Atenção primária, empoderamento e direito à saúde

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O verbete discute a importância da Atenção Primária de Saúde (APS) em favelas, abordando o papel do governo na garantia do direito à saúde, o conceito de empoderamento em saúde e as ameaças à Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) no contexto da pandemia de coronavírus. Destaca-se a necessidade de fortalecer a APS e o envolvimento das comunidades para enfrentar desafios de saúde, especialmente em regiões vulneráveis.

Autoria: Sonia Fleury

Introdução[editar | editar código-fonte]

A maior parte dos serviços de saúde localizados em favelas são unidades de Atenção Primária de Saúde - APS. Muitas delas envolvem o trabalho de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de Equipes de Saúde da Família (ESF). O Programa de Agentes Comunitários de Saúde do Ministério da Saúde foi criado oficialmente em 1991, com o objetivo de melhorar o acolhimento dos usuários do sistema de saúde por meio de pessoas da própria comunidade que fossem treinadas para exercer funções no sistema e encaminhar os pacientes para outros profissionais especializados. Espera-se, desta forma, diminuir a distância entre os agentes públicos e os usuários, já que o agente comunitário seria o elo de ligação entre ambos. Também se supõe que a capacitação de pessoas da comunidade represente um processo de empoderamento dos moradores. O conceito de empoderamento, que vem do termo inglês empowerment, passou a ser usado como um objetivo em todos os projetos comunitários, em especial os financiados pelas agências internacionais de cooperação e/ou executados pelas Organizações Não Governamentais – ONG.

A Estratégia de Saúde da família é definida pelo Ministério da Saúde como um meio para expansão, qualificação e consolidação da atenção básica, de forma a permitir a reorganização do sistema de saúde. Dessa maneira, espera-se que o sistema, que está basicamente centrado no processo curativo, com base nas unidades hospitalares seja revertido para um modelo de atenção que privilegia a prevenção e é executado em unidades básicas de saúde, a menor custo e maior proximidade com a comunidade. O Manual de Atenção Básica do Ministério da Saúde[1] considera que:

“Um ponto importante é o estabelecimento de uma equipe multiprofissional (equipe de Saúde da Família – eSF) composta por, no mínimo: (I) médico generalista, ou especialista em Saúde da Família, ou médico de Família e Comunidade; (II) enfermeiro generalista ou especialista em Saúde da Família; (III) auxiliar ou técnico de enfermagem; e (IV) agentes comunitários de saúde. Podem ser acrescentados a essa composição os profissionais de Saúde Bucal: cirurgião-dentista generalista ou especialista em Saúde da Família, auxiliar e/ou técnico em Saúde Bucal”.

No entanto, esse modelo de atenção à saúde voltado para a prevenção e com o envolvimento de equipes multidisciplinares e agentes comunitários, tem raízes bem mais antigas, dentro e fora do Brasil. Uma referência fundamental foi a Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978 nessa cidade da antiga URSS, cuja declaração, assinada pelos governos participantes, assumiu o compromisso de assegurar “Saúde para Todos até o Ano 2000”[2].
  1. Os principais pontos da Declaração de Alma-Ata[2] foram a definição de saúde como resultante de um processo de determinação social; o estatuto da saúde como direito; o reconhecimento das desigualdades; a relação entre saúde e desenvolvimento; o direito à participação; a responsabilização dos governos pela saúde de seus cidadãos, e a centralidade dos cuidados primários de saúde.
  2.  A Conferência enfatiza que a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde.
  3. A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como dentro dos países, é política, social e economicamente inaceitável e constitui, por isso, objeto da preocupação comum de todos os países.
  4. O desenvolvimento econômico e social baseado numa ordem econômica internacional é de importância fundamental para a mais plena realização da meta de Saúde para Todos no Ano 2000 e para a redução da lacuna existente entre o estado de saúde dos países em desenvolvimento e o dos desenvolvidos. A promoção e proteção da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento econômico e social e contribui para a melhor qualidade de vida e para a paz mundial.
  5. É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde.
  6. Os governos têm pela saúde de seus povos uma responsabilidade que só pode ser realizada mediante adequadas medidas sanitárias e sociais. Uma das principais metas sociais dos governos, das organizações internacionais e de toda a comunidade mundial na próxima década deve ser a de que todos os povos do mundo, até o ano 2000, atinjam um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva. Os cuidados primários de saúde constituem a chave para que essa meta seja atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça social.
  7. Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde.

