eram 16.118 no domingo
  • Em 24 horas, foram mais 674 novas mortes registradas
  • 254.220 casos confirmados, eram 241.080 casos no domingo
  • Em 24 horas, foram mais 13.140 casos

De acordo com o ministério, 136.969 pacientes estão em acompanhamento (53,9% do total) e 100.459 estão recuperados (39,5%).

 

Operações policiais no RJ durante a pandemia: frequentes e ainda mais letais, por Rede de Observatórios de Segurança

Operações policiais 1.jpeg
Operações policiais 2.jpeg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Operações policiais 3.jpeg
Operações policiais 4.jpeg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A sucessão de mortes violentas e chocantes dos últimos dias no Rio de Janeiro demonstra que as operações policiais, e por extensão as polícias fluminenses, se tornaram instrumentos de matança e terror. No dia 18 de maio, segunda-feira, João Pedro Mattos, de 14 anos, foi assassinado em sua casa em São Gonçalo; ontem, 20 de maio, quarta-feira, o jovem João Victor Gomes da Rocha foi morto ao sair para comprar uma pipa, na Cidade de Deus, durante uma operação que interrompeu a entrega de cestas básicas na comunidade. As duas mortes ocorreram dias após uma outra ação no Complexo do Alemão, que deixou 13 mortos.

Desde 2019, o Observatório da Segurança RJ, um projeto do CESeC, monitora as ações policiais no estado, com base em informações divulgadas nos principais jornais, portais de notícias, grupos de WhatsApp e Telegram e perfis e páginas nas redes sociais. O levantamento dos dados de 15 de março, data do início das medidas de isolamento social no Rio, até 19 de maio mostra que as polícias fluminenses modificaram sua atuação no início da pandemia, mas logo voltaram a adotar o foco em operações violentas e letais.

Os dados sobre as operações monitoradas indicam que em março houve uma forte queda no número de operações em relação às realizadas em 2019. As operações com motivação "repressão ao tráfico de drogas" diminuíram, enquanto efetivos policiais passaram a ser empregados em ações relacionadas ao controle da pandemia do Covid-19.

No entanto, essa tendência não se manteve. Em abril, as operações policiais aumentaram no estado do Rio de Janeiro e superaram os números de 2019. O combate ao tráfico de drogas voltou a ser um dos focos principais das ações — como as sangrentas incursões em favelas, noticiadas nos últimos dias, vem mostrando.

Com o crescimento no número de intervenções, a letalidade policial também aumentou. Em abril de 2020, houve 57,9% mais mortes decorrentes de ação policial do que o mesmo mês de 2019. Em maio de 2020, até o dia 19, o total de vítimas fatais também superou o mesmo período no ano anterior. O advento da pandemia do novo coronavírus causou apenas uma breve redução nas ações violentas e letais que constituem o foco da atual política de segurança do governo do Rio de Janeiro. Em um momento em que a sociedade se mobiliza para salvar vidas, as forças policiais continuam a produzir mortes em níveis intoleráveis.

LEIA O ESTUDO COMPLETO AQUI!

 

 

Entrevistas

 

Sousa, da Redes da Maré: “Quem só via a favela pela violência, passou a enxergá-la a partir do coronavírus”

Eliana Sousa Silva, fundadora e diretora da ONG, explica que 140.000 pessoas vivem na Maré, muitas sem água encanada e esgoto, o que favorece a epidemia e requer medidas urgentes.

Por Felipe Betim, ao El País, em 28 de março de 2020.

Desde que coronavírus aterrissou no Brasil, várias organizações da sociedade civil, ativistas e lideranças comunitárias estão se mobilizando para atuar nas favelas e proteger as pessoas mais vulneráveis da pandemia. Eliana Sousa Silva, fundadora da ONG Redes da Maré, que atua há décadas no Complexo de Favelas da Maré, sobretudo nas áreas de Educação e Segurança Pública, é uma dessas lideranças que vem estruturando ações de enfrentamento ao coronavírus. Em entrevista ao EL PAÍS por telefone, ela explica que a pandemia “está escancarando” a desigualdade social, um tema historicamente negligenciado no Brasil. A partir de uma campanha de arrecadação de recursos, o objetivo é distribuir alimentos e material de limpeza para a parcela mais pobre da população —utilizando, para isso, os comércios e prestadores de serviços locais, afetados economicamente pela paralisia das atividades. “A gente não tem as condições básicas para criar uma prevenção em massa, e isso é anterior ao coronavírus", argumenta. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Pergunta. A pandemia de coronavírus afeta pobres, classe média e ricos da mesma forma?

Resposta. Não, claro que não. A pandemia de coronavírus está escancarando uma questão, que já sabemos que faz parte do nosso cotidiano, que é a desigualdade social. Isso já a partir do momento em que você precisa estabelecer um distanciamento, um isolamento, e uma quarentena para as pessoas. Mas as pessoas vivem nas favelas em casas muito pequenas, sem ventilação adequada, faltam recursos e infraestrutura de urbanização... Isso falando de coisas básicas. Se vivêssemos em um país onde as pessoas tivessem habitação e as coisas funcionassem bem, já haveria problema. Mas não temos o básico para lidar com a crise. As favelas, periferias e regiões mais pobres que não são providas de serviços públicos estão diretamente afetadas para além do que a própria contaminação trás. Elas já estão muito vulneráveis.

P. Quais são as vulnerabilidades concretas que o coronavírus escancara?

R. São várias questões. A primeira tem a ver com as condições habitacionais e de densidade populacional. Na Maré vivem 140.000 pessoas divididas em 16 favelas. São 47.000 domicílios em 4,5 quilômetros de extensão. Os números são equivalentes a de uma cidade brasileira de médio porte. As pessoas estão muito próximas, as casas são pequenas, sem condições sanitárias, esgoto, água potável... Em algumas favelas você não tem água encanada todo dia. E aqui no Rio ainda tem toda a questão da qualidade da água da Cedae, um elemento que piora as condições. Numa perspectiva ambiental mais geral, você precisa ter espaços arejados e condições mínimas para estabelecer esse distanciamento social, mas a realidade é a de três pessoas morando num quarto. A gente não tem as condições básicas para criar uma prevenção em massa, e isso é anterior ao coronavírus.

P. Muitas familias de classe média vêm fazendo home office, mas nas favelas o trabalho informal é a realidade. Quais são as vulnerabilidades econômicas?

R. É a outra camada do problema. Além da questão estruturante, um país de déficit habitacional e de saneamento, tem as condições de trabalho daqueles que moram em favelas e periferias. Nem todas vão ter condições de trabalhar em casa. São prestadores de serviço ou profissionais autônomos que dependem do trabalho para gerar renda. Se não trabalham, não geram. Além do tipo de trabalho, pelas condições das residências elas nem teriam um espaço para sentar ali em frente ao computador e trabalhar de home office.

P. Que tipo de ação a Redes da Maré vem fazendo nas últimas semanas?

R. A nossa campanha está dirigida para as 6.000 famílias mais vulneráveis. A partir da população da Maré, de 140.000 pessoas, a gente cruzou dados de pobreza para chegar a esse número. Nossa meta é contribuir com recursos materiais para que essas pessoas possam minimamente sobreviver durante essa crise. Estamos buscando recursos para a compra de cestas básicas e material de limpeza, mas nossa proposta é que possamos comprar esses produtos nos comércios da Maré. São quase 4.000 estabelecimentos comerciais, então é também uma forma de girar a economia local e ajudar esses autônomos e prestadores de serviços. Existe um projeto [que envolve mulheres chamado Maré de Sabores], que presta serviços de buffet, mas todos os eventos foram cancelados. Então estamos mobilizando elas para não deixar sem apoio os usuários de crack. A partir das contribuições da campanha, vamos cozinhar 180 quentinhas a partir de sexta, fazendo escalas de trabalho que garantam a prevenção delas, e entregar de dentro do carro. Estamos buscando recursos financeiros para comprar itens de alimentação e prevenção, mas parte dos recursos vai para essas mulheres, para gerar renda para elas.

Desde que começou essa crise, a gente estabeleceu uma parceria com a Fiocruz para validar as informações e o que pode ser feito dentro de uma realidade como a das favelas. Tem nos ajudado a entender inclusive como fazer essas ações se protegendo, já que a gente mobiliza muitas pessoas para entregar as cestas básicas. O interessante é como em cada uma das favelas as pessoas podem buscar soluções locais para criar um processo dinâmico e também positivo de ajudar um ao outro, e também gerar recursos. Vai ser um aprendizado mobilizar a sociedade em torno de causas que são muito emergenciais.

P. Acredita que a crise possa trazer um efeito positivo, que é dar sentido de urgência para todas essas questões históricas?

R. Estamos num momento difícil num ponto de vista objetivo. Mas as pessoas estão em casa, é o momento de refletir e olhar para o coletivo. Todas as dificuldades que vivemos no plano mais básico já está posto no cotidiano. As pessoas que muitas vezes não querem ver, ou só enxergam as favelas a partir da questão da violência armada. Com essa crise, começam a ver que não é só isso. É importante chamar atenção para essas questões, e que não pode ser algo pontual. Para sobreviver a outras possíveis crises que teremos, precisamos resolver essas questões muito básicas.

P. E como os setores de classe média alta podem ajudar?

R. Várias pessoas, organizações e fundações estão mobilizadas para dar uma solução imediata, mas falta muita gente entrar com o que pode contribuir. Uma forma de ajudar é buscando essas instituições que já vinham fazendo projetos sociais antes e já vinham trabalhando em cima dessa desigualdade social. Há diferentes organizações atuando nas favelas que vivem demandando recursos que não conseguimos no dia a dia, e que talvez as pessoas, olhando o tamanho do problema, possam gerar um retorno mais perene. É ter um olhar para investigar onde as pessoas estão mais precisando e buscar pessoas confiáveis que trabalham nessa agenda de urgência.

P. Além do papel dessas organizações, existe o papel do próprio Estado de realizar ações mais abrangentes. O coronavírus se espalha muito rapidamente e o Brasil não tem a estrutura da Itália, onde a situação já é grave. Se o Estado não atua, acredita que os mais pobres serão mais uma vez deixados para morrer?

R. A coisa mais séria é justamente quando o Estado vai realmente entrar na dinâmica de urgência dessa crise. O que tenho percebido são respostas muito imediatas. Mas realmente falta um processo mais estruturante e de aprendizado em torno disso. Um exemplo são as Unidades Básicas de Saúde e as Clínicas da Família. Muitas delas estão em situações muito irregulares, seja do ponto de vista de pessoal ou de estrutura material. Essas estruturas poderiam ser referências importantes para dar suporte e confiança para a população, uma porta de entrada do sistema de saúde para tirar dúvida, prestar esclarecimentos e continuar o atendimento de pessoas mais vulneráveis. E, no entanto, já vinham sendo sucateadas. Os agentes comunitários iam de porta a porta, mas isso vem sendo desmontado. E os profissionais de saúde vêm sofrendo muito com esse desmonte.

Por outro lado, se não houver uma medida urgente de suporte às demandas básicas, e em larga escala isso só pode vir do Estado, a contaminação nessas áreas, com certeza, vai acontecer rapidamente. Vai ser uma coisa massiva, e as unidades de saúde não estão funcionando como deveriam. O que temos que trabalhar neste momento é a prevenção, que é o lugar dessas unidades. Não podemos deixar acontecer. Na Itália não houve clareza sobre como lidar com a pandemia desde o início. Aqui temos de olhar para essa desigualdade que temos e parar de negligenciá-la. Não é hora de dizer que “a favela já está ferrada mesmo, então vamos deixar para lá”. Não, é hora de olhar para essa população, que historicamente é a que mais sofre, é a que sempre é sacrificada.

 

Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da 'necropolítica'

Em entrevista realizada para o Jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 30 de março de 2020, Achille Mbembe, filósofo camaronês, comenta sobre como governos decidem quem viverá e quem morrerá em tempos de pandemia.

Por Diogo Bercito, de Washington

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”,
Mbembe afirma. "O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder.”

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo "necropolítica". Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá — e de que maneira viverão e morrerão. A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade  "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida", disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. 

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar… E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora. Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível. 

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.

Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder. Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo.

Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras
de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo.

O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida. Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

 

“É preciso que o recurso de 600 reais chegue hoje”, com Sonia Fleury

Cada favela precisa de um plano emergencial específico, segundo suas especificidades, diz a pesquisadora.

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin, para o Instituto Humanitas UNISINOS | 02 Abril 2020

coronavoucher de 600 reais para os trabalhadores informais, autônomos e intermitentes, como ficou conhecido o pagamento do auxílio emergencial que será feito pelo governo federal, “pode chegar às pessoas das comunidades, mas para ser operacionalizado, ele requer uma burocracia que pode retardar o recebimento e talvez seja tarde demais”, adverte a cientista política Sonia Fleury[51]. Para ela, a melhor maneira de suprir as necessidades financeiras desses trabalhadores é através de uma renda mínima que possa ser garantida imediatamente. “Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo”, afirma.

Enquanto o auxílio governamental não chega às comunidades, o voluntariado assistencial tenta suprir as necessidades mais emergenciais, como alimentação, mas somente isso “não dá; é preciso que esse recurso de 600 reais chegue hoje, e não se tem clareza de quando vai chegar na mesa das pessoas”, reitera. A crise, salienta, evidencia as carências, mas também as potencialidades das favelas. “A favela hoje é o lugar mais organizado que existe no Brasil. O seu bairro tem algum nível de organização para enfrentar a pandemia? No meu, as pessoas nem se cumprimentam. A sociedade está inteiramente desmobilizada, não participa de nada, mas este não é o caso das favelas. Elas têm um nível de organização cultural, social, religioso, que é muito diferenciado em relação ao resto da população brasileira. Isso vai ficar patente na maneira como eles estão enfrentando a pandemia”, assegura.

Sonia também comenta o enfrentamento da crise no Rio de Janeiro, onde o governador Witzel e o prefeito Crivella politizam a situação. “Crivella, que é um prefeito repudiado pela maioria da população, está tentando se associar ao discurso do presidente Bolsonaro para ver se aumenta a sua capacidade para concorrer à eleição municipal, porque, por si só, ele não tem a menor capacidade de se reeleger”, diz. E lamenta: “Quem vai sofrer com essa situação é a população; ninguém tem a menor dúvida disso, principalmente porque o Rio de Janeiro é uma cidade que tem muitas favelas, com altíssima concentração populacional. Algumas são maiores do que muitos municípios, mas sem a autonomia e os recursos de um município para enfrentar essa situação”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-LineSonia Fleury pontua que a pandemia de Covid-19 acentuou a tensão entre as áreas sociais e a área econômica, em curso desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que limita o teto dos gastos nas próximas duas décadas. Na avaliação dela, a crise, de outro lado, também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde - SUS. “Ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitáriaepidemiológica”, assinala.

CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA!

 

Os erros e acertos de Mandetta na Saúde, em duas análises

Texto originalmente publicado no Nexo Jornal, em 15 de abril de 2020.

Ao 'Nexo' os professores Mário Scheffer e Sônia Fleury avaliam a gestão do ministro da Saúde, que ganhou projeção e entrou em confronto com Bolsonaro durante a pandemia.

A saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, principal responsável pelo enfrentamento à pandemia do novo coronavírus no governo federal, voltou a ser cogitada na terça-feira (15). Segundo informações de bastidores publicadas pela imprensa, o presidente Jair Bolsonaro já procura um substituto para o ministro, que admitiu estar em “descompasso” com o Palácio do Planalto em termos de diretrizes para o combate à doença.

A gestão de Mandetta tem sido tumultuada. Nos últimos meses, o ministro alcançou a aprovação da maior parte da população, segundo pesquisas de opinião, pela adoção de critérios científicos na condução da pasta. Seguindo orientações da OMS (Organização Mundial de Saúde), ele defende medidas de isolamento social e ressalta que não existem medicamentos com eficácia comprovada contra a doença.

Os argumentos, no entanto, contrariam seu chefe. Jair Bolsonaro já chamou a covid-19 de “gripezinha” e vem reiteradamente descumprindo os pedidos para evitar aglomerações. O presidente também prega a manutenção da atividade econômica e divulga como cura para a doença um remédio que não tem eficácia comprovada, a cloroquina.

Em 6 de abril, o presidente ameaçou demitir Mandetta, mas recuou sob pressão de ministros militares, do presidente do Senado e presidente do Supremo Tribunal Federal. Mas uma entrevista de Mandetta ao programa Fantástico, da TV Globo, no domingo (12), mudou o cenário. Nela, criticou Bolsonaro por ir a uma padaria e disse que a população não sabe se escuta o ministro ou o presidente.

A permanência de Mandetta no cargo voltou a ser colocada em dúvida na quarta-feira (15) com o pedido de demissão do secretário de vigilância em saúde, Wanderson Oliveira, que decidiu se antecipar a uma possível mudança de comando do órgão. O ministro não aceitou o pedido e Oliveira continuou no cargo, assim como o próprio Mandetta. Nos bastidores, no entanto, o ministro já estaria se despedindo.

Duas análises sobre a gestão de Mandetta

Para avaliar a gestão de Mandetta frente ao Ministério da Saúde em meio à pandemia, o Nexo ouviu dois especialistas em saúde.

Mário Scheffer, doutor em ciências da saúde, é professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) na área de política, planejamento e gestão em saúde.
Sônia Fleury, especializada em medicina social, é doutora em ciência política e pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).


Como avalia a gestão de Mandetta no combate à covid-19?
MÁRIO SCHEFFER Acho que é uma gestão muito dificultada pelo duplo comando, muito tumultuada, embora cercada de uma capacidade técnica e de medidas adequadas do ponto de vista das evidências internacionais. É descoordenada, pouco unificada. Esse duplo comando interno dentro do governo federal, do presidente e dele, dificultou uma gestão coordenada e unificada entre os três níveis de governo e, ao mesmo tempo, a conexão entre a gestão de serviços, a vigilância epidemiológica e a produção de insumos. A questão do número de casos e óbitos de forma centralizada foi um ponto positivo, mas a gestão entre os três níveis de governo e a gestão dos serviços está absolutamente atrasada. Só ontem [terça-feira, 14] o ministério anunciou que vai fazer um censo hospitalar da capacidade e da disponibilidade real de leitos. Isso, para mim, é uma deficiência. ​

Tem medidas muito adequadas, mas acho que perdemos tempo [no começo da epidemia]. Nós tínhamos um benefício de uns dois meses [desde o início do surto de casos na China e na Europa]. Acho que teve um começo das ações no momento adequado, mas mais medidas poderiam ter sido tomadas. Por exemplo: há, de novo, a questão da real capacidade da oferta de leitos. E de não ter aproveitado o tempo e titubeado na questão do fornecimento de insumos e principalmente da testagem. Só culpar o não fornecimento internacional é muito simplório. Há outras alternativas que não foram tomadas. Obviamente, isso tem que ser compartilhado com estados e municípios, mas a gestão dos profissionais de saúde é um ponto crítico na resposta.

Um outro ponto que o ministério não fez foi uma adequada articulação com o setor privado. Talvez até pela proximidade do Mandetta com o setor privado, o que a gente está percebendo é uma total desobrigação dos planos de saúde e dos hospitais privados em relação à pandemia. Eles não se apresentaram. Isso exigiria uma gestão unificada. Vários países, como a Espanha e a Irlanda, excepcionalmente neste momento, unificaram os esforços público e privado. Por outro lado, numa ação direta do Mandetta com a ANS [Agência Nacional de Saúde], eles praticamente editaram um pacote de benefícios para o setor dos planos de saúde, de flexibilidade, de desregulação, de acesso a fundos excepcionais sem contrapartida.

Não se sabe nem qual é hoje a capacidade da rede privada que poderia estar à disposição de uma gestão única de vagas para casos graves, por exemplo. O setor privado está ocioso, em parte, porque perdeu uma clientela importante com a crise econômica antes da pandemia, e foi desobrigado de atendimento eletivo. Uma das medidas da agência e do Ministério da Saúde foi autorizar os planos de saúde a cancelar todos aqueles procedimentos eletivos. Eles estão economizando muito nesse momento. Qual é a capacidade deles que está hoje destinada para o atendimento do novo coronavírus? Em locais onde tem muitos casos, como São Paulo e Rio, é onde o setor privado é muito presente. Na capital de São Paulo, 50% das pessoas têm plano de saúde, e mais da metade, 62% dos leitos de UTI estão nas mãos do setor privado que não atende o SUS hoje. Essa capacidade vai ser disponibilizada?

SÔNIA FLEURY Eu creio que as medidas do Ministério da Saúde foram adequadas porque eles adotaram um modelo que a OMS [Organização Mundial de Saúde] esteve todo o tempo recomendando, de isolamento. Essa é a parte boa do ministério, de dar uma orientação do isolamento, trazer dados epidemiológicos, mostrar que aquilo tinha uma base e não era achismo. E, ao mesmo tempo, fazer estudos sobre o Brasil foi muito importante. ​

Creio que, na parte da gestão do SUS [Sistema Único de Saúde], ela não foi tão boa. Por exemplo, ali nas entrevistas, a não ser na primeira vez que tinha o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, os estados e municípios, que são os que estão enfrentando a pandemia, não apareceram esse tempo todo. O ministério tomou para si toda a projeção, quando isso é uma pactuação que deveria estar constantemente sendo negociada para que cada um não fizesse o que bem entende. Muitas das críticas dos governadores e prefeitos diziam que os recursos não estavam chegando. Recursos do ministério, transferidos de uma área para outra, não chegaram rapidamente. Do ponto de vista da comunicação, o ministério foi muito bom, dando as orientações técnicas. Mas o sistema de saúde envolve três níveis de governo. E essa gestão deixou muito a desejar.

Outro ponto fragilizado é o fato de que essa pandemia vai ter consequências em toda a sociedade. Propugnar um pouco mais uma coordenação que envolvesse o Ministério da Agricultura para não ter desabastecimento, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] para investir na reconversão das indústrias, são questões que vão afetar a saúde da população. Isso está além da capacidade dele [ministro da Saúde], mas ele poderia ter sido um estimulador disso.

O grande furo de tudo isso, não só do ministro mas de todos os governadores e prefeitos, é que a favela e as periferias só apareceram no discurso muito tempo depois. Ou seja, todas as recomendações iniciais desconheciam para que Brasil você estava falando. Era um Brasil de classe média. Ficar em casa, fazer home office, lavar a mão não sei quantas vezes, usar álcool em gel. E as pessoas apinhadas nos trens, nos ônibus, tendo que trabalhar para tal classe média fazendo o home office? As empregadas domésticas foram as primeiras que pegaram o vírus e levaram para casa, sem um projeto, um plano de contingência emergencial para as periferias.

Depois de muitas entrevistas, ele [Mandetta] disse que foi na Rocinha, e que dava parabéns para o pessoal que estava se mobilizando e que estava pensando num plano-piloto para negociar com os traficantes e milicianos. A população da favela está reunida, organizada, o lema é "nós por nós", porque o governo não deu a menor importância sobre essa questão em nenhum dos níveis de governo até a doença pegar. E nem outras autoridades de outros níveis tiveram o olhar para onde está a população. Falaram para uma classe média como se o Brasil fosse um país de classe média. Não é.

No começo do ano, como a epidemia não estava aqui ainda, o ministério não levou em conta a necessidade de criar uma infraestrutura de recursos humanos e de equipamentos para isso. O ministro Mandetta foi também alguém que se opôs ao programa Mais Médicos, representando a classe médica que era contra isso. Mas a contratação, o treinamento de pessoas para saber como lidar com isso na própria atenção primária, essa parte não foi bem-feita. Outros países foram mais rápidos nisso, com a criação de testes, compra de equipamentos, tudo isso que era sabido que o país não tinha. A autoridade máxima não desconhecia isso. Então, foi bom para comunicar, dar recomendações, mas como gestor do sistema, faltou chegar dinheiro na ponta, faltou equipamento, faltou tomar as providências de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e tudo mais a tempo, como a reconversão da indústria para fazer aqui os respiradores. Tudo isso não foi no tempo necessário.

Qual o impacto de uma troca do ministro em meio à pandemia?
MÁRIO SCHEFFER Acho que, de alguma forma, em função desse duplo comando e dessa descoordenação dentro do próprio governo federal, isso fez com que respostas estaduais e municipais se firmassem, por exemplo, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aqui em São Paulo, o alinhamento da prefeitura com o governo do estado garante uma continuidade de tentar uma resposta local mais adequada. Isso, de alguma forma, atenuaria [uma troca de comando agora no ministério], mas óbvio que esperamos que essa mudança não comprometa parte dos esforços técnicos que o ministério vinha fazendo. ​

Vai depender muito da opção [de substituto]. Pode ser uma opção mais técnica que preserve algumas medidas que são de fato muito adequadas e respaldadas por conhecimento científico, como a vigilância epidemiológica em tempo real com total transparência de casos, a não adoção de, por exemplo, tratamentos sem evidências científicas mais definitivas, como a cloroquina, e claro, a não adoção de medidas de relaxamento. Se a opção for por uma radicalidade e por um perfil que passe por cima desse acúmulo, acho que os estados e municípios vão ter um papel ainda mais importante com a autonomia que eles têm.

Cabe ao Ministério da Saúde diretrizes, o repasse de recursos, mas estados e municípios têm redes próprias, têm orçamentos próprios, capacidade técnica própria, e como estamos falando de uma epidemia que se expressa de forma muito distinta nas regiões e nos estados, teremos também essa relevante resposta estadual e local. Isso poderia amenizar um pouco, caso a opção seja por uma ruptura com as decisões técnicas, baseadas em evidências.

O SUS estadual e o municipal têm essa capacidade. Mas não é o ideal, porque as diretrizes e recomendações são do ministério. São Paulo, que tem características que favorecem respostas locais, tem recursos em grande volume, tem alinhamento político entre prefeito e governador, mesmo assim tem fragmentação, dificuldade de coordenação. Se estamos falando da possibilidade da epidemia se pulverizar pelo resto do país, tem estados e municípios que dependem muito do ministério. Não é homogêneo.

O comando único é algo que nós aprendemos com os outros países – precisa ter uma gestão coordenada e unificada de resposta e isso precisa ser feito pelo Ministro da Saúde. Seja para reduzir a transmissão da doença, para reforçar o distanciamento social, para solucionar a questão da testagem. Por exemplo, hoje, as compras, quanto mais centralizadas no Ministério da Saúde, melhor. Imagine, com a dificuldade de comprar insumos, testes, as compras sendo feitas por municípios, por estados, organizações. Por isso precisa do ministério, para ações não só de vigilância sanitária, mas da produção de fornecimento de insumos. Quanto mais centralizada for, melhor pode ser a capacidade de resposta.

SÔNIA FLEURY É ruim porque você desorganiza uma linha de trabalho que pode ter deficiências, mas que estava funcionando e que podia corrigir as deficiências. Agora, vai começar com outra cabeça, outra equipe? É claro que o Ministério da Saúde tem sua base técnica, assim como o sistema de saúde todo tem. Não era o ministro que fazia aquilo tudo. Ele é a figura que aparece, mas você tem a base. Não sei quem pode vir no lugar dele. Não podemos imaginar que possa vir um Osmar Terra [deputado federal que nega os riscos do vírus], que acha que tem que estar todo mundo na rua tomando cloroquina. Ele é alguém que está adotando um discurso bárbaro, do próprio presidente. Isso seria a pior das hipóteses. ​

Pode ter uma solução que seja um dos diretores que estão no próprio Ministério da Saúde, o que teria menos consequências. Vai ter uma consequência política, claro. Uma pessoa que está com uma aceitação dessa, que está sendo visto como um "salvador da pátria" diante da barbárie que estamos vivendo. Vai ter uma consequência política bastante séria nesse arranjo e tensão entre o presidente e os ministros. Mas o presidente faz as apostas dele. Ele governa provocando conflitos e não buscando consensos. O único problema é que tem que ter uma solução federativa para enfrentar uma pandemia. O Brasil é uma federação. Não pode cada um fazer o que bem entende e o presidente fazer o contrário. A atitude dele não ajuda em nada e depende muito de quem vai estar no ministério para ver se consegue alinhar e dar continuidade ao que tinha sido feito e tentar superar o que não foi feito ainda.

 

[Podcast] Pandemia devasta periferias. Que fazer?

Entrevista publicada originalmente em 20 de abril de 2020, no blog Outras Palavras.

Tiaraju Pablo D’Andrea em entrevista a Rôney Rodrigues, no Tibungo. Acompanhe o Tibungo pelo streaming.

Coronavírus já mata mais nas favelas. Morador de Itaquera, professor da Unifesp analisa: só com propostas radicais (e viáveis) e organização popular poderemos resistir à crise — e construir novo mundo solidário. Mas Estado precisará agir.

