Pré-vestibulares populares no Rio de Janeiro

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 11h50min de 4 de abril de 2022 por Clara (discussão | contribs)
Autoria: Angela Cristina da Silva Santos (informações retiradas de sua dissertação de mestrado, "Pensando estratégias para o enfrentamento da evasão em pré-vestibulares populares: um estudo de caso na Maré – Rio de Janeiro/RJ", defendida em 2020).

Introdução

Historicamente as políticas públicas para a Educação Superior no Brasil têm demonstrado a ineficiência do Estado na gerência, financiamento e concretização do direito social e inalienável que é a educação. Se, por um lado, o Estado não tem disponibilizado recursos e investimentos suficientes para a educação pública de nível superior; por outro, ampliou as possibilidades para que o setor privado se estabelecesse no campo educacional, contribuindo para que a educação superior seja concebida como um serviço, regido pelas leis de mercado, e não como um bem social garantido a todos pela Constituição Brasileira.

Essas escolhas políticas feitas ao longo da história do Brasil refletem em fatores como: o crescimento descontrolado e sem a fiscalização adequada do setor privado, atingindo 75% das matrículas na educação superior; o contexto de lutas constantes das Instituições de Ensino Superior públicas pelos recursos humanos, estruturais e financeiros necessários para atender adequadamente suas diversas demandas na tríade ensino, pesquisa e extensão; a exclusão de diversos jovens das classes populares, que não conseguem dar prosseguimento aos seus estudos na graduação e pós-graduação.

Nesse sentido, concordamos com Paulo Freire de que não há esperança no esperar e, sabendo que não é possível esperar que a democratização do acesso à educação se concretize, as classes populares têm de esperançar-se e organizar-se para encontrar as brechas possíveis na defesa da educação como um direito de todos. Surgem, portanto, os pré-vestibulares populares, espaços alternativos de luta pela inclusão e permanência de pessoas das camadas populares na educação superior. Assim, apesar de sabermos que a escola, a universidade e mesmo a educação não darão conta de resolver os problemas socioeconômicos que vêm se acumulando há anos no Brasil, entendemos que o acesso à educação pode impulsionar, gradativamente, a sociedade para questionar esse sistema que nos uniformiza, subjuga, aliena, explora e mata.

Além disso, consideramos que a população precisa se apropriar dos códigos linguísticos e dos conhecimentos existentes nesses espaços de educação formal para que se ampliem as possibilidades de melhorar as condições de vida, atuar politicamente na sociedade e construir uma formação crítica. Como a universidade pública constitui os saberes acumulados historicamente pelos diversos grupos sociais que constituíram e constituem nossa sociedade, é dever dessa universidade democratizar o acesso a esses conhecimentos e, ao mesmo tempo, construir processos de valorização e divulgação dos saberes não-hegemônicos (história, cultura, produções da população africana e afrodescendentes e indígenas, por exemplo), que têm sido negados à população.

Sabemos que a universidade não foi pensada e construída para a ocupação das classes populares. No entanto, o espaço universitário também é um espaço de contradições, ambiguidades e disputas de narrativas. Por isso, a atuação dos pré-vestibulares populares tem sido extremamente importante, tanto na formação política desses sujeitos, quanto na contribuição para que eles acessem à educação superior e se desenvolvam na educação, pesquisa e extensão, resgatando ou construindo novas epistemologias. Portanto, devemos continuar construindo estratégias para acessar, permanecer e transformar o espaço universitário.

Mapeamento de pré-vestibulares populares

As informações referentes a quantidade de pré-vestibulares populares existentes no estado do Rio de Janeiro são imprecisas, já que não existe uma organização, coletivo ou grupo de pesquisa responsável por esse levantamento e  acompanhamento  sistemático  e  contínuo.  Além  disso,  sabemos  que  muitos  pré-vestibulares  populares - por serem iniciativas coletivas, não institucionalizadas, sem financiamento e que dependem do trabalho voluntário - enfrentam diversas dificuldades para dar continuidade aos trabalhos ao longo dos anos, oscilando entre períodos com maior e menor engajamento dos voluntários, procura dos estudantes e apoio local. Por isso, o número de pré-vestibulares  populares  ativos  pode  variar  bastante  de  um  ano  para  outro,  assim  como  o  local  onde  esses projetos são desenvolvidos.