A Conferência de Alma-Ata influenciou governos em todo o mundo na busca de organização de sistemas universais de saúde, organizados a partir da atenção primária de saúde, como porta de entrada dos usuários no sistema. Também influenciou as lutas dos movimentos sociais, como o Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, na luta pela inscrição do Direito à Saúde como um direito constitucional.[3][4]

Desde o meado dos anos 1970, inicia-se a introdução desse modelo de atenção baseado na APS, em diferentes partes do Brasil como consequência da vitória da oposição, organizada na frente partidária que ficou conhecida como MDB, impondo a primeira derrota significativa ao partido do governo militar, a ARENA, em importantes cidades de porte médio onde eram permitidas eleições. Inspirados no sucesso do modelo cubano de atenção à saúde e legitimados pela declaração de Alma-Ata, buscou-se uma saída para uma atenção mais próxima da população, com abordagem preventiva e uso de agentes comunitários de saúde. Foram implantados projetos pioneiros em Montes Claros[5], no PIASS em vários estados do Nordeste, em Niterói, em Campinas. Dessas experiências surgiram as bases materiais do projeto de construção do SUS.

Em 2018, celebrando os 30 anos da Declaração de Alma-Ata, a Organização Mundial de Saúde convocou uma nova conferência, que se realizou em Astana, no Cazaquistão. Em um contexto de avanço das ideias neoliberais que defendem a redução do Estado e as parcerias entre Estado e Mercado, a conferência de Astana foi marcada pela sua falta de importância na definição global das políticas de saúde. A começar pela afirmação do diretor geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Guebreyesus, em cuja carta comemorativa do seu primeiro ano à frente da instituição onde afirma que não existe mercadoria no mundo mais preciosa que a saúde (“There is no commodity in the world more precious than health”).

Ao assumir a linguagem de mercado, tratando a saúde como uma mercadoria, aponta claramente a posição de negação do papel do governo na garantia do direito à saúde, substituindo a responsabilidades e o papel do governo por uma ambígua governança, na qual todos os atores, públicos e privados, são tratados igualmente em relação ao provimento dos serviços de atenção à saúde.

Por outro lado, a ênfase no conceito de empoderamento da comunidade foi reduzida à sua atuação no espaço das unidades de atenção básica, ofuscando a discussão de poder que deve ser o centro da noção de empoderamento.

Em seguida, confrontamos essas duas posições que envolvem as relações de poder entre governo, mercado e comunidade.

Papel do Governo em Saúde[editar | editar código-fonte]

O papel do governo é garantir a saúde como direito da pessoa humana e da cidadania. A saúde é um bem de relevância pública, como está afirmado na Constituição Federal do Brasil de 1988. A saúde é também um valor socialmente construído, o que representa a evolução das sociedades para um patamar civilizatório baseado na dignidade da pessoa humana e nos princípios da justiça social e do reconhecimento dos direitos sociais.

Ela não é uma mercadoria porque não tem um valor no mercado, apenas um uso para os indivíduos e as sociedades. Sendo um bem de relevância pública o Estado tem que assegurar as condições que os indivíduos e a sociedade possam desfrutar de boa saúde, evitando que os determinantes sociais sejam responsáveis pelas condições precárias de saúde de grupos marginalizados. Essa responsabilidade pública diante dos cidadãos não pode ser terceirizada.

Por ser um bem público o Estado não pode usar critérios de outra natureza que não a defesa da dignidade e da saúde, individual e coletiva, na organização dos serviços e na definição dos critérios de acesso aos serviços. Assim, em situações de escassez de recursos e elevadas taxas de migração, o governo nacional não pode utilizar a defesa da cidadania em oposição à dignidade da pessoa humana, restringindo o acesso dos que estão em território nacional, documentados ou não, aos serviços de saúde.

A universalização do acesso aos serviços de saúde deve ter como porta de entrada a APS, pela sua garantida efetividade na solução de problemas sanitários individuais e coletivos, sendo que essa precisa ser assegurada por meio de políticas públicas que forneçam condições materiais para que equipes multidisciplinares, bem organizadas e com formação adequada, realizem o trabalho de promoção, prevenção e atenção curativa. Sem estas condições o trabalho da APS se torna paliativo e com baixa capacidade de resolver as demandas sanitárias.

