Minha mãe, Marielle Franco, e o funk dentro de mim: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Verbete produzido pela equipe do Dicionário de favelas Marielle Franco, a partir das redes.
Artigo escrito por Luyara Franco, 21, publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo. Mulher preta periférica, funkeira e militante de direitos humanos, é integrante da diretoria do [[Instituto Marielle Franco]] e estudante de educação física (UERJ). Filha de Marielle Franco, Luyara descreve a sua experiência de descoberta do [[:Categoria:Funk|funk]], no conjunto de favelas da Maré, e de valorização desse ritmo musical e sua "cultura".
Autoria: Luyara Franco
Fonte: artigo publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, em 20/07/2020, e reproduzido pelo Portal Geledés.
 
[[Arquivo:Luyara Franco.png|centro|miniaturadaimagem|660x660px|Luyara Franco (Foto: JULIA DIAS CARNEIRO/BBC NEWS BRASIL)]]
[[Arquivo:Luyara Franco.png|centro|miniaturadaimagem|660x660px|Luyara Franco (Foto: JULIA DIAS CARNEIRO/BBC NEWS BRASIL)]]
Luyara Franco, 21, mulher preta periférica, funkeira e militante de direitos humanos, é integrante da diretoria do Instituto Marielle Franco e estudante de educação física (UERJ).


== Cria do funk ==
== Cria do funk ==
O destino já estava traçado, em 1998: no famoso e nobre Complexo da Maré, nasceu uma funkeira.
O destino já estava traçado, em 1998: no famoso e nobre [[Complexo da Maré]], nasceu uma funkeira.


Na família referência forte, a mãe, durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, foi “garota furacão 2000”. E, quando a moda era usar roupa de veludo e as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e lado B nos famosos [[Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de Janeiro, década de 1990|bailes de corredor]], meu pai estava lá.
Na família referência forte, a mãe, durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, foi “garota furacão 2000”. E, quando a moda era usar roupa de veludo e as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e lado B nos famosos [[Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de Janeiro, década de 1990|bailes de corredor]], meu pai estava lá.


Essa menina sou eu, Luyara Franco. Hoje com 21 anos, entendo a potência do funk como uma expressão em um quase-grito de urgência para as realidades que vivemos na favela e, exatamente por isso, consigo perceber uma crescente escalada de criminalização desse ritmo que movimenta tanta coisa dentro e fora da favela.
Essa menina sou eu, Luyara Franco. Hoje com 21 anos, entendo a potência do [[Funk no Brasil: um panorama histórico da ascensão da cultura das comunidades|funk]] como uma expressão em um quase-grito de urgência para as realidades que vivemos na favela e, exatamente por isso, consigo perceber uma crescente escalada de criminalização desse ritmo que movimenta tanta coisa dentro e fora da favela.


O funk se impõe como expressão cultural de resistência a uma sociedade na qual, desde a sua constituição, o atrasado modelo educacional e racismo estrutural não permite reverter os seus preconceitos arraigados. <blockquote>Ahh, mas “quando toca, ninguém fica parado”.</blockquote>Na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, [[Marielle Franco|vi minha mãe, Marielle Franco]], construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente cria do funk.
O funk se impõe como expressão cultural de resistência a uma sociedade na qual, desde a sua constituição, o atrasado modelo educacional e racismo estrutural não permite reverter os seus preconceitos arraigados. <blockquote>Ahh, mas “quando toca, ninguém fica parado”.</blockquote>Na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, [[Marielle Franco|vi minha mãe, Marielle Franco]], construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente cria do funk.
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O funk tem o papel de unir a massa, de administração de um mercado independente, de socialização sem preconceitos. Não será o governo ou um grupo que vai validar aquilo que já está embrenhado em nossa sociedade, faz parte de nossa vida e do entretenimento de quem for. Atrelado a isso temos a banalização do preconceito, que também contribui para a permanência do racismo no século 21.
O funk tem o papel de unir a massa, de administração de um mercado independente, de socialização sem preconceitos. Não será o governo ou um grupo que vai validar aquilo que já está embrenhado em nossa sociedade, faz parte de nossa vida e do entretenimento de quem for. Atrelado a isso temos a banalização do preconceito, que também contribui para a permanência do racismo no século 21.


De acordo com o conceito de banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, quando uma atitude agressiva ocorre constantemente, as pessoas param de vê-la como errada. É assim que o Estado age na favela, construindo a percepção de que favela é sinônimo de violência e que funk é sinônimo de crime, com a necessidade de ser combatido. Parte da imprensa compra e reproduz esse discurso espetacularizando prisões de DJs e MCs. Ou seja, seguindo o pensamento de Arendt, o tratamento violento habitual do estado para com a favela torna o processo de criminalização do funk, da pobreza e da negritude aceitável para determinados setores da sociedade.
De acordo com o conceito de banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, quando uma atitude agressiva ocorre constantemente, as pessoas param de vê-la como errada. É assim que o Estado age na favela, construindo a percepção de que favela é sinônimo de [[:Categoria:Violência|violência]] e que funk é sinônimo de crime, com a necessidade de ser combatido. Parte da imprensa compra e reproduz esse discurso espetacularizando prisões de DJs e MCs. Ou seja, seguindo o pensamento de Arendt, o tratamento violento habitual do estado para com a favela torna o processo de criminalização do funk, da pobreza e da negritude aceitável para determinados setores da sociedade.