Este mapeamento foi construído a partir da pesquisa de mestrado intitulada “Pensando estratégias para o enfrentamento da evasão em pré-vestibulares populares: um estudo de caso na Maré – Rio de Janeiro/RJ”, de autoria de Angela Cristina da Silva Santos, desenvolvida sob a orientação de Priscila Saemi Matsunaga, no Programa de Pós-graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social - NIDES/UFRJ, no período de 2018 a 2020.

Para que o pré-vestibular popular fosse contabilizado no levantamento, foram elencadas duas situações: 1) Pré-vestibular ativo nos anos de2018 ou 2019 e 2) Pré-vestibular iniciando suas  atividades  no  ano  de  2020.  Para  delimitar  esses  critérios  de  seleção,  levamos  em consideração a instabilidade das ações dos pré-vestibulares populares, que podem ficar inativos por  1  ou  2  anos  e  depois  retornar  suas  atividades,  dada  a  rede  de  apoio  que  já  possuem. Consideramos  como  unidade  de  contagem  cada  núcleo,  unidade  ou  sede  de  pré-vestibular popular  em  endereço  diferente.  Como  há  algumas  redes  que  possuem  algumas  unidades espalhadas pelo território do Rio de Janeiro, cada núcleo foi contabilizado como uma unidade de pré-vestibular popular.

Os  pré-vestibulares  populares  encontrados  nesse  levantamento  foram  separados  de acordo  com  as  oito  divisões  regionais  de  governo  e  municípios  do  estado  do  Rio  de  Janeiro: I. Região Metropolitana do Rio de Janeiro; II. Região Centro-Sul Fluminense; III. Região Noroeste Fluminense; IV. Região Norte Fluminense; V. Região Serrana; VI. Região da Costa Verde; VII. Região das Baixadas Litorâneas; e VIII. Região do Médio Paraíba.

Conseguimos mapear 352 unidades de pré-vestibulares populares no estado do Rio de Janeiro. A Região Metropolitana, que inclui a Baixada Fluminense e o Leste Fluminense, concentra 84% dos pré-vestibulares populares mapeados nessa pesquisa (tabela 1), com destaque para a cidade do Rio de Janeiro, como verificaremos em seguida.

TABELA 1

Na Região Metropolitana, encontramos 295 unidades de pré-vestibulares populares, das quais 60% estavam localizadas na cidade do Rio de Janeiro, conforme podemos ver na tabela 2.

TABELA 2

Nos municípios de Duque de Caxias, Niterói, Nova Iguaçu, São Gonçalo e São João de Meriti,  a  quantidade  de  pré-vestibulares  populares  encontrados  variou  de  13  a  21  unidades, conforme  apresentado  na  tabela  3.  Depois  do  Rio  de  Janeiro,  esses  são os  municípios  mais populosos  da  região  metropolitana.  Houve  municípios  nos  quais  não  conseguimos  localizar nenhum pré-vestibular popular: Cachoeira de Macacu e Japeri.

TABELA 3

Na cidade do Rio de Janeiro, localizamos 177 pré-vestibulares populares, com destaque para  a  Zona  Norte  (47%)  e  Zona  Oeste  (31%),  que  são  as  regiões  mais  afetadas  pelas desigualdades sociais da cidade (tabela 4).

TABELA 4

A maior concentração desses projetos estava no bairro de Campo Grande com 11 unidades de pré-vestibulares, seguido do Centro (8), Jacarepaguá (6), Tijuca (6), Cidade Universitária (5), Santa Cruz (5), Botafogo (4), Gávea (4), Maré (4) e Realengo (4). Cabe ressaltar que Campo Grande é o maior bairro da cidade do Rio de Janeiro com uma população de aproximadamente 336 mil habitantes.