As periferias de São Paulo já concentram o maior número de mortes suspeitas de coronavírus, segundo dados divulgados pela Secretaria Municipal da Saúde. O sistema de Saúde público está à beira do colapso. Faltam hospitais, testes, campanhas e kits de higienização e prevenção. Os prometidos 600 reais da renda básica emergencial tardam. Enquanto isso, as contaminações aumentam, especialmente nessas áreas populosas, com habitações insalubres e sem saneamento básico. Milhares poderão morrer nas próximas semanas. Os governos sequer articulam planos emergenciais levando em conta a realidade das periferias e favelas. 

Agora que o vírus se propagou pelas periferias, militares, em diversos estados, checam a capacidade de cemitérios – e um colapso funerário, como o do Equador, é possibilidade real no Brasil. A pandemia extrapolará o extermínio da população empobrecida e negra das periferias. Mas será possível resistir? A autogestão das comunidades e as redes solidárias poderão mitigar essa catástrofe? Aumentará a repressão e o controle nos arrabaldes da metrópole sob justificativa do confinamento?

Nessa edição de Tibungo, conversamos com Tiaraju Pablo D’Andrea, professor da Universidade Federal de São Paulo no Campus Zona Leste e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP), que reúne moradores de bairros fora do centro de São Paulo que produzem conhecimento e incidir sobre a realidade onde vivem. No começo de abril, o CEP formulou 23 propostas instigantes e viáveis para combater o coronavírus nas periferias. Entre elas, congelar preços do botijão de gás e da cesta básica, suspensão dos aluguéis e contas de luz e água e a montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos da periferia.

Ações emergenciais, como essas e outras propostas, são cruciais para evitar que a pandemia devaste os arrabaldes das metrópoles, principalmente em um momento em que perfil das mortes por covid-19 parece ter mudado. Se antes era marcadamente de classe média e alta, pessoas que viajaram para fora do país e estiveram em contato com estrangeiros, agora são os moradores das periferias e favelas. 

Confira abaixo as medidas emergenciais propostas pelo CEP:

• Montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos das quebradas;

• Distribuição de água com a disponibilização de caminhões pipas para regiões que não tem saneamento básico;

• Distribuição gratuita de kits de higiene, limpeza e prevenção (álcool gel, álcool líquido, sabonetes, toalhas, escovas de dente, pastas de dente, máscaras);

• Suspensão da cobrança de contas de água e luz;

• Suspensão da cobrança de parcelas e juros de financiamentos em geral, incluindo as famílias com dívidas com a Caixa;

• Suspensão da cobrança aluguéis residenciais e comerciais;

• Congelamento do preço do botijão de gás e dos alimentos da cesta básica;

• Compra de itens de primeira necessidade dos comércios de bairro, por parte do poder público, para distribuição gratuita nas quebradas;

• Rápida liberação dos recursos da renda mínima para trabalhadores/as informais e desempregados;

• Manutenção da distribuição de merendas nas escolas nas regiões mais pobres;

• Campanha de conscientização mais amplas, com carros de som, músicas e vídeos que dialoguem com as quebradas;

• Não à policialização da situação, evitando o aumento do encarceramento;

• Não ao isolamento vertical. Nas periferias, diversas gerações da mesma família dividem a mesma casa ou o mesmo quintal com frequência. Quem tiver a obrigação de sair pra trabalhar, vai certamente trazer o vírus para casa;

• Reforço às medidas de proteção para quem trabalha em setores essenciais, como transportes, supermercados, feiras livres, farmácias, fábricas, abastecimento, entre outros;

• Transferência de pessoas que fazem parte dos grupos mais vulneráveis para quartos adequados de hotéis disponibilizados pelo poder público.

• Descentralização dos kits de testagem do centro para os bairros de periferia em UPAs e UBS, com orientação e insumos para o gerenciamento de casos menos graves. Essa medida evitaria também deslocamentos desnecessários;

• Ampliação da rede de wi-fi grátis nas periferias;

• Estabelecimento de fluxo para o abrigo de mulheres em situação de risco de morte com a desburocratização imediata do acesso às Casas-Abrigo para as mulheres, dispondo de um número público que disponha de vagas para o abrigo emergencial em caso de violência, além do acolhimento das demais demandas divulgadas em Nota pela Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da Zona Leste

• Não fechamento do atendimento no hospital de referência em aborto legal, tendo em vista que são procedimentos que não podem esperar e que devem sofrer um aumento de demanda durante o período de confinamento, junto com a violência doméstica;

• Não à diminuição da quantidade de trens e metrôs, evitando assim aglomeração no transporte de trabalhadores de serviços essenciais;

Como medidas para conter a crise, o Centro de Estudos Periféricos recomenda também:

• Taxação das grandes fortunas e vinculação desses recursos ao SUS;

• Suspensão imediata do pagamento dos juros da dívida pública;

• Fim do teto de gastos para saúde e educação;

 

Como o Brasil, com favelas e desigualdade social, deveria responder ao coronavírus, por Jornal GGN

Originalmente publicado por Jornal GGN, no dia 12 de maio de 2020.

"Não dá para entender porque ainda não estamos fazendo um planejamento para usar a atenção básica nessa resposta", diz especialista.

Jornal GGN – Márcia Castro, professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard, explicou em entrevista ao virologista Átila Iamarino, o que o Brasil poderia ter feito para enfrentar o coronavírus desde o começo da pandemia, em vez de apenas copiar medidas adotadas em países europeus e asiáticos que têm condições socioeconômicas diversas da realidade brasileira.

Para a especialista em doenças infecciosas, o Brasil vacila em não usar as equipes de saúde da família como “detetives”, para mapear e rastrear os casos de coronavírus e, assim, viabilizar o monitoramento da quarentena de quem precisa, freando a propagação da doença.

“O benefício, ele é tão amplo que não dá para entender porque ainda não estamos fazendo um planejamento para usar a atenção básica nessa resposta”, disse.

Associada a essa medida, nas regiões de alta densidade populacional e condições precárias de moradia, ela propôs que os governos locais firmem parcerias com o setor privado para alugar quartos de hotéis ociosos, e hospedar temporariamente as pessoas com suspeita ou confirmação de COVID-19 que dividem a casa com muitos outros familiares. Seria uma forma de viabilizar o distanciamento social nas favelas, bolsões de pobrezas que não conferem com a realidade de países europeus que optaram pelo lockdown.

“O Brasil teoricamente tinha a chance de dar uma das melhores respostas durante a pandemia. O País conta com um sistema universal de saúde, tem um dos maiores programas de atenção básica do mundo – o programa Saúde da Família atende 75% da população brasileira”, comentou Castro, para quem o País “está deixando passar a oportunidade de usar os programas que já têm.

”O papel dos agentes comunitários tem sido “mínimo”. “Não há prevenção em campo. O foco do Ministério da Saúde foi no atendimento clínico”, avaliou. “A gente tem alguns times de saúde trabalhando que dependem das lideranças locais, e não de uma diretriz nacional”, criticou.

Para ela, o Brasil não só perdeu a oportunidade de fazer uso da rede de atenção básica que já dispunha, como ainda vem pecando por causa do discurso desajustado de Jair Bolsonaro, que leva parte da população a duvidar da ciência e não obedecer às recomendações sanitárias.

 

Epidemia além do SUS, por Cátia Guimarães

Artigo originalmente publicado em EPSJV/Fiocruz, em 13 de maio de 2020.

Para combater o coronavírus e minimizar seus efeitos sobre a população de rua, moradores de favela, idosos em situação de asilo e outros segmentos vulneráveis, especialistas e militantes destacam a importância de políticas integradas de proteção social.

De que adianta proteger a própria saúde se o preço disso é não conseguir colocar comida na mesa? Com versões variadas, frases como essa têm permeado o discurso de empresários, gestores e entidades que reivindicam o fim do isolamento social como estratégia de controle do coronavírus no Brasil. O dilema parece real. A saída é que merece ser discutida: afinal, há quem garanta que, mais do que evitar a oposição entre saúde e economia, como tem sido defendido, o caminho é recuperar a articulação originária da saúde com outras políticas sociais. Desempregados, trabalhadores informais, população de favela, moradores de rua, idosos em abrigos: é grande e variada a parcela da população brasileira que vive numa situação de vulnerabilidade que a epidemia agravou – e escancarou. “Essas pessoas agora são chamadas de invisíveis, mas a gente encontra com elas na rua todos os dias”, diz Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz e coordenadora da plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Quando definiu a saúde como parte da Seguridade Social – que inclui também a previdência e a assistência social –, a Constituição brasileira já reconhecia que, sozinho, mesmo um sistema público e universal como o SUS não daria conta de garantir as condições necessárias a uma vida realmente saudável. E isso independentemente de qualquer contexto de pandemia. Ivanete Boschetti, assistente social e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que isso remete à importância de um sistema de proteção social, composto por um conjunto de políticas que tem a seguridade como seu “núcleo duro”, mas que precisa ir além. “Estamos falando da necessidade de um Estado Social que intervenha, que tenha uma ação ativa na regulação das ações econômicas e sociais, de modo a proteger a sociedade, mas sobretudo a classe trabalhadora, dos efeitos da desigualdade”.

Salta aos olhos a carência de várias outras políticas de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras

Por isso, ela destaca que uma das medidas mais importantes desse sistema de proteção social que hoje faz tanta falta no Brasil é exatamente a garantia de trabalho e emprego com direitos – o oposto do cenário que a epidemia encontrou por aqui. Batendo recordes históricos, na virada do ano, o país já somava 12 milhões de desempregados e 38 milhões de trabalhadores informais. “Não adianta criar um recurso emergencial de R$ 600 durante três meses se essas pessoas continuarão nesta condição quando a epidemia acabar”, alerta Ivanete. Em seguida, ela cita a importância das políticas de educação formal e não formal, destacando como a desinformação neste momento pode prejudicar a adesão às formas de prevenção da doença, o que se torna um obstáculo a mais, além das dificuldades concretas que essa parcela da população já enfrenta para cumprir o isolamento.

E é aqui que salta aos olhos a carência de várias outras políticas que a professora caracteriza como de “infraestrutura”: moradia, lazer, saneamento básico, acesso digital, entre outras. “Definir como principal medida o isolamento social sabendo que 40% a 50% da população brasileira não tem condição para isso é viver no mundo da fantasia”, resume Sonia Fleury. E a crítica não é voltada ao isolamento, mas à falta de uma ação coordenada pelo Estado e articulada com a sociedade civil. “Nenhuma prefeitura, que eu saiba, fez um plano de contingência específico para quem não pode se isolar, para quem não tem água [para lavar as mãos] nem dinheiro para comprar álcool gel”, diz, referindo-se às três medidas mais promovidas no controle da contaminação. E completa: “A pessoa não pode trabalhar, não pode sair, não tem dinheiro porque é [trabalhador] informal. Não pensaram em uma internet livre, por exemplo, para que as pessoas pudessem ficar melhor em casa. Não pensaram em dar comida, não pensaram em fazer chegar o auxilio emergencial às pessoas sem que elas precisassem ir para a fila. Não pensaram na realidade dos pobres do Brasil”.

A carência nas ruas

Foi pela redução das ações solidárias, e não por qualquer iniciativa dos governos, que parte desses “pobres do Brasil”, a população em situação de rua, descobriu que havia uma pandemia por aqui. Quem conta é Vania Rosa, ex-moradora de rua que hoje promove um projeto chamado Juca, Juntando os Cacos pela Arte, e integra o Fórum Permanente Sobre População Adulta em Situação de Rua do Rio de Janeiro. Ela conta que, já no início de março, a população de rua do município começou a perceber que Organizações Não-Governamentais (ONGs), projetos sociais e voluntários em geral que, cotidianamente, distribuem comida e promovem outras ações semelhantes, começaram a desaparecer. Num esforço de se antecipar à tragédia, ainda no dia 17, o Fórum, junto com outras entidades, emitiu uma nota em que lista dez propostas que buscam minimizar os efeitos da epidemia sobre essa população. “A principal medida para se combater o coronavírus é o isolamento social. Contudo, só na capital, quase 20 mil pessoas não têm casa para morar”, explica o texto – embora, de acordo com Vania, ao longo desses quase dois meses de epidemia esse número tenha aumentado, com a migração de moradores de rua de outras cidades para o centro.

“Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa"
Vania Rosa

Entre as medidas sugeridas, há mudanças mais estruturais – como a suspensão da Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos para o governo federal, e a interrupção dos obstáculos ao recebimento do Bolsa Família e do BPC, Benefício de Prestação Continuada, voltado para idosos e deficientes de baixa renda. Mas a maior parte das ações propostas eram de efeito imediato e de responsabilidade do governo local. Disponibilizar pias e banheiros químicos para facilitar a higiene, ofertar pequenos abrigos – com prioridade para o acolhimento de idosos, que são grupo de risco da Covid-19 –, distribuir tickets para almoço nos restaurantes populares e contratar novas equipes dos Consultórios de Rua são algumas das propostas que, de acordo com Vania, não se tornaram realidade.

Segundo ela, a única medida concreta anunciada foi a construção de um abrigo no sambódromo do Rio. Com a denúncia de entidades e movimentos sociais – inclusive o próprio Fórum – de que as 460 vagas inicialmente prometidas não caberiam no espaço com as devidas condições de proteção, elas foram reduzidas para 180, sem que novas alternativas fossem providenciadas. “Nossa proposta era utilizar estádios, escolas que estavam fechadas e outros prédios públicos como abrigo, em vez de construir”, diz Vania. Ivanete completa: “A assistência poderia organizar espaços de acolhimento, abrigos abertos para essas pessoas dormirem, tomarem banho, se alimentarem, mesmo que durante o dia elas trabalhem na rua. Muitos trabalham como catadores, por exemplo, mas não têm como voltar para casa, porque é muito longe ou porque não têm família”.

Especificamente no caso do Rio de Janeiro, no dia 8 de maio, uma ação da Defensoria Pública junto com o Ministério Público Estadual resultou na determinação de que o estado e o município, além da empresa responsável pelo abastecimento na região, a Cedae, devem garantir acesso à água e condições de higiene durante a pandemia à população de favelas e moradores de rua. Neste último caso, a decisão orienta a “instalação de pontos de água ou pias e torneiras comunitárias em praças e logradouros públicos”.