Daqui seguimos firmes no compromisso de, seguindo os passos de minha mãe e honrando as melhores memórias afetivas do meu pai, defender que o funk é uma expressão da cultura favelada que insistem em criminalizar —e nós, em resistir.
Daqui seguimos firmes no compromisso de, seguindo os passos de minha mãe e honrando as melhores memórias afetivas do meu pai, defender que o funk é uma expressão da cultura favelada que insistem em criminalizar —e nós, em resistir.
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[https://www.geledes.org.br/minha-mae-marielle-franco-e-o-funk-dentro-de-mim/ Portal Geledés]
[https://www.geledes.org.br/minha-mae-marielle-franco-e-o-funk-dentro-de-mim/ Portal Geledés]


== Veja mais ==
Jornal [https://www1.folha.uol.com.br/colunas/perifaconnection/2020/03/minha-mae-marielle-franco-e-o-funk-dentro-de-mim.shtml Folha de São Paulo]
 
== Ver também ==
[[Investigando os Trabalhadores do Funk Proibidão]]
[[Investigando os Trabalhadores do Funk Proibidão]]



Edição das 16h18min de 29 de agosto de 2023

Artigo escrito por Luyara Franco, 21, publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo. Mulher preta periférica, funkeira e militante de direitos humanos, é integrante da diretoria do Instituto Marielle Franco e estudante de educação física (UERJ). Filha de Marielle Franco, Luyara descreve a sua experiência de descoberta do funk, no conjunto de favelas da Maré, e de valorização desse ritmo musical e sua "cultura".

Autoria: Luyara Franco

Fonte: artigo publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, em 20/07/2020, e reproduzido pelo Portal Geledés.

Luyara Franco (Foto: JULIA DIAS CARNEIRO/BBC NEWS BRASIL)

Cria do funk

O destino já estava traçado, em 1998: no famoso e nobre Complexo da Maré, nasceu uma funkeira.

Na família referência forte, a mãe, durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, foi “garota furacão 2000”. E, quando a moda era usar roupa de veludo e as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e lado B nos famosos bailes de corredor, meu pai estava lá.

Essa menina sou eu, Luyara Franco. Hoje com 21 anos, entendo a potência do funk como uma expressão em um quase-grito de urgência para as realidades que vivemos na favela e, exatamente por isso, consigo perceber uma crescente escalada de criminalização desse ritmo que movimenta tanta coisa dentro e fora da favela.

O funk se impõe como expressão cultural de resistência a uma sociedade na qual, desde a sua constituição, o atrasado modelo educacional e racismo estrutural não permite reverter os seus preconceitos arraigados.

Ahh, mas “quando toca, ninguém fica parado”.

Na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, vi minha mãe, Marielle Franco, construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente cria do funk.

O que ou quem define cultura?

O que define cultura? E quem define cultura? Uma consulta ao dicionário Aurélio explica um ponto de vista:

“Complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais etc, transmitidos coletivamente e típicos de uma sociedade”.

Vai me dizer então que funk brasileiro não é cultura? Ter que reafirmar, ainda hoje, que funk é cultura, é insistir para que o conceito de cultura não fique restrito ao que a elite produz ou do que se apropria do povo pobre —assim como foi com o samba, o carnaval, o jazz e tantas outras expressões culturais que resistem até hoje.

Cultura é o resultado de um apanhado de expressões de um povo que se manifesta em sua ação prática. Sendo popular, legítimo e compartilhado por muitos, é cultura. Precisamos entender que, dentro de uma realidade, cada um fala do seu próprio lugar e se expressa como pode. Se você fica indignado quando afirmo a potência e o capital cultural que o funk carrega, mas ignora o contexto e a realidade de opressão e violências que se vivem nesses espaços, você está sendo intolerante e preconceituoso.

Para alguns, essa frase vai parecer extremista, e muitos irão se ofender, mas a realidade é que definir o que é ou não cultura já é um passo contraditório e passível de erro, já que a palavra significa algo improvável e plural.

Negar que funk é cultura é o mesmo que renegar toda uma sociedade e seu modo de se expressar artisticamente —algo que, por exemplo, índios sofreram com a chegada dos portugueses, ou os africanos, durante a escravidão. Se o funk é hoje uma instituição e serve para expor as crenças e realidade de um povo, tem a mesma função social que o rap, por exemplo.

Por isso, negar como uma forma real de cultura seria desacreditar a validade e importância de ambos os estilos. Renegá-lo é intolerância e preconceito com pobres, como querer negar que eles podem e devem se expressar da forma que puderem. Lembrando que Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano descreveram muitas vezes mulheres como objetos. Pessoas que encontraram sua própria forma de se expressar sem a interferência de nenhum outro grupo maior ou mais poderoso. Eles criaram a própria cultura.

O papel do funk

O funk tem o papel de unir a massa, de administração de um mercado independente, de socialização sem preconceitos. Não será o governo ou um grupo que vai validar aquilo que já está embrenhado em nossa sociedade, faz parte de nossa vida e do entretenimento de quem for. Atrelado a isso temos a banalização do preconceito, que também contribui para a permanência do racismo no século 21.

De acordo com o conceito de banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, quando uma atitude agressiva ocorre constantemente, as pessoas param de vê-la como errada. É assim que o Estado age na favela, construindo a percepção de que favela é sinônimo de violência e que funk é sinônimo de crime, com a necessidade de ser combatido. Parte da imprensa compra e reproduz esse discurso espetacularizando prisões de DJs e MCs. Ou seja, seguindo o pensamento de Arendt, o tratamento violento habitual do estado para com a favela torna o processo de criminalização do funk, da pobreza e da negritude aceitável para determinados setores da sociedade.

Daqui seguimos firmes no compromisso de, seguindo os passos de minha mãe e honrando as melhores memórias afetivas do meu pai, defender que o funk é uma expressão da cultura favelada que insistem em criminalizar —e nós, em resistir.

Fontes

Portal Geledés

Jornal Folha de São Paulo

Ver também

Investigando os Trabalhadores do Funk Proibidão

Funk das antigas - episódio 19 (programa)

Bailes Funk no Complexo do Alemão