A atuação destas equipes, dentro e fora do Centro de Saúde, muitas vezes em locais com riscos elevados, envolve uma situação de grande complexidade que requer formação específica, integração da equipe de trabalho e utilização de tecnologias adequadas, que devem ser exigidas e garantidas pelo poder público.

O planejamento governamental é fundamental para a efetividade da ação da APS, bem como de sua real integração como central no Sistema Nacional de Saúde, revertendo assim o modelo de atenção que tem como foco o hospital, de baixa eficiência, alto custo, absorvedor de tecnologia e insumos sofisticados, muitas vezes provocando iatrogenias - enfermidades que são consequência das ações em saúde - e disseminando bactérias cada vez mais resistentes.

Reservar ao setor público apenas a atuação nas unidades de APS impediria a construção de um Sistema Nacional de Saúde, cujas unidades trabalhem de forma planejada, articulada e colaborativa, em uma rede de referência ( do nível primário para o secundário e terciário) e contrarreferência ( o caminho inverso) dirigida pelas políticas públicas em prol do interesse público. A tensão entre lógicas distintas, uma dirigida pelo interesse público e outra pela oferta de mercadorias e busca da lucratividade certamente compromete a concepção de Sistema Nacional de Saúde. Essa tensão já se expressa de forma dramática na falta de investimentos para tratamento de doenças negligenciáveis, muitas delas representando um desafio para a ação da APS. Os governos precisam usar o seu papel reitor na normatização do sistema, na produção e compra de insumos indispensáveis que, ou não se encontram no mercado ou cujo preço impede que sejam incorporados nos tratamentos da população que deles necessita.

A defesa da soma de recursos públicos e privados na composição do Sistema Nacional de Saúde não pode ignorar as contradições existentes e nem deve especializar as funções de forma que o governo se encarregue da APS e o setor privado se dedique a oferta de serviços que permitem maior margem de lucratividade. Sendo um bem público o governo tem que exercer sua autoridade, para a qual foi legitimamente eleito pelos cidadãos, para prover as condições de desenvolvimento social e econômico por meio das políticas públicas. A recente substituição da noção de autoridade governamental pela governança, incluindo uma pluralidade de atores envolvidos na prestação dos serviços de saúde, não retira a responsabilidade nem a autoridade do governo. Caso contrário, o resultado será a desilusão dos cidadãos eleitores com a própria democracia e com os políticos, abrindo margem para o aparecimento de soluções antidemocráticas e autoritárias.

Empoderamento em Saúde[editar | editar código-fonte]

O conceito de empoderamento é pouco preciso e merece ser detalhado ao invés de ser circunscrito ao âmbito da atenção primária, em especial quando ela é vista como um espaço físico e não uma abordagem no tratamento da saúde. A temática do empoderamento em saúde transcende esses limites e pode ser compreendida em suas várias dimensões, como aumento dos graus de liberdade de indivíduos e grupos para tomar decisões em relação à sua saúde. Diz respeito a um processo tanto subjetivo quanto objetivo em que se constituem sujeitos políticos, capazes de afirmar a sua vontade e tomar decisões em relação ao conjunto de alternativas que lhes é oferecida. Nesse sentido, a questão da comunicação e da troca de informações é crucial para aumentar as condições de conhecimento e possibilitar a tomada de decisões que correspondem às necessidades e desejos dos indivíduos. Porém, não se trata de um processo pedagógico no qual os pacientes e/ou usuários são ensinados sobre questões de saúde, mas de um processo dialógico, no qual a interação entre profissionais e usuários permite a troca de informações, o respeito ao conhecimento de ambos, a capacidade de aceitação do outro como sujeito, isto é, aquele que pode agir em função de suas necessidades e desejos. Essa proposição implica que a equipe de saúde seja capaz de reconhecer os indivíduos como iguais, ainda que em posições funcionais distintas, portanto, capazes de responder às demandas por informação, estimular e compartilhar novos conhecimentos, compreender e respeitar a forma como os indivíduos constroem seu modo de vida. Só assim será possível que o cuidado de saúde seja fonte de transformação social. No entanto, essa capacidade só se realiza se existem condições materiais para propiciar a adequada atenção à saúde. Não se pode falar de empoderamento quando não existe liberdade, pois não há alternativas. Assim, o empoderamento requer condições materiais objetivas de prestação do cuidado em todos os níveis de complexidade e de tratamento necessários ao atendimento das necessidades. Nesse sentido, só haverá verdadeiramente empoderamento se a atenção primária em saúde não estiver restrita a um espaço, ou centro de APS, mas seja uma diretriz que articula o conjunto de unidades que compõem o sistema de saúde.