Promovendo ações cotidianas para a população em situação de rua durante todo esse tempo, no momento em que esta reportagem era finalizada, Vania comemorava que ainda não tinha se deparado diretamente com nenhuma morte por coronavírus nas ruas do Rio. “Mas eu estou vendo um povo assustado”, diz. Além disso, ela não tem dúvida de que as condições já precárias em que eles viviam se agravaram com a epidemia, com a redução ainda maior dos Consultórios de Rua e das ações solidárias que passam ao largo do poder público. “O que tinha antes se tornou dez vezes pior”, lamenta.

Como se não bastasse, essa população tem muita dificuldade de acessar a principal medida concreta de assistência social que foi implementada em função da epidemia, o auxílio emergencial de R$ 600. “Eles não têm celular, muito menos computador”, exemplifica, ressaltando ainda que existem outras barreiras, já que “muitos não têm documentos” e o cadastro requer que se informe o CPF. “Como garantir o auxílio emergencial das pessoas em situação de rua se você não tem, por exemplo, equipamentos de proteção individual e coletivos para chegar até elas?”, reforça Ivanete. Segundo Vania, a Defensoria Pública do Rio tem buscado formas de reduzir esses obstáculos e iniciativas voluntárias da sociedade civil organizada têm tentado ajudar parte dessa população a se cadastrar e receber o recurso, mas isso se dá de forma pulverizada, sem qualquer centralização ou coordenação do poder público. “Se você sentar com um morador de rua para conversar, vai ver toda a falta de política pública concentrada ali, naquela pessoa”, resume.

Assistência social em crise

Um dos espaços mais procurados por essa e outras populações vulneráveis são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), mas aqui novamente se esbarra num conjunto de deficiências que vêm de muito antes da epidemia. Para se ter uma ideia, descontando-se o Bolsa Família e o BPC, que são as duas principais ações estruturantes e nacionais empreendidas pela área, o orçamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) previsto para 2020 foi quase metade do de 2012, oito anos antes. E, de acordo com Ivanete, excetuandose o auxílio emergencial, que é considerado uma ação da assistência, nacionalmente não foi divulgado qualquer recurso extra para as políticas sociais de combate aos efeitos da epidemia. No desenho orçamentário da assistência, a maior parte dos recursos – que vêm escasseando – são transferidos pelo governo federal.

Espera-se o investimento próprio dos municípios e estados mas, diferente da área da saúde, não existe aplicação mínima para cada ente federado prevista em lei. “Não tem como manter as condições que o serviço social exige nessa pandemia, não há recursos para garantir esses serviços socioassistenciais que são muito mais demandados agora. Então a gente está vendo situações terríveis: as pessoas buscam os CRAS e eles estão fechados ou tem uma pessoa lá atrás do vidro para dizer que não estão atendendo”, alerta Ivanete.

Nessa combinação de uma carência que vem de longe com os agravos da epidemia, são vários os problemas sociais que acabam sendo invisibilizados. Ivanete lembra que uma ação “muito concreta” dos CRAS é  voltada para crianças e famílias vítimas de violência doméstica ou sexual. “Nessa pandemia, os trabalhadores não têm nem condições de fazer esse trabalho”, denuncia. E completa: “A gente não sabe o que está acontecendo com essas pessoas durante o isolamento social. Está-se falando do aumento da violência contra a mulher, mas e quanto à criança e o adolescente? [A preocupação é] tanto a violência física e simbólica quanto a própria exploração sexual, que muitas vezes acontece dentro de casa, na família”.

Também não se tem informações precisas, embora já apareçam notícias nos principais meios de comunicação, sobre casos, mortes e mesmo surtos de Covid-19 em asilos para idosos em diversas cidades. No final de abril, a maior parte dos casos que tinham vindo a público referiam-se a instituições privadas. Mas isso não reduz a preocupação com os asilos públicos, que, segundo Ivanete Boschetti, acumulam um histórico de desfinanciamento. De acordo com a professora, a carência chega ao ponto de ter lugares que pedem contribuição aos idosos para a sua manutenção, o que, além de flexibilizar o caráter público desse serviço, ainda cria barreiras de entrada, porque acaba-se priorizando, por exemplo, usuários que recebem o BPC e portanto têm alguma renda para colaborar. “Se você não tem condições adequadas neste momento, isso vai impactar diretamente no aumento das pessoas contaminadas, seja as que estão nos abrigos de assistência, seja aquelas que estão em casa, mas em moradias com pequenos cômodos e alta concentração de moradores”, diz a professora. E, sem ações concretas para esses espaços, o discurso da prevenção acaba se descolando da realidade. “Como é que você vai falar para uma pessoa se isolar num quarto da Rocinha onde não tem nem janela?”, questiona Sonia Fleury, referindo-se à maior favela do país, localizada no Rio de Janeiro.

Nas casas e ruelas da favela

Esse é o caso de 13,6 milhões de pessoas que vivem em favelas no Brasil, segundo dados de uma recente pesquisa desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva. No último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, esse número era de 11,4 milhões. Já segundo Geovana Borges, presidente da Central Única de Favelas (Cufa) de São Paulo, essa população hoje beira os 16 milhões. “O que o IBGE chama de aglomerados subnormais nós chamamos de favela”, explica.

De acordo com Geovana, é preciso levar em conta que a realidade da favela é completamente diferente da do asfalto. “É um território aonde nada chega”, diz. E exemplifica: toda a população está tendo que mudar – e intensificar – hábitos de higiene, mas como fazer isso num espaço que não tem saneamento básico? O distanciamento físico é outro desafio, num território em que, segundo ela, vivem de seis a nove pessoas por metro quadrado. Exatamente pelas condições de moradia, em vários pontos do Brasil, as favelas se destacam, inclusive, na quantidade de casos de tuberculose, uma importante comorbidade da Covid-19. Isso sem contar o papel dos moradores dessas comunidades na economia e na prestação de serviços em geral das cidades brasileiras. “Para que o asfalto faça quarentena, a favela tem que trabalhar”, lamenta.

"Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres"
Sonia Fleury

É por isso que, entre tantas coisas de que esses territórios precisam neste momento, na avaliação de Geovana a mais urgente é renda. “As mães das favelas são as mais prejudicadas. Muitas tiveram que deixar seus empregos para ficar com os filhos”, conta, alertando que, seja por falta de informação ou de acesso à tecnologia, entre outras razões, nem o auxílio emergencial criado durante a epidemia tem conseguido chegar devidamente a essas comunidades. “Tem gente que não tem internet, que não tem conta bancária... E falta informação. Esse processo não tem sido didático na favela. O resultado são aglomerações nas portas da Caixa Econômica. Tem gente que nem se cadastrou e está na fila achando que vai resolver”, explica. Em compensação, por meio de doações de empresas e pessoas físicas, a própria Cufa conseguiu fazer o pagamento de 50 mil mães de favelas distribuídas pelo Brasil. A estratégia foi dupla: um sistema online para quem tinha internet e, para quem não tinha, a entrega de tickets pessoalmente, a cada mulher, com a ajuda de lideranças locais. “Se houvesse um plano de contingência feito onde as pessoas estão, voltado para as pessoas e não para os burocratas, ele necessariamente envolveria os agentes comunitários de saúde, os CRAS e toda a área assistencial que está localizada junto à população. São essas pessoas que conhecem os pobres, a maneira que eles vivem, o que eles precisam”, diz Sonia Fleury.

Logo que a epidemia chegou por aqui, a Cufa produziu um documento com 14 recomendações ao poder público para reduzir o impacto do coronavírus nas favelas. Algumas delas acabaram se concretizando com foco na população em geral. É o caso da demanda pela criação de uma renda mínima e do apoio para que empresas de água, luz e gás suspendessem o pagamento das contas por até 60 dias – o que aconteceu só parcialmente e mesmo assim foi objeto de batalha jurídica. Exemplos de outras propostas, que não foram implementadas, são a ampliação das equipes de Saúde da Família nas favelas, o aluguel de pousadas e hotéis para idosos e grupos vulneráveis e “apoio específico” para famílias cujas crianças não estavam podendo frequentar a creche e com pessoas portadoras de deficiência. 

Os ‘sem-tecnologia’

Nessa mesma lista produzida pela Cufa, duas recomendações se referiam ao acesso à informação. Uma sugeria o “financiamento para as redes de comunicação próprias de cada favela”, como jornais, sites e rádios comunitárias. Outra defendia a liberação de pontos de internet “para garantir acesso universal à rede”. E essa é outra bandeira que vem sendo empenhada por entidades e movimentos tanto do campo da democratização da comunicação quanto da área de educação. Isso porque a solução encontrada principalmente pelas secretarias estaduais de educação para superar o fechamento das escolas durante o isolamento social tem sido a oferta de ensino remoto, o que esbarra na dificuldade de acesso que parte da população mais pobre tem à internet, entre outros problemas (sobre isso, leia mais aqui aqui). “As pessoas não têm internet livre e não vão gastar o pouco de dinheiro que têm comprando planos de dados maiores”, alerta Sonia Fleury, ressaltando que esse acesso é importante também para facilitar o isolamento. “Os jovens não aguentam ficar trancados sem internet”, diz.

Por tudo isso, ainda em março o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social protocolou um requerimento para que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) emitisse uma “liminar proibindo a suspensão de serviços de conexão à Internet móvel ou fixa por 90 dias, incluindo o bloqueio da navegação em caso de atingido o limite da franquia”. A iniciativa teve apoio de parlamentares e várias entidades científicas e sindicais. “Neste cenário, a garantia de acesso à conexão é fundamental para garantir que os cidadãos possam ficar em casa e seguir, na medida do possível, com suas atividades, especialmente as produtivas”, diz o site do Intervozes. Na mesma direção, a Coalizão Direitos na Rede, composta por 38 organizações da sociedade civil e pesquisadores, enviou ao Congresso Nacional um ofício em que pede, “como medida emergencial”, a aprovação de um projeto que garanta o “acesso da população aos serviços de telecomunicações e, em especial, à conexão à Internet fixa e móvel, mesmo em caso de atraso de pagamento, eventual inadimplência ou atingido o limite da franquia, sendo alternativa adequada a redução da velocidade, até o final efetivo da crise”.

4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária

E os números apresentados no documento não deixam dúvidas sobre a necessidade. Citando dados da pesquisa TIC Domicílios, de 2018, o ofício mostra que 33% das residências brasileiras não têm conexão com a internet, número que sobe para 59% nas classes D e E. Mesmo entre os “domicílios conectados”, 27% do geral e 47% das classes D e E só acessam a internet pelo celular. Por fim, de acordo com a Anatel,
55% dessas conexões móveis se dão na modalidade pré-paga, com baixos limites de tráfego de dados, o que se repete nos chamados clientes “controle” que têm planos pós-pagos.

Dados preliminares da pesquisa TIC Kids Online 2019, divulgados agora no dia 12 de maio atualizam esse cenário. De acordo com o estudo, 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, o equivalente a 17% dessa população, vivem em casas sem acesso à internet no Brasil. Nas áreas rurais, a exclusão chega a 25% dessa faixa etária. Ela é maior também nas regiões Norte e Nordeste (21%) e entre as classes D e E, em que chega a 20%. Além disso, a pesquisa mostra que 11% dessas crianças e jovens não tinham acessado a internet nem em casa nem em qualquer outro espaço nos três meses anteriores à entrevista, o que as classifica como uma parcela da população não usuária da rede. “Em tempos de coronavírus e isolamento social, a rede se torna ainda mais importante para garantir a continuidade da aprendizagem, manter contato com amigos e cuidar da saúde mental, se proteger contra a violência e ter acesso a informações confiáveis”, afirma o texto da Unicef Brasil, propondo que o governo federal e as empresas de telefonia “invistam para prover o acesso livre à internet para todas as famílias vulneráveis”. A entidade propõe, concretamente, que todas as famílias beneficiárias do auxílio emergencial ou que tenham renda percapita mensal menor que R$ 178 tenham garantido acesso gratuito à internet.

Tudo junto e misturado

Tudo isso ajuda a compor o retrato de um país cuja desigualdade social já era alarmante muito antes de a pandemia chegar por aqui. Dados do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, divulgados em agosto do ano passado mostravam que, nos últimos cinco anos, a renda per capita do 1% mais rico da população cresceu 10,1% acima da inflação enquanto a dos 50% mais pobres caiu mais de 17%. “Nunca tivemos um sistema de proteção social amplo, universal, que tivesse de fato um comprometimento responsável, permanente e regular com a redução das desigualdades sociais”, lamenta Ivanete, ressaltando que nenhuma iniciativa nesse sentido se sustenta “só com saúde, previdência e assistência”. Ainda mais quando essas políticas sofrem um longo processo de subfinanciamento.

“O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo"
Ivanete Boschetti

A chegada da Covid-19 tem todos os elementos para agravar ainda mais esse cenário. Primeiro na expressão da própria doença e da sua letalidade – já que nas aglomerações das favelas, dos asilos, dos ônibus lotados e outros espaços semelhantes, o vírus encontra condições mais favoráveis de transmissão. Segundo, pelo agravamento de uma crise econômica que é anterior à epidemia e já castigava os mais pobres. Ivanete resume: “O que a pandemia está fazendo é revelar para o Brasil uma condição de desigualdade, de falta de acesso e de inexistência desse sistema de proteção social que as pessoas que pesquisam e estão mais vinculadas a movimentos de defesa dos direitos humanos já vinham avisando há muito tempo”.

 

Pode haver ministério da Saúde sob Bolsonaro?, com Sonia Fleury

Publicado em 19/05/2020, no blog Outras Palavras.

Pesquisadora da Fiocruz questiona papel do ministro, em governo de pensamento único. Pasta, historicamente pautada pela ciência, é empecilho ao presidente — que conta com aval grotesco do CFM. Agora, “só teremos saúde com a democracia”.

Sonia Fleury em entrevista a Maíra Mathias, no Tibungo

OUÇA A ENTREVISTA COMPLETA AQUI, no Tibungo.

Nelson Teich não durou nem um mês no ministério da Saúde. Sua saída, anunciada na última sexta-feira, abriu espaço para que um general assumisse o comando da pasta. Eduardo Pazuello é uma figura totalmente estranha à Saúde. Nomeado por Jair Bolsonaro para tutelar o ex-ministro e não deixar se repetir uma atuação como a de Luiz Henrique Mandetta, visto como insubordinado pelo Planalto, o general levou consigo dezenas de fardados, numa verdadeira ocupação militar do Ministério – algo que não aconteceu nem mesmo na ditadura.