Empoderamento significa a garantia do direito à saúde, a segurança que esse direito está garantido pelo poder público e que possa ser exigível. Poder e segurança se imbricam, pois não há poder se não está garantido que o cuidado necessário será garantido. Consequentemente, a APS não pode ser reduzida aos cuidados de menor complexidade e/ou mais baixo custo. Ela é uma estratégia para atenção que permite a promoção e prevenção, mas também deverá ser a garantidora do acolhimento das demandas de tratamento e reabilitação que serão derivadas para outras unidades adequadas.

Empoderamento significa a capacidade de compartilhar poder na gestão do sistema de saúde, em todos os seus níveis – nacional, regional, local, unidades de saúde – com os beneficiários do sistema de saúde. Dessa forma, o sistema de saúde passa a ter um papel estratégico na democratização das políticas públicas, na socialização das informações sobre o funcionamento do governo e na prestação de contras e transparência do processo decisório. A experiência brasileira avançou muito na construção de uma arquitetura democrática com base na participação social, através do estabelecimento dos Conselhos Setoriais em todos os níveis de governo – Nacional, Regional e Local – por meio das Conferências Temáticas e das Audiências Públicas, dentre outros instrumentos. No entanto, estudos recentes identificam que a participação nessas instancias requer um nível prévio de organização, o que favorece a presença de grupos corporativos mais bem estruturados. Nesse sentido, é importante que as unidades de atenção à saúde, nos seus diferentes níveis, construam formas institucionalizadas de participação dos usuários, para além das ouvidorias, que garantam a efetividade das deliberações ali estabelecidas. Dessa forma, indivíduos e grupos da comunidade, que não tenham maior nível de organização, mas que representem as demandas dos usuários, poderão intervir na condução da atenção à saúde. A possibilidade de compatibilizar a participação social no sistema de saúde com a contratação de serviços privados pelo sistema público tem sido um dos grandes problemas enfrentados no Brasil, já que a gestão privada não se submete ao compartilhamento do poder com os usuários e à transparência dos dados relativos à gestão empresarial.

Empoderamento significa que o interesse público na saúde seja garantido por meio da estrita regulação pelo governo de todas as mercadorias, produtos, processos e serviços que possam provocar danos à saúde dos consumidores ou negação da prestação do serviço de saúde. A diretriz sanitária de promoção da saúde pela difusão de estilos de vida saudáveis não pode ignorar a oferta descontrolada de produtos que provocam danos à saúde, processos de trabalho que comprometem a saúde do trabalhador, condições de moradia e transporte que provocam danos irreparáveis à saúde dos moradores das comunidades. Também não se pode falar de empoderamento quando os consumidores de serviços de saúde privados ou por meio de seguros de saúde não têm seus direitos assegurados pelo poder público, ou que estes não sejam fiscalizados devidamente.

Das ameaças à PNAB à Pandemia do Coronavírus[editar | editar código-fonte]

Em 2017 houve a reformulação da Política Nacional de Atenção Básica - PNAB[1], em um contexto de restrição de recursos financeiros, desvalorização da participação social e tentativas de desmantelamento do sistema público de saúde. Contra essas ameaças as entidades do setor saúde - CEBES - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva e ENSP- Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca se pronunciaram em nota conjunta, alertando para as ameaças transcrita abaixo aos princípios e diretrizes do SUS de universalidade, integralidade, equidade e participação social[3]. A revisão das diretrizes para a organização da Atenção Básica proposta pelo Ministério da Saúde revoga a prioridade do modelo assistencial da Estratégia Saúde da Família no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS):

“Embora a minuta da PNAB afirme a Saúde da Família estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica, o texto na prática rompe com sua centralidade na organização do SUS, instituindo financiamento específico para quaisquer outros modelos na atenção básica (para além daquelas populações específicas já definidas na atual PNAB como ribeirinhas, população de rua) que não contemplam a composição de equipes multiprofissionais com a presença de agentes comunitários de saúde. Esta decisão abre a possibilidade de organizar a AB com base em princípios opostos aos da Atenção Primária em Saúde estabelecidos em Alma-Ata e adotados no SUS”.