Não sabemos por quanto tempo Pazuello será ministro, mas ele tem uma missão clara: redigir um novo protocolo nacional sobre a cloroquina que agrade Bolsonaro. O presidente, que tinha aparentemente se esquecido da substância, voltou à carga total na semana passada. A exigência de que o Ministério da Saúde orientasse seu uso aos menores sintomas da covid-19 foi a gota d´água para Teich. Mas toda a história demonstra algo muito mais grave: no meio da pior pandemia que várias gerações já viram, a autoridade sanitária nacional não tem autoridade nenhuma.

Para discutir como tudo isso pode afetar o futuro do SUS convidamos alguém que participou da redação do capítulo que criou o Sistema Único na Constituição. Nossa analista da semana é a sanitarista Sonia Fleury.

O Brasil abriu a semana ostentado mais um número preocupante. Com 254 mil casos, ultrapassamos o Reino Unido e passamos a ocupar o terceiro lugar no ranking dos países com mais infecções confirmadas no mundo. Tudo isso parece ser um pequeno detalhe para o governo Bolsonaro que se empenha mesmo em distrair a população da tragédia e animar sua base de apoio nas redes sociais.

Assim, o presidente parece não ter pressa para substituir o general no comando do Ministério da Saúde. E pode entrevistar para o posto figuras tão bizarras quanto o youtuber Italo Marsili, discípulo de Olavo de Carvalho talhado para a radicalização política virtual com suas reinações de que mulheres votam porque são seduzidas pelos candidatos. Tudo isso distrai das falhas no envio de respiradores para estados, do atraso na sanção do pacote emergencial para estados e municípios, do caos que é o sistema de cadastro para o auxílio emergencial de R$ 600, e do loteamento de cargos para o Centrão – que vai abocanhar uma parte do Ministério da Saúde, inclusive.

 

Planos de ação e documentos

Carta-Manifesto das filhas e dos filhos de empregadas(os) domésticas(os) e diaristas

Manifesto divulgado no site Change.org, no dia 17 de março de 2020, junto a um abaixo-assinado.

Esta carta manifesto tem como objetivo acionar a política do bem comum, em que ações individuais são primordiais para o bem-estar da coletividade. Levamos em consideração que, segundo a OMS, estamos inseridas(os) em uma pandemia, com recomendações internacionais de ficarmos em isolamentos e quarentenas voluntárias, sendo necessária, momentaneamente, a restrição do convívio social.

E ao constatarmos que nossas familiares que são empregadas domésticas e diaristas continuam trabalhando normalmente, salientamos a EMERGÊNCIA de atender à quarentena estipulada pelas autoridades e reivindicamos a DISPENSA REMUNERADA das empregadas domésticas e diaristas pelos empregadores para que, assim, cumpram com as exigências de precaução no combate à propagação contagiosa do COVID-19.

O isolamento social é crucial e vai muito além da relação trabalhista. É uma maneira eficaz de evitar a exposição à aglomeração em transportes públicos e outras situações que favorecem a contaminação em massa, levando ao contágio comunitário, como já vem acontecendo. Fato que traz riscos aos empregadores e aos empregados.

Em Miguel Pereira, sul do Estado do Rio de Janeiro, uma senhora de 63 anos veio a óbito infectada pelo novo coronavírus. A mesma continuou a trabalhar como empregada doméstica na casa de sua empregadora, no RJ, que já havia sido diagnosticada com o COVID-19, ao voltar de uma viagem à Itália.

As empregadas domésticas pertencem a uma categoria de trabalhadoras que representam o Brasil. Segundo o IBGE, profissionais que prestam serviços domésticos - o que pode incluir jardineiros, caseiros, empregadas domésticas e diaristas - representam um total de 6,3 milhões de trabalhadores. Todos esses profissionais estão economicamente ativos no País.

Desse grupo, 1,5 milhão trabalham com carteira assinada. Outros 2,3 milhões de trabalhadores atuam sem carteira assinada e 2,5 milhões são diaristas, o que as torna um grupo vulnerável diante do cenário atual.

A situação de pandemia indica que o maior número de trabalhadores neste momento (de grande risco de contágio) estão desamparados por leis trabalhistas. As diaristas estão em situação ainda mais precária e vulnerável, sem contratos legais que possibilitem, por exemplo, negociar adiantamento de férias. Por isso, encontram ainda mais obstáculos em se manterem e garantirem a segurança de seu coletivo familiar, pois recebem por dia trabalhado.

Há anos nossas mães, avós, tias, primas dedicam suas vidas a outras famílias, somos todas (os) afetadas (os) por essa “relação trabalhista” de retrocesso e modos escravistas. Tivemos nossas vidas marcadas por esse contexto, que precisa ser repensado por toda sociedade, sobretudo, pelos empregadores. Nesse contexto, nós, filhas e filhos de empregadas domésticas e diaristas, vivenciamos os incômodos relatados por nossas parentes:

“No meu caso, minha vó trabalhou anos em uma casa de família. Ela tinha seus 63 anos, chegava lá às 6h duas vezes na semana, depois passou a cozinhar, a passar, a lavar terraço… Ganhando apenas R$100, sem a passagem. Em janeiro ela veio a óbito e a mensagem recebida pelo whatsapp foi “ Dona Conceição, arrumei outra pessoa para pôr no seu lugar, já que a senhora não veio mais, a minha casa tá toda suja porque as paredes foram pintadas.”
Nicole Nascimento, Japeri/RJ

“Minha mãe trabalha desde os 6 anos de idade como doméstica e diarista, e a vi muitas vezes ir trabalhar doente para manter seus compromissos. Mesmo falando sobre os riscos do Corona, ela não tem como faltar com risco de ser demitida. As domésticas estão correndo grandes riscos e também são uma grande possibilidade de contágio, principalmente nos transportes nas metrópoles”.
Marcelo Rocha – Mauá/SP

“ Mainha é diarista todo dia uma casa diferente, nesta
segunda feira quando explodiu o lance do coronavírus meu irmão me manda um zap dizendo que a nossa mãe não queria entrar em casa pois a patroa teria dito a ela que estava com febre e que era para minha mãe ficar atenta. Esse episódio fez mainha tomar um banho de álcool em gel, não por desinformação era por DESESPERO de alguém que ela ama dentro de casa pegar o coronavírus.
Yane Mendes, 28 Anos- Totó-Recife PE

“Me recordo de várias histórias, do trabalho excessivo, da sobrecarga e ainda presencio ela trabalhando com 66 anos de idade mesmo aposentada. Uma vez aconteceu uma situação, uma não, várias vezes, ela precisou se ausentar do trabalho por motivo de doença e pediu para que ligasse avisando da sua falta, assim fiz e ouvi: “Mas quando sua mãe vai voltar?” Na hora minha resposta foi certeira: “Simples, quando ela melhorar!”.
Laura Cristina, 29 anos- Santa Luzia/MG

Dito isto, apresentamos medidas concretas que podem e precisam ser cumpridas pelos empregadores, visando o bem comum, sendo elas:

Dispensa remunerada imediata de domésticas, com carteira assinada ou informais, e de diaristas;
Adiantamento das férias em sua totalidade ou de forma parcial;
Caso o empregado more na casa do empregador e esteja em grupo de risco, o mesmo não poderá ser colocado em situações de risco de contágio, como: ir a supermercados, farmácias, shoppings e demais espaços públicos, evitando assim, quaisquer tipo de aglomerações.

Esta carta é assinada por filhas e filhos de empregadas domésticas e diaristas que prezam pela saúde, cuidado, coletivo e para além de tudo a vida de suas mães!

Brasil, março de 2020
#QuarentenaRemuneraJa
#PelaVidadasDomesticas
#PelaVidadeNossasMães

 

CUFA: Propostas de medidas para reduzir os impactos da pandemia de Covid-19 nos territórios das favelas brasileiras

Texto originalmente publicado no site da CUFA, em 18 de março de 2020.

Considerando a enorme desigualdade social brasileira, a alta taxa de desemprego e a crescente informalidade do trabalho à qual estão expostas muitas famílias;

Considerando que a crise gerada por essa pandemia irá somar-se a uma situação já delicada, que causará um enorme impacto econômico e social, principalmente para as populações que sempre tiveram seus direitos de cidadania vilipendiados;

Vimos, por meio desse documento, propor medidas para reduzir os impactos da pandemia de Covid19 nos territórios das favelas brasileiras:

Sabemos que são necessários bem mais ações e que este conjunto de medidas visa alcançar um público que ficou fora das medidas formais adotadas até aqui. Em particular, os que se encontram economicamente fragilizados e habitantes em territórios de desigualdade. Os números, que nos ajudam a focalizar estas medidas, são: 77 milhões de pessoas estão no cadastro único; 66 milhões de pessoas de renda muito baixa (menos de ½ SM per capita); 41 milhões no bolsa família; 11 milhões com renda não muito superior a ½ SM.

Diante do exposto, sugerimos as seguintes propostas e deixaremos no ar, durante uma semana, para colhermos sugestões de todos para compor este documento, que será levado até os poderes públicos executivos e legislativos responsáveis pelas decisões políticas do país:

a- Distribuição gratuita de água, sabão, álcool 70º em gel e água sanitária em quantidade suficiente para cada morador das favelas brasileiras.

b- Organização em mutirões do Sistema S e das Centrais de abastecimento para a distribuição de alimentos durante os meses de março, abril, maio e junho, meses em que são esperadas muitas pessoas infectadas pelo novo Coronavírus. Essa distribuição de alimentos, principalmente para as famílias que tenham crianças, idosos ou pessoas com maior risco de contraírem a Covid19, é uma medida humanitária urgente: tanto para manter a alimentação para as crianças que não estarão frequentando a escola, quanto para manter a integridade imunológica das pessoas mais suscetíveis ao vírus.

c- Aluguel de pousadas ou hotéis para idosos e grupos vulneráveis com estrutura para repouso; nas favelas, na maioria dos lares, não há possibilidade de isolamento, o que compromete a saúde de todos.

d- Parceria com agências locadoras de veículos ou com operadores de transportes de passageiros (vans e ônibus) para a locomoção imediata de pessoas infectadas para centros de saúde, quando houver indicação médica.

e- Instituição do Programa de Renda mínima para as famílias já inscritas no Cadastro Único e adicional de renda para os cadastrados no Bolsa Família. Aumento do apoio financeiro para famílias já inseridas no programa de tarifas sociais.

f- Decreto apoiando economicamente as micro e pequenas empresas que tenham autorizado seus funcionários a permanecerem em casa (sem desconto no pagamento).

g- Apoio às empresas de água, luz e gás que isentarem o consumidor do pagamento durante 60 dias, para famílias com renda de até 4 salários mínimos.

h- Incentivo para que a população compre dos pequenos comerciantes, mais frágeis frente aos problemas econômicos advindos da pandemia.

i- Liberação de pontos de internet junto às empresas de fibra ótica para garantir acesso universal à rede. Isso é primordial para a comunicação de medidas de prevenção e cuidados para a população.

j- Financiamento para as redes de comunicação próprias de cada favela: rádios comunitárias, sites, jornais impressos ou virtuais, TVs.

k- Apoio financeiro específico para as famílias das crianças que estarão impedidas de frequentar as creches.

l- Apoio financeiro específico para famílias com pessoas portadoras de deficiência.

m - Criar uma rede de comunicação com apoio técnico do Ministério da Saúde para filtrar e fazer verificações, em tempo real, das informações compartilhadas em redes sociais para as favelas.

n - Ampliação das equipes de saúde da família para prevenir e informar as favelas, para que se evite lotação nos hospitais.

Essas medidas, além de humanitárias e eticamente defensáveis, visam preservar o Sistema Único de Saúde (SUS) de um colapso frente ao contingente projetado de pessoas infectadas. Um colapso do SUS não interessa a ninguém, pois o Sistema Único de Saúde brasileiro é um patrimônio de toda a nossa sociedade.

Sem deixarmos de mencionar que a redução da demanda comercial, necessariamente, provocará um impacto econômico relativamente perverso. Esse impacto econômico não é trivial, que levará a uma desaceleração da economia como um todo. Causando um problema maior, principalmente, para a população das favelas.

 

Periferias e Pandemia: Plano de Emergência, já!, por Sonia Fleury e Paulo M. Buss

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, em 25 de março de 2020.

Comunidades onde mora a maior parte dos brasileiros requerem ações especiais contra a Covid-19. Enfrentam a precariedade. São solidárias e potentes. Ação do Estado precisa respeitar autonomia local. Eis algumas propostas:

A pandemia do Covid-19 chegou às favelas. Embora o vírus não discrimine por classe social ou raça, as condições socio-sanitárias serão determinantes para dizer quais estarão em melhores condições de sobreviver e quais estarão destinados a morrer.

Favelas e periferias enfrentarão a pandemia em condições mais adversas, decorrentes do descaso dos governos em prover condições adequadas de abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, habitação e urbanização, transporte público, atenção à saúde. Não se trata mais de falar na ausência de políticas públicas para esses territórios, mas de uma necropolítica, que condena ao extermínio pobres, negros e mestiços nas favelas.

Com a pandemia, torna-se imperioso que o poder público passe a coordenar ações estruturais e emergenciais que impeçam o extermínio massivo dessas populações. No entanto, autoridade não se confunde com autoritarismo e arbítrio, já que em situações de crises como essa, governantes são tentados a exacerbar o poder coercitivo, desrespeitando direitos humanos e sociais. Em uma pandemia o poder de coerção é fundamental, desde que a autoridade legítima atue em defesa da cidadania, compartilhando de forma transparente informações, mobilizando os recursos públicos e privados emergenciais e coordenando, de forma democrática e participativa, os esforços conjuntos para o enfrentamento da situação.

As favelas sofrem com um conjunto de carências, mas possuem enorme potência, no sentido de uma cultura de solidariedade, bem como um conjunto de organizações e atores: comunicadores, igrejas, templos e centros, associações de moradores, empresas locais e serviços, grupos musicais, coletivos de artistas e poetas.

Até recentemente o plano de contingência proposto para o combate à pandemia desconsiderou a realidade das favelas, com propostas voltadas à classe média, como isolamento social, trabalho em casa e medidas de higiene, circulação de ar, etc. impraticáveis em situações de falta de água, espaços insalubres e transporte coletivo em condições insuportáveis de aglomeração.

Agora que a mídia e as autoridades deram-se conta que a direção do contágio pode ser revertida, que medidas concretas precisam ser tomadas?

Renda básica de cidadania – Imediata aplicação da Lei nº 10.835, que institui a renda básica de cidadania, com um valor emergencial de 70% do salário mínimo. Sendo de caráter universal, evitará demoras na sua aplicação, ou a exclusão dos informais e autônomos não relacionados no Cadastro Único do governo e que serão duramente afetados. Aqueles que quiserem renunciar à renda básica poderão destinar os recursos ao Fundo Nacional de Saúde.

Teto de gastos sociais – Revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016, o que já acarretou perda de mais de R$ 10 bilhões para o orçamento da saúde. O teto de gastos e o contingenciamento de despesas não produziram melhorias econômicas e têm levado à deterioração dos serviços públicos hospitalares e da atenção primária.

Comissão nacional – Criação de uma comissão nacional, envolvendo governos e cientistas, visando propor soluções de enfrentamento da pandemia e suas consequências, em suas múltiplas dimensões: saúde pública, investimentos em produtos essenciais ao combate, frentes de trabalho e emprego nas cidades, favelas e periferias, plano habitacional nacional, estadual e local, obras de saneamento básico, transporte, logística etc.

Plano de contingência em favelas e periferias – Apesar das semelhanças em termos de carências de infraestrutura, cada território é singular e possui uma sociedade local diferenciada. Portanto, não se deve falar de favela como um genérico, mas de favelas, com suas capacidades e necessidades. O plano de contingência deve envolver aspectos sanitários, urbanísticos, habitacionais, logísticos e de infraestrutura, dentre outros.

Abastecimento de água, luz e coleta de lixo – Governos estaduais e locais devem usar seu poder legal para obrigar que as empresas concessionárias adequem o fornecimento de seus serviços imediatamente.

Preço do gás – Redução imediata do preço em 60%.

Fundo emergencial – Criação de fundos emergenciais estaduais e municipais, com recursos próprios, transferências da União, recursos do Sistema S e doações de empresários e da população, para serem usados em ações prioritárias definidas pelos comitês sanitários. Usar também os recursos destinados à merenda escolar e de outros serviços públicos que se encontrem paralisados.

Comitês sanitários – Em cada favela deve ser criado um comitê formado por técnicos do governo e da sociedade, como engenheiros, arquitetos, agentes de saúde, assistentes sociais e lideranças comunitárias, visando identificar as situações de maior vulnerabilidade em termos de moradias sem água, luz ou coleta de lixo, cômodos sem ventilação e com apenas um ponto de água para uso, pessoas com doenças e deficiências que exijam cuidados especiais, famílias em situação de fome e insegurança nutricional, dentre outras.

Levantamento dos recursos que a comunidade possui, como comunicadores comunitários, serviços de saúde e assistência social, escolas públicas e privadas, empreendimentos fabris e comerciais, coletivos e grupos de jovens etc. Definição de plano imediato de ação, com abertura de janelas, pontos de água, retirada de pessoas em situação de maior risco e sua alocação em hotéis, distribuição gratuita de cestas básicas e materiais de higiene e remédios, logística para transportar pacientes, dentre outros.

Testes em favelas – Priorizar em favelas a aplicação de testes para detecção de pessoas contaminadas e definição de estratégia de isolamento.

Comunicação – Utilizar os recursos da comunicação comunitária, de músicos e artistas locais, para mobilizar jovens, crianças e adultos para as medidas de prevenção, em especial a higiene e manutenção do isolamento.

Mobilização de recursos públicos e privados, com a requisição do uso de propriedades como hotéis e pousadas, espaços desocupados, empresas de transporte, distribuidoras de gás e outras, para atender às demandas locais.

Internet livre – Só será possível manter em isolamento os jovens e adultos se eles puderem ter acesso livre à internet, o que deve ser decretado, obrigando as empresas provedoras a liberação dos serviços nessas áreas.

Atividades escolares, culturais, religiosas e de exercícios físicos – Mobilização de professores, artistas, produtores culturais, religiosos e fisioterapeutas para desenvolverem programas de atividades para diferentes faixas etárias, disponibilizados pelo poder público com uso de meios privados e comunitários.

Fortalecer a atenção à saúde e à assistência – Reforço do SUS, com contratação de profissionais, treinamento e distribuição imediata de equipamentos de proteção para os profissionais, envolvendo agentes comunitários, profissionais do programa de saúde da família, assistentes dos CRAS e CREAS, unidades básicas e postos de saúde. Fortalecer a gestão do sistema de saúde, visando maior efetividade na transferência de pacientes para os hospitais e reduzindo a peregrinação e os riscos de contágio.

Enfim, a pandemia só pode ser enfrentada com mais SUS e mais democracia, ou seja, governo eficiente, transparente, respeitador da cidadania e dos direitos humanos, mobilizador da sociedade e distribuidor de recursos públicos para os que mais necessitam!

Sonia Fleury é Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ (wikifavelas.com.br).
Paulo M. Buss é Professor Emérito da FIOCRUZ; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

 

Coletivo Juntos pelo Completo do Alemão: Notas sobre o CoronaVírus nas favelas

CARTA ABERTA SOBRE O CORONAVÍRUS NAS FAVELAS

Por Coletivo Juntos Pelo Complexo do Alemão[52]

O processo de contágio pelo novo coronavírus está avançando fortemente sobre a linha de divisão de classes sociais e já chegou nas favelas. E como essa divisão já é definidora, historicamente, de quem merece ter direitos às políticas públicas que possam garantir minimamente o acesso às necessidades mais básicas para a garantia de uma vida digna, urge agirmos para que a situação atual não seja mais nefasta ainda para as(os) moradoras(es) de favelas e outras periferias.

Já faz bastante tempo que muitos de nós vêm denunciando que os dados oficiais sobre as favelas não reflete a realidade, são subnotificados, e existe a necessidade de se rediscutir as metodologias usadas para os espaços de favelas, ainda denominadas como aglomerados subnormais pelo principal instituto de pesquisa do país (IBGE). As subnotificações nas favelas e periferias impactam diretamente na aplicação de recursos públicos em políticas públicas, violando direitos básicos. Não seria diferente agora com as notificações da Covid-19 que é subnotificada no país todo e será menos notificado ainda nas favelas, sobretudo quando explodir o contágio. Portanto:

PRECISAMOS DE APOIO PARA PRESSIONAR O PODER PÚBLICO PARA QUE PROMOVA MAIOR QUANTIDADE DE TESTES NAS FAVELAS E ENCAMINHAMENTOS DEVIDOS DOS CASOS CONFIRMADOS.

Em relação à quarentena ou isolamento voluntários, se faz necessário olhar as favelas por dentro, pelo olhar da(o) morador(a). A dinâmica das favelas sempre foi de ter a rua como a extensão de suas casas, o seu quintal, a sua varanda. As(os) vizinhas(os) são a extensão de suas famílias, muitas vezes. Os locais de sociabilidade no cotidiano das favelas, onde também se negociam estratégias de superação dos problemas diários, são muito diferentes em relação ao restante da cidade. E convenhamos: são tantas as violações históricas de direitos que a galera favelada tem dificuldade, apesar do bombardeio de informações nas grandes mídias, em acreditar que um vírus fará tanto mal assim. Ou seja, estamos produzindo muitas informações, mas elas não estão tendo efeito real nas favelas. Precisamos chegar com informações que sejam assimiladas e isso só entendemos ser possível com comunicações específicas, feita por quem conhece as dinâmicas locais, com linguagens que possam alcançar públicos específicos dentro das favelas. Muitos coletivos estão se organizando localmente nas favelas, mas também nacionalmente (ver: #CoronaNasPerifas), criando estratégias de comunicação direta, feita por comunicadores locais com linguagens próprias para grupos específicos: cartazes informativos (inclusive em HQ), lambe-lambe, carros de som, faixas, além de material (cards) que possa circular nas redes internas de whatsapp. Para isso:

PRECISAMOS DE APOIO PARA REPRODUÇÃO DE MATERIAL E DE RECURSOS PARA CARROS DE SOM, FAIXAS E OUTRAS AÇÕES DE COMUNICAÇÃO.

Outra questão importante a ser considerada é que um número elevado de pessoas nas favelas exercem trabalhos informais. Como garantir o direito de fazer quarentena ou isolamento voluntários, se manter dentro de casa, sem ter acesso a renda mínima para seu sustento? Portanto:

PRECISAMOS DE DOAÇÕES DE CESTAS BÁSICAS COM ESPECIAL ATENÇÃO DE INCLUSÃO DE KITS DE HIGIENIZAÇÃO (sabão, papel toalha, lenços descartáveis, álcool, material de limpeza em geral), ALÉM DE ALIMENTAÇÃO, CLARO.

  • Doação de livros e jogos infantis também são importantes para manter as crinças em casa entretidas.

No Complexo do Alemão estamos atuando conjuntamente - grupos, organizações e pessoas - a partir do coletivo JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO, mas basicamente tudo que foi colocado acima está sendo feito em muitos territórios de favelas por todo o Brasil. Então, precisamos fortalecer esses coletivos de pessoas e organizações locais, considerando sua capilaridade local, conhecimentos produzidos a partir das vivências e ações locais, sobretudo a capacidade comunicacional específica tão necessária neste momento.

Outra questão relevante são as pautas gerais e de políticas públicas emergenciais para a população mais vulneráveis que estão postas e algumas até aprovadas faltando assinatura do executivo. Então:

PRECISAMOS PRESSIONAR E APOIAR PUBLICAMENTE:

    • Renda Básica de Emergência de R$300 por mês para todos os brasileiros mais pobres do país. Pressionar o congresso:rendabasica.org.br;
    • Exigir o cumprimento dos projetos aprovados na ALERJ em 18/03 relacionados à pandemia do coronavírus e seu impactos. E sancionado pelo governador em 23/03. Ver projetos:
      http://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/48468
      • LEI Nº 8768 - conceder bolsa-auxílio para as famílias responsáveis por estudantes da rede pública de ensino;
      • LEI Nº 9769 - Fica vedada a interrupção de serviços essenciais por falta de pagamento, pelas concessionárias de serviços públicos (luz e água). MEIs também estão inclusos;
      • LEI Nº 8772 - Renda mínima emergencial à empreendedores solidários cadastrados no CADSOL ou na Secretaria Estadual de Cultura
    • Apoiar o Manifesto das(os) filhas(os) de empregadas domésticas e diaristas pelo direito à quarentena ou isolamento social com dispensa remunerada. Apoiar:https://linktr.ee/pelavidadenossasmaes;

É necessário reafirmarmos essas pautas gerais e ficarmos atentas(os) para as emergências locais/pontuais, principalmente relativas à regularidade no fornecimento de água em algumas favelas encaminhando carros-pipas, se for o caso, assim como viabilizar a distribuição de suportes de armazenamento (baldes, caixas d’águas e outros) às(aos) moradoras(es) das áreas mais precárias nas favelas.

NÃO PODE FALTAR ÁGUA NAS FAVELAS. NEM ACESSO À MESMA.

Outro tipo de urgência que precisamos ficar atentas(os) são os casos de doenças que ocorrem como desdobramentos de contextos de forte pressão psicológica. No Complexo do Alemão já temos muitos casos de aumento substancial de doenças, algumas psicossomáticas, decorrente do contexto de violência extrema no cotidiano, tais como: ansiedade, depressão, problemas coronarianos, infartos, AVCs e diversos tipos de paralisias (permanentes, provisórias / parciais e faciais) como atesta a organização Instituto Movimento & Vida conduzida pela fisioterapeuta, Mônica Cirne, que cuida de parcela desses casos. Essas doenças tendem a aumentar no atual contexto do coronavírus. Portanto:

PRECISAMOS CRIAR CAMINHOS DE ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS PARA O TRATAMENTO DA POPULAÇÃO FAVELADA ANTES QUE SEJAM SOMATIZADAS (passem do psicológico para o físico).

E por último, mas não menos importante, devemos nos atentar para dois pontos importantíssimos como desdobramentos desse cenário caótico em tempo do coronavírus: AUMENTO DA REPRESSÃO DAS FORÇAS POLICIAIS e CULPABILIZAÇÃO DA FAVELA.

Foi reconhecido, com aprovação do congresso em 18/03/2020, o Estado de Calamidade Pública pelo governo federal que atinge excepcionalidades principalmente no campo dos orçamentos de Estados e Municípios, mas abre a possibilidade de termos outras exceções no atual contexto como o Estado de Sítio ou o Estado de Defesa. Se historicamente as favelas já são oprimidas sistematicamente à revelia das leis, imagine na situação atual, sobretudo num Estado de Exceção? A favela não precisa de maior repressão das forças policiais, nem de controle opressivo que possa dificultar ainda mais o acesso ao atendimento médico quando for necessário. Precisamos de políticas públicas eficientes que atenda as especificidades das favelas.

Também temos plena consciência que historicamente a falta de acesso à política de habitação para grande parcela da população e a falta de direitos básicos trouxe nossa população favelada a habitar nas condições que era possível e com os recursos próprios e disponíveis. Portanto a proliferação do novo coronavírus nas favelas deverá ser mais intenso pela proximidade das casas, falta de saneamento e outras políticas que pudessem amenizar essa situação. Logo crescerá a narrativa que a culpa da grande proliferação seja das favelas. Então vamos sinalizar, desde agora, o lugar das favelas e das(os) faveladas(os) nesta pandemia e como a falta de direitos básicos, que poderia garantir o mínimo de dignidade humana, para essa população as coloca como as maiores vítimas, fragilizadas e vulnerabilizadas. A sociedade em geral precisa assumir sua responsabilidade por colocar tantas irmãs e irmãos nessas condições de sobrevivência e colaborar para que possamos superar esse momento com mais solidariedade.

Desejamos que após superar esse momento possamos construir uma sociedade menos individualista, que perceba os privilégios de classe e entenda que todas e todos precisam estar incluídos, ou nada seremos.

JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO
Coletivo de grupos, organizações e pessoas voltadas para acompanhar, COMUNICAR, pressionar, exigir e denunciar questões relevantes para o desenvolvimento do Complexo do Alemão, desde de 2013.

Juntos mais uma vez, agora contra o coronavírus..


ATIVIDADES REALIZADAS

Página do JUNTOS PELO COMPLEXO DO ALEMÃO no facebook
facebook.com/juntospelocomplexodoalemao/

  1. Covid19NasFavelas

DOAÇÕES

Doações em dinheiro e em mantimentos.