Denunciavam o subfinanciamento crônico na saúde, ao qual se acrescentava outro problema, com o novo modelo de financiamento, alterando as regras anteriores que estabeleciam uma parte fixa e outra variável, passando a utilizar o critério de população vinculada ao Centro de Saúde, o que transgride o princípio da universalidade da cobertura. Finalmente, denunciam os riscos implícitos na definição de uma carteira de serviços essenciais, o que sinaliza a aproximação com a cesta de serviços ofertada pelos seguros focalizados, abrindo porta para a privatização da APS. Em 2020, com a emergência da pandemia da COVID-9, a rede de Pesquisas em Atenção Primária emitiu nota alertando para a importância da prevenção e do fortalecimento da atenção primária, já que seus profissionais têm relações de proximidade com as populações que apresentam maior vulnerabilidade[6]. Chamam atenção para inúmeros aspectos envolvidos nas ações das equipes de APS:

“No controle de uma epidemia além da garantia do cuidado individual – que no caso da Covid-19, para reduzir mortes, torna necessário prover atenção oportuna com transporte sanitário exclusivo, leitos hospitalares e UTIs equipadas que permitam a intubação dos pacientes por longo tempo –, é necessária uma abordagem comunitária. E nossas equipes de APS conhecem seus territórios, sua população, suas vulnerabilidades e têm papel importante na abordagem comunitária. Urge ativar esses atributos comunitários da ESF, associar-se às iniciativas solidárias das organizações comunitárias, articular-se intersetorialmente para apoiar sua população em suas diversas vulnerabilidades e garantir a continuidade das ações de promoção, prevenção e cuidado criando novos processos de trabalho na vigilância em saúde, no apoio social e sanitário aos grupos vulneráveis, na continuidade da atenção rotineira para quem dela precisa”.

No entanto, o que se viu foi muito diferente. Toda a ênfase dos governos locais e estaduais esteve voltada para equipar os hospitais com respiradores e criar hospitais de campanha, enquanto pouca atenção foi dada à integração dos trabalhos preventivos com a atenção curativa. Esta postura termina por afetar profundamente as populações mais pobres, residentes em periferias e favelas, já que seu acesso ao sistema de saúde se dá por meio da atenção primária, fundamentalmente. O movimento O SUS nas Ruas[7] denuncia a falta de valorização da ampla rede atenção comunitária que não tem sido ressaltada no planejamento das políticas públicas de enfrentamento da COVID-19, o que representa uma potência subutilizada:

“São cerca de 400.000 Agente comunitários de Saúde e Agentes de Controle de Endemias espalhados em quase todos os recantos da nação, que conhecem as peculiaridades de seus moradores e têm sua confiança. Apesar dees desprezo, em todo o país, inúmeros ACS e ACE vêm desenvolvendo ações extremamente criativas e eficientes no enfrentamento da atual crise sanitária. Mas, a maioria tem se sentido extremamente desorientada e desamparada”.

Desamparar os agentes comunitários de saúde é desamparar a população das favelas e periferias.
  1. 1,0 1,1 Ministério da Saúde – Política Nacional de Atenção Básica – 2017. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
  2. 2,0 2,1 Organização Mundial de Saúde - Declaração de Alma-Ata http://cmdss2011.org/site/wp-content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%C3%A3o-Alma-Ata.pdf
  3. 3,0 3,1 Giovanella, Ligia et al - De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad. Saúde Pública vol.35 no.3 Rio de Janeiro 2019 Epub 25-Mar-2019
  4. Escorel, Sarah – Reviravolta na Saúde: ORIGENS E ARTICULAÇÃO DO Movimento Sanitário, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999. 208 p. ISBN 978-85-7541-361-6. http://books.scielo.org
  5. Fleury, Sonia (org) – Projeto Montes Claros – A Utopia Revisitada, Rio de Janeiro, ABRASCO, 1995
  6. Giovanella, Ligia -'Algumas questões suscitadas pelo debate no seminário'Desafios da APS no SUS no enfrentamento da Covid-19, realizado em 16 abril de 2020 organizado pela Rede de Pesquisa em APS da Abrasco, BLOG do CEE http://www.cee.fiocruz.br/?q=node/1162
  7. Movimento O SUS nas Ruas https://drive.google.com/file/d/1Y4Ua1YAocIma6rCXgadj6-aOQJeHQPgE/view?fbclid=IwAR1tcGU6KuzaCStjA7caPwYSObjfYZq-ukpUdxJP8sDaROaPTtl9PAmfEsk

Veja também[editar | editar código-fonte]