 

 

Carta do Coletivo de Guias Turísticos do Santa Marta: suspensão das atividades

FicaEmCasaSM.jpeg

O coletivo de guias turísticos do Santa Marta vem por meio desta informar que suas atividades de guiamento na favela Santa Marta estão suspensas por conta da demanda do corona virus. 
Estamos suspendendo nossas atividades pelo período de 15 dias porque reconhecemos a importância de colaboramos pra conter a disseminação dessa doença. Então estamos parando nossos guiamentos e atividades turísticas a partir desse domingo, dia 15/03/2020.
É importante ressaltar que a demanda pelos tours não foi totalmente proibida em nossa cidade, então não temos nenhuma responsabilidade sobre guiamentos feitos por conta própria por moradores que estão aproveitando a oportunidade pra capitalizar e lucrar com esse momento delicado pelo qual todos passamos. 
O coletivo visa preservar e contribuir para que o corona virus não afete nossa comunidade e também ajudar e compartilhar os melhores procedimentos para que a população favelada fique segura e resguardada dos efeitos do corona virus.
Após esse período nos reuniremos para avaliar os caminhos a serem seguidos. Até lá seguiremos em atitude preventiva para que o virus não se propague no Santa Marta. 

Coletivo de Guias do Santa Marta: 

• Allan Basílio (guia local)
• Andréia e Paulo ( Santa Marta souvenirs 
• Barbosa MB ( Rio Favela)
• Elias Duarte (TouRio - Favela Santa Marta)
• Gilson (Favela Scene)
• Jean René Mandundu - M- Washiwa.( JR Tour).
• Jonatas Nogueira (guia local)
• Marco Antonio e Mario ( Favela Top Tour)
• Jose Carlos, Salete Martins e Veronica Moura ( Santa Tours)
• Sheila Souza e Roberta Souza (Brazilidade)
• Thiago Firmino (Favela Santa Marta Tour)

 

Carta Manifesto #CoronaNaBaixada, na Baixada Fluminense (RJ)

Somos uma articulação de grupos, coletivos, organizações, lideranças sociais, iniciativas e movimentos da Baixada Fluminense empenhada a combater a proliferação do coronavírus (COVID-19) e com propostas para enfrentar a crise nesse momento de pandemia.

A gente está trabalhando com três frentes:

1. Compartilhar experiências de solidariedade
2. Criar / disseminar uma estratégia para orientar as pessoas a ficarem em casa
3. Pautar a mídia e o poder público, analisando o que cada prefeitura está fazendo, quais medidas estão sendo tomadas e como está o dia a dia nos municípios para enfrentar os problemas.

Elaboramos uma carta manifesto com 7 propostas para garantir direitos à população da Baixada Fluminense.

VEJA AQUI A CARTA MANIFESTO E ASSINE!

 

As 23 propostas das periferias para combater a pandemia de coronavírus, por Centro de Estudos Periféricos (CEP)

Texto manifesto publicado no blog Periferia em Movimento, em 01 de abril de 2020.

A pandemia de coronavírus afeta a todos, mas de formas diferentes. Numa sociedade como a brasileira, marcada por desigualdades sociais e estruturada pelo racismo, o machismo e a lgbtfobia, os contrastes são potencializados. Por isso, a resposta à crise sanitária também precisa considerar diferentes realidades.

“As medidas importadas [de outros lugares pelo governo brasileiro] não são eficientes. O isolamento social é necessário, eficiente, porém a gente não consegue fazer com que pessoas permaneçam na casa e não morram se nessa casa não tiver água, saneamento básico, ou se as pessoas foram despejadas”

Nataly Ramos, educadora social, moradora do Jardim Julieta (Zona Norte de São Paulo) e integrante do Centro de Estudos Periféricos (CEP)

Há exatamente 03 semanas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou pandemia de coronavírus, acendendo o alerta em todo o mundo. Logo de início, a Periferia em Movimento listou 16 perguntas sobre o impacto a covid-19 na população de periferias e favelas Brasil afora.

No início desta semana, o CEP publicou uma carta com 23 medidas para conter a pandemia a partir da realidade das periferias de São Paulo. Composto por moradores e moradoras de bairros periféricos que produzem conhecimento e incidem sobre a realidade, o grupo de estudos é vinculado ao Instituto das Cidades/Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Eu tô vendo a polícia passar com o carro de som e intimidando moradores, em vez da assistência social estar passando e conscientizando as pessoas”, observa Nataly.

Entre as medidas propostas pelo CEP, está a distribuição gratuita de kits de limpeza e higiene pessoal, a suspensão de cobranças de aluguel, água, luz e o congelamento nos preços de itens essenciais como a cestá básica de alimentos e o botijão de gás.

“A gente viu a necessidade de reafirmar medidas que já vem reivindicando faz anos”, ressalta Nataly. O CEP está em contato com parlamentares para pautar e efetivar as propostas.

Confira abaixo as medidas emergenciais propostas pelo CEP:

  • Montagem urgente de hospitais de campanha nas escolas e terrenos ociosos das quebradas;
  • Distribuição de água com a disponibilização de caminhões pipas para regiões que não tem saneamento básico;
  • Distribuição gratuita de kits de higiene, limpeza e prevenção (álcool gel, álcool líquido, sabonetes, toalhas, escovas de dente, pastas de dente, máscaras);
  • Suspensão da cobrança de contas de água e luz;
  • Suspensão da cobrança de parcelas e juros de financiamentos em geral, incluindo as famílias com dívidas com a Caixa;
  • Suspensão da cobrança aluguéis residenciais e comerciais;
  • Congelamento do preço do botijão de gás e dos alimentos da cesta básica;
  • Compra de itens de primeira necessidade dos comércios de bairro, por parte do poder público, para distribuição gratuita nas quebradas;
  • Rápida liberação dos recursos da renda mínima para trabalhadores/as informais e desempregados;
  • Manutenção da distribuição de merendas nas escolas nas regiões mais pobres;
  • Campanha de conscientização mais amplas, com carros de som, músicas e vídeos que dialoguem com as quebradas;
  • Não à policialização da situação, evitando o aumento do encarceramento;
  • Não ao isolamento vertical. Nas periferias, diversas gerações da mesma família dividem a mesma casa ou o mesmo quintal com frequência. Quem tiver a obrigação de sair pra trabalhar, vai certamente trazer o vírus para casa;
  • Reforço às medidas de proteção para quem trabalha em setores essenciais, como transportes, supermercados, feiras livres, farmácias, fábricas, abastecimento, entre outros;
  • Transferência de pessoas que fazem parte dos grupos mais vulneráveis para quartos adequados de hotéis disponibilizados pelo poder público.
  • Descentralização dos kits de testagem do centro para os bairros de periferia em UPAs e UBS, com orientação e insumos para o gerenciamento de casos menos graves. Essa medida evitaria também deslocamentos desnecessários;
  • Ampliação da rede de wi-fi grátis nas periferias;
  • Estabelecimento de fluxo para o abrigo de mulheres em situação de risco de morte com a desburocratização imediata do acesso às Casas-Abrigo para as mulheres, dispondo de um número público que disponha de vagas para o abrigo emergencial em caso de violência, além do acolhimento das demais demandas divulgadas em Nota pela Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da Zona Leste
  • Não fechamento do atendimento no hospital de referência em aborto legal, tendo em vista que são procedimentos que não podem esperar e que devem sofrer um aumento de demanda durante o período de confinamento, junto com a violência doméstica;
  • Não à diminuição da quantidade de trens e metrôs, evitando assim aglomeração no transporte de trabalhadores de serviços essenciais;

Como medidas para conter a crise, o Centro de Estudos Periféricos recomenda também:

  • Taxação das grandes fortunas e vinculação desses recursos ao SUS;
  • Suspensão imediata do pagamento dos juros da dívida pública;
  • Fim do teto de gastos para saúde e educação;

ACESSE AO DOCUMENTO COMPLETO AQUI!

 

Manifesto das favelas sobre o novo coronavírus, por Central dos Movimentos Populares

A pandemia do novo Coronavírus atinge a todos, mas de forma muito mais grave a população moradora das favelas e dos assentamentos precários!

Nós, das favelas e ocupações, filiadas à Central de Movimentos Populares (CMP) e à União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), vimos por meio deste Manifesto afirmar que estamos praticando ações concretas de solidariedade, organizando e estimulando pontos de arrecadação e distribuição de alimentos, bem como de materiais de limpeza e higiene para o povo que já está passando fome. Contudo, temos consciência de que nossa ação, embora seja muito importante, não é suficiente para a resolução do enorme problema social nessas comunidades. Por isso, exigimos ações urgentes do Estado Brasileiro no enfrentamento ao caos e à tragédia social em curso. Entendemos que são necessárias medidas imediatas por parte dos governos no combate à crise causada pelo novo coronavírus, que atinge as favelas e outras comunidades igualmente pobres em nossas cidades. Sem atitudes firmes e concretas corremos o risco de levar à morte milhares de pessoas e ao consequente aumento da fome, da miséria e do desemprego.

O mundo passa neste momento por uma crise de saúde pública com poucos precedentes na História da Humanidade. A epidemia do novo coronavírus se espalhou rapidamente por todos os continentes, atingiu de forma indistinta praticamente todos países do Norte e do Sul e vitimou milhões de pessoas. Estima-se que mais da metade da humanidade esteja em processo de isolamento social, o que tem provocado graves impactos humanitários, econômicos e socais. Especialmente para os países mais pobres ou de grande desigualdade social, como o Brasil.

No nosso País, milhões de pessoas moram de forma precária em favelas, cortiços e ocupações sem saneamento básico, com pouco ou sem nenhum acesso à água encanada que garanta condições mínimas de prevenção e proteção. Essa situação nos deixa em condições sem precedentes de emergência social, colocando em risco de transmissão do vírus milhões de pessoas que vivem em ambientes absolutamente inseguros.

No Brasil mais de 15 milhões de famílias – cerca de 60 milhões de pessoas estão em favelas, ocupações e loteamentos, em situação de risco social e em condições miseráveis de habitação.

Se de um lado o isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) tem sido a maneira mais eficaz de diminuir – ou mesmo evitar a contaminação – e ainda não causar um colapso do sistema de saúde, de outro lado existem a preocupação sobre como estabelecer medidas para conter a disseminação do vírus entre as comunidades mais pobres, onde os moradores e vizinhos estão muito mais próximos uns dos outros.

Dados do IBGE de 2010 apontam que existem 6.329 favelas no País. Nelas está a maior parte dos cerca de 13,5 milhões de famílias que vivem na extrema pobreza, sendo que 72% da população de favelas não têm nenhum valor na poupança.

Outra preocupação está nos impactos do isolamento de milhões de trabalhadores e trabalhadoras que estão na informalidade. São ambulantes que, literalmente, trabalham pela manhã para alimentar suas famílias à noite. Quase 39 milhões de pessoas estão na condição de informais, 14 milhões encontram-se desempregadas e 29 milhões estão empregadas, ganhando até 3 salários mínimos.

Para que este enorme contingente de pessoas consiga ficar em isolamento é preciso que o dinheiro da renda básica aprovado pelo Congresso Nacional seja pago logo, juntamente com outras medidas de apoio emergencial, que possam, de fato, chegar às famílias moradoras das favelas. Por isso, estamos participando da campanha “Paga Logo Bolsonaro”. É urgente pagar já a renda básica de 600 a 1200 reais, por um período de 3 meses.

Bolsonaro é um genocida que tem se colocado contra a política de isolamento social. Age na contramão das orientações estabelecidas pela OMS e pelas autoridades sanitárias do País. Não lidera a Nação para enfrentar a pandemia. Ao contrário, sua única preocupação tem sido de produzir factoides que visam assegurar seguidores, com vista às próximas eleições presidenciais. Suas ações e falas são no sentido de passar a falsa ideia de que não é político; afirma ser contra e vítima do sistema político; se coloca até mesmo contra seus ministros, e constrói uma narrativa para se livrar da responsabilidade dos efeitos da crise.

A população moradora das favelas rejeita a proposta absurda do presidente Bolsonaro de relaxar ou pôr fim ao isolamento social. Pesquisa recente do Instituto Data/Locomotiva realizada em 269 favelas do País aponta que 80% dos moradores têm medo de que falte comida para seus filhos mas, mesmo assim, 71% se opõem ao fim do isolamento. A pesquisa revela ainda que, 8 entre cada 10 moradores tiveram queda de renda após o isolamento, apenas 13% têm mantimentos em casa suficiente para menos de dois dias e mais da metade para menos de uma semana. O levantamento mostra também que 56% do moradores acreditam ter que sair de casa daqui a uma semana para procurarem renda.

Ao se colocar contra o isolamento social, Bolsonaro cria uma enorme confusão, aprofundando a instabilidade política e fragilizando ainda mais a democracia. Seu objetivo é criar situações que venham favorecê-lo no futuro. Trabalha na linha de que, se o País conseguir evitar uma grande tragédia em virtude do isolamento, terá ganhos políticos. Por outro lado, acredita que se a crise da saúde pública não for evitada, também terá ganhos políticos. Grande oportunista que é, dirá que ficou contra o isolamento.

Nós, que atuarmos junto a diversas favelas, defendemos o investimento de bilhões de reais na área da Saúde e em medidas de proteção do emprego e da renda, com apoio ao pequeno e médio negócio, responsáveis pela maioria dos empregos.

Estamos participando das campanhas de solidariedade de doação de alimentos e materiais de higiene e limpeza promovidas pela CMP, UMM e as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Nossas favelas e comunidades estão criando centenas de pontos de solidariedade. No entanto, temos consciência de que isso só não resolve o drama, a fome, o medo e o desespero das pessoas. Mesmo praticando a solidariedade de classe, é preciso cobrar do Estado a resolução do problema. É responsabilidade dos governos adotarem medidas concretas e urgentes para o enfretamento da crise.

Neste sentido, é fundamental irmos além da solidariedade. Assim, exigimos que os governos cumpram suas obrigações e garantam condições para que o povo mais excluído possa enfrentar e sobreviver à esta situação de crise. Além do imediato pagamento da renda básica, exigimos a suspensão dos despejos por falta do pagamento de aluguel, suspensão de todas as reintegrações de posse, isenção de taxas de água e energia e Vale Gás. E, finalmente, defendemos a imediata suspensão do pagamento das prestações dos mutuários de quaisquer programas habitacionais.
Fora Bolsonaro!

Abril de 2020
União dos Movimentos de Moradia
Central de Movimentos Populares

ACESSE aqui o manifesto completo.

Confira também a live realizada pela Central de Movimentos Populares em 17 de abril de 2020 sobre o manifesto.

 

Combate à pandemia nas periferias urbanas, favelas e grupos sociais vulneráveis: propostas imediatas, por FNRU

Fórum Nacional da Reforma Urbana reúne 79 entidades, redes, coletivos e movimentos, incluindo o Dicionário de Favelas Marielle Franco, em documento que será encaminhado para órgãos públicos competentes com propostas de ações de combate ao novo coronavírus nas diversas periferias do país, na perspectiva do direito à Cidade e da justiça social.

A pandemia do Covid-19 trouxe para o Brasil uma gravíssima crise sanitária, econômica, política e social, com brutal piora nas condições de vida do povo, sobretudo dos mais pobres. Diante da demanda de concretas, um grupo de 79 entidades da sociedade civil elaboraram um documento político contendo diretrizes concretas para o enfrentamento da pandemia no curto e no médio prazo, com uma completa mudança na política econômica e social.

As propostas apresentadas no documento são voltadas prioritariamente para os habitantes dos territórios populares, nas periferias, nos assentamentos informais, nas ocupações, para a população em situação de rua, e outros grupos sociais vulneráveis. O documento destaca que as medidas relacionadas aos assentamentos informais têm que ser acompanhadas e articuladas a medidas de proteção social e econômica que precisam ser implementadas no País e que vão muito além de programas de renda mínima.

As medidas estão divididas em 13 frentes, que incluem:

  1. Elaboração de Planos Emergenciais pelos Governos da União, do Distrito Federal, dos Estados e Municípios.
  2. Garantia ao Acesso de Equipamentos e Serviços de Higiene e Alimentação
  3. Garantia do Acesso aos Serviços Básicos e Promoção da Universalização do Saneamento Básico
  4. Auxílio Financeiro às Famílias de Baixa Renda
  5. Fortalecimento das Ações Comunitárias e dos Espaços de Participação Social
  6. Campanhas de Informação e Comunicação.
  7. Promoção da Mobilidade em Tempos de Quarentena e Restrição à Circulação
  8. Direito Universal à Saúde Pública de Qualidade
  9. Segurança de Posse e Direito à Moradia
  10. Solidariedade à População em Situação de Rua e adoção do Programa Quarto de Quarentena
  11. Fim da Política de Militarização dos Territórios Populares
  12. Política de Prevenção do Covid-19 nas Prisões
  13. Por uma Nova Política Econômica Justa, Democrática e Sustentável

Apesar do seu impacto desigual, a pandemia deixou claro aquilo que profissionais de saúde e movimentos sociais denunciam há décadas: a necessidade de termos um sistema de saúde pública abrangente e universal com alto nível de qualidade, e mostrou a importância de todos terem acesso ao saneamento ambiental.

CONFIRA AQUI o documento político completo e a lista de entidades que subscrevem às recomendações.

 

Plano de ação para enfrentamento da Covid-19 nas favelas (RJ) 

Publicado em 01/05/2020 - Por Vitor Abdala - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

Pesquisadores e lideranças comunitárias entregaram ao estado e ao município, um plano para combater a pandemia do novo coronavírus (covid-19) nas comunidades carentes do Rio de Janeiro. O documento traz 13 ações de prevenção, atendimento médico e apoio social para evitar novas infecções e reduzir o impacto da pandemia nos moradores das favelas.

A entrega foi feita de forma virtual durante uma videoconferência com a participação dos pesquisadores, moradores das comunidades e representantes do governo do estado e da prefeitura.

“Esse movimento surgiu de um sentimento de muita angústia e de urgência, e de uma percepção que vai ficando cada vez mais clara que estamos vivendo um momento novo na vida de todos nós. Isso faz com que nosso sinal de alerta esteja elevado, quando a gente pensa na consequência, na medida em que a covid chega às favelas e às periferias”, afirma o pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) Marcelo Burgos.

Construções irregulares

As favelas do Rio de Janeiro são caracterizadas por construções irregulares, com grandes aglomerações de residências e com mais pessoas dividindo uma mesma moradia.

Considerando-se apenas as comunidades que são reconhecidas como bairros pela prefeitura, já foram registrados mais de 200 casos e mais de 30 mortes nesses locais. A Rocinha lidera o ranking, com 71 casos confirmados e oito mortes.

“Muito nos preocupa a situação da Rocinha. A favela é um território que, historicamente, a gente percebe um tratamento de forma desigual. E nesse momento a desigualdade acaba atingindo o cotidiano da população”, disse Leandro Castro, do coletivo Rocinha Resiste. “Que possamos, de alguma forma, não medir esforços para que a população seja melhor atendida”, disse.

Ações de prevenção

Entre as ações de prevenção estão a veiculação de alertas para a população sobre os riscos da doença e a necessidade do uso de máscaras, as ações de desinfecção das favelas (como as que vêm sendo feitas pela prefeitura), teleatendimento (para tirar dúvidas) e a atenção a possíveis difusores (como mototaxistas).

Já nas ações de atendimento, figuram as propostas de criação de postos de atendimento exclusivo para covid-19, de espaços de quarentena assistida e de proteção às unidades básicas de saúde e assistência social.

Por fim, as ações de coordenação e proteção social incluem a racionalização dos equipamentos de saúde locais, a articulação do apoio social e o apoio e a agilização de sepultamentos.

LEIA O PLANO COMPLETO aqui.

 

NOTA PÚBLICA MOVIMENTO FAVELAS NA LUTA

Manifesto publicado em 21 de maio de 2020 nas páginas dos movimentos, como o Maré Vive.

A frente de militantes e moradores de favelas e periferias composta por integrantes de coletivos e movimentos que atuam na promoção de direitos, comunicação e acesso a políticas públicas nas favelas do estado do Rio vem a público para DENUNCIAR as contínuas operações policiais que sistematicamente tiram vidas de pessoas negras e faveladas em nossos territórios, que nos violam física e psicologicamente, que impedem que o trabalho social que realizamos seja efetuado e colocam nossa vida em risco.

Historicamente nossos territórios, favelas e periferias do estado, convivem com o projeto da ausência de políticas públicas como saúde, saneamento básico, moradia e educação. A lacuna da ausência de direitos, nestes espaços majoritariamente negros e não-brancos, se intensifica quando o único braço de amparo que o estado promove é o da militarização. Através de seus aparatos de controle, seus instrumentos bélicos, suas táticas militares de tortura e produção do medo (derivadas do passado histórico brasileiro) utilizam o discurso de “guerra às drogas” para eliminar seus alvos preferidos, moradores jovens de favelas e periferias.

Viemos por meio desta nota, mesmo ao limite de nosso esgotamento e forças, dizer que esta estratégia da morte não deve ser mais tolerada por nenhum morador ou moradora de favela, e que a sociedade de forma geral que também habita espaços de privilégio deve-se levantar contra o estado racista que nos viola cotidianamente.

Desde o início da pandemia de Covid-19, são os coletivos de favela e periferia que vem produzindo saídas para a garantia da segurança alimentar de milhares de moradores de favela do estado do Rio de Janeiro e a redução da curva de contaminação nesses espaços com a distribuição de kits de higiene e orientações de saúde. Tentamos produzir a política pública que não interessa ao estado fazer, porque enquanto nós tentamos matar a fome, o estado tenta nos matar. As operações policiais constantemente vem ocorrendo nos horários em que distribuímos cestas básicas e fazemos nossas ações de saúde pública.

Não toleraremos mais nenhuma morte.
A política de segurança do estado do Rio é um risco a vida física e a saúde, física e mental, de milhares de moradores e moradoras de favelas e periferias.

Witzel, a culpa é sua!

Frente Favelas Na Luta

Nota pública.jpg

 

 

Bibliografia usada nesta página

 

 

 

  1. Mônica Cunha é fundadora do Movimento Moquele e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ.
  2. Bruno França, Caroline Rodrigues, Emanuelle Anastasoupoulos, Milla Gabrieli dos Santos Faria, Monica Oliveira e Rachel Barros.
  3. [1]MACRON, Emmanuel. (2020), “Adresse aux Français”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  4. [2]TRUMP, Donald. “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN!” Tweet, 17 março 2020, 4:31 p.m. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  5. [3]RAWLISON, Kevin. “’This enemy can be deadly’: Boris Johnson invokes wartime language”. The Guardian, 17 março 2020, 19:38 GMT. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/17/enemy-deadly-boris-johnson-invokes-wartime-language-coronavirus
  6. [4]Macron, Johnson e Trump não foram os únicos a falar de “guerra”. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/lideres-adotam-discursos-de-guerra-contra-pandemia.shtml
  7. [5]VON CLAUSEWITZ, Carl. (2007), On War. Oxford World’s Classics, Oxford University Press
  8. [6]Ler, por exemplo, MAQUIAVEL, Nicolau (2010), O Príncipe. Rio de Janeiro: Penguin.
  9. [7]Ver: SIMMEL, Georg. (1992), On individuality and social forms. The University of Chicago Press
  10. [8]SENADO NOTICIAS. “Pandemia põe em xeque teto constitucional de gastos públicos”. 18 março 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/18/pandemia-poe-em-xeque-teto-constitucional-de-gastos-publicos
  11. [9]MOTA, Erick. “Congresso está atento pra Bolsonaro não decretar estado de sítio, diz Molon”. Congresso em Foco, 21 março 2020, 9:42 a.m. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretar-estado-de-sitio-diz-molon/
  12. [10]MAGNOLI, Demétrio. “Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média”. Folha de São Paulo, 21 março 2020, 1 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/03/nos-esclarecidos-precisamos-pensar-fora-da-bolha-da-alta-classe-media.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR38pMgYrZbe15NCaPIjK56Zo7TjNTK5ks-d0C6X40c4tSv6uqOOws_N5XY
  13. [11]VAZQUEZ, Maegan; KLEIN, Betsy. “Trump again defends use of the term ‘China vírus’”. CNN Politics, 19 março 2020 08:05 GTM. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/17/politics/trump-china-coronavirus/index.html
  14. [12]JORNAL NACIONAL.
  15. [13]MISSE, Michel. “Violência: o que foi que aconteceu?”. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Violência%20o%20que%20foi%20que%20aconteceu.pdf
  16. [14]MISSE, Michel (1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio de Janeiro.
  17. [15]Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo e professor do Iesp-Uerj, levou mais adiante a proposição de Márcia Leite. Segundo ele, teria se consolidado mesmo uma linguagem da violência urbana, que confere intelegibilidade e prospecções sobre os conflitos urbanos. O “núcleo duro” da violência urbana radicaria no uso desenfreado da força sem justificação, desenvolvido em decorrência da “ausência do Estado” e em relação ao qual se disseminaria um medo generalizado. Ver: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), “’Violência urbana’
  18. [16]LEITE, Marcia. “Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2001.
  19. [17] Ver LEITE, Marcia. (2012), “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n.2, p. 374-389.
  20. [18]Ver: ARAUJO, Marcella. (2012), “Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação no Rio de Janeiro”. In: Misse, Michel; Werneck, Alexandre. (Org). Conflitos de (grande) interesse. Rio de Janeiro: Garamond. Disponível em: https://www.academia.edu/12759030/Rio_em_forma_ol%C3%ADmpica_a_constru%C3%A7%C3%A3o_social_da_pacifica%C3%A7%C3%A3o_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
  21. [19]Sobre as “figurações da ‘guerra urbana’”, ver dossiê organizado por , Vera Telles,
  22. [20].FARIAS, Juliana. (2014), “Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA. Disponível em: https://www.academia.edu/12412103/Governo_de_Mortes_Uma_etnografia_da_gest%C3%A3o_de_popula%C3%A7%C3%B5es_de_favelas_no_Rio_de_Janeiro
  23. [21]ALJAZEERA. “China sends essential coronavirus supplies to Italy”. 13 março 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/china-sends-essential-coronavirus-supplies-italy-200313195241031.html
  24. [22]Friso aqui que não emito qualquer juízo de valor sobre os regimes políticos chinês e cubano
  25. [23]VARGAS, Mateus. “Governo quer cubanos de volta ao Mais Médicos para enfrentar novo coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 março 2020, 13:23 GTM. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-contratar-medicos-cubanos-para-enfrentar-novo-coronavirus,70003235029
  26. [24]CUCOLO, Eduardo. “Coronavírus reacende discussão sobre papel do Estado na economia”. Folha de São Paulo, 15 março 2020, 1:00 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-reacende-discussao-sobre-papel-do-estado-na-economia.shtml
  27. Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros são, respectivamente, coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
  28. HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. Terra sem Amos: Brasil, 2020 (documento virtual, disponível em https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-luta-de-classes-tsa.pdf).
  29. SPOSITO, Marília Pontes. A produção política da sociedade. In: MARTINS, José de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno da dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.
  30. JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica. Capitalismo, desmesura e autodestruição. Lisboa: Antígona, 2019.
  31. MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto e outros ensaios. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
  32. OLIVEIRA, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2019.
  33. ARAGÃO, Luciano Ximenes. A Der-re-territorialização dos Migrantes Nordestinos na Comunidade de Rio das Pedras. 2004. 175 p. Dissertação (Mestrado em Ordenamento Territorial e Ambiental). Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2004.
  34. GALINDO, María. Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 119-128.
  35. DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161.
  36. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  37. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  38. ZIZEK, Slavoj. Coronavirus es un golpe al capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del comunismo. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 21-28.
  39. ZIZEK, Slavoj. Coronavirus es un golpe al capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del comunismo. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 21-28.
  40. LÖWY, Michael.
  41. DE SOUSA SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
  42. BICALHO, Pedro Paulo Gastalho. Ditadura e democracia: qual o papel da violência de Estado? In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL (Org.) Entre garantia de direitos e práticas libertárias. Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2013, p. 13-34.
  43. BOLSANELLO, Maria Augusta. Darwinismo social, eugenia e racismo
  44. DORNELLES, João Ricardo. Atualidade da Criminologia Crítica. Metaxy, 1 (1), 2017, p. 109-128.
  45. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  46. BARROS, Regina Benevides Duarte; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana (Orgs). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.
  47. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH).
  48. GIL, José. O medo. Disponível em: https://n-1edicoes.org/001. Acessado em: 02 mai.2020
  49. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
  50. LÖWY, Michael.
  51. Sonia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestra em Sociologia e doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Foi fundadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - NUPES. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES entre 2003-2006 e da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - CNDSS. Atualmente coordena a Plataforma Digital do Dicionário de Favelas Marielle Franco Wikifavelas.
  52. O Coletivo Juntos Pelo Complexo do Alemão é uma articulação de movimentos locais do território. Conheça mais sobre na página oficial: facebook.com/juntospelocomplexodoalemao/ Os componentes são: MEAA - Mulheres em Ação do Alemão Coletivo Papo Reto Voz das Comunidades Solta Voz Morador Educap Ocupa Alemão Instituto Raízes em Movimento