Cabe  ressaltar  a  necessidade  de  complementação  e  atualização  desse  trabalho  de mapeamento, visto que há pré-vestibulares populares que atuam numa escala estritamente local (em associações, colégios, igrejas clubes etc) e não possuem redes sociais ou outras formas de divulgação virtual de seus trabalhos. Portanto, caberia uma interlocução com os equipamentos educacionais,  culturais  e  de  assistência  social  dos municípios  e  bairros  para  averiguação  de outras iniciativas populares de preparação para os vestibulares.[1]

Estratégias para enfrentamento da evasão escolar

Compreendemos a relevância de avançar um pouco mais e possibilitar a construção de um panorama mais amplo sobre o fenômeno da evasão em pré-vestibulares populares, no que diz respeito às suas características e as possibilidades de enfrentamento desse problema. Para isso, realizamos um estudo de caso no Pré-vestibular Comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) e um levantamento das percepções sobre evasão de integrantes de pré-vestibulares populares do estado do Rio de Janeiro. A partir desse entrelaçamento de experiências e reflexões, pudemos construir a presente cartilha.

Compreendemos a evasão de pré-vestibulares populares como um fenômeno complexo, dinâmico e cumulativo, que é influenciado por múltiplas variáveis de caráter objetivo e subjetivo. Assim, a proposta da cartilha é oferecer um arcabouço amplo de ações que possam ser desenvolvidas, avaliadas e aprimoradas pelos pré-vestibulares populares, no intuito de favorecer uma maior permanência do(a)s educando(a)s nos projetos e possibilitar a reconquista do(a)s educando(a)s evadido(a)s, propiciando um maior alcance desses projetos entre a juventude dos espaços favelados e periféricos.

  1. Sensibilização inicial dos educandos
  2. Apoiando e acompanhando os educandos
  3. Construindo conexões afetivas
  4. Pensando as questões de ensino e aprendizado
  5. Construindo uma comunicação engajada
  6. Trazendo o vestibular para o jogo
  7. Enfrentando as dificuldades financeiras
  8. Construindo redes de apoio e parceria

A escolha das estratégias que serão desenvolvidas por cada pré-vestibular popular dependerá de localização do curso, do projeto político-pedagógico, da estrutura física disponível, do tamanho e composição da equipe de colaboradores, da dinâmica de organização e gestão do projeto, dos recursos financeiros possíveis de serem arrecadados, do engajamento coletivo. Por isso, cada proposta deve ser discutida, planejada e validada coletivamente a cada ano.

Ressaltamos a importância da realização conjunta de ações nas oito áreas apresentadas na cartilha, já que a evasão é causada por diferentes fatores que se conjugam em diferentes escalas. Por fim, destacamos a necessidade de persistência e (re)avaliação periódica das estratégias adotadas, visto que há melhorias no desenvolvimento das ações de um ano para outro, e de acompanhamento sistemático a médio (3 – 5 anos) e longo prazo (6 – 10 anos) das estratégias assumidas pelo coletivo, podendo o próprio coletivo desenvolver pesquisas sobre a temática.

Bibliografia

MARTON FILHO, Marcos Antonio; ARRUDA, Guilherme; CARVALHO, Raíssa Pierri; SCHELLINI, Silvana Artioli. O aluno que evade: comparação entre alunos selecionados por critérios socioeconômicos e por conhecimentos gerais. Revista Ciência em Extensão, v. 8, n. 3, p. 68-74, 2012. Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/revista_proex/article/viewFile/671/744. Acessado em: 09 de fevereiro de 2020.

PEREIRA, Yasmin Gonçalves; PEREIRA, Yara Gonçalves; MILLER, Poliana Romero; SOUZA, Suelen Ribeiro; JASMIM, Janie Mendes. O Pré-vestibular Social Teorema na modalidade a distância: análise do processo de reestruturação do curso. In: Congresso Internacional de Educação e Tecnologias (4ª Edição), 2018, São Carlos – SP. Disponível em: https://cietenped.ufscar.br/submissao/index.php/2018/article/view/819. Acessado em: 17/11/2019.

SILVA, Richardson B. G.; GUERRA, Saulo P. S.; ARAÚJO, Maria A. M.; ALMEIDA, Loriza L. Evasão no cursinho pré-vestibular da FCA/UNESP: a interpretação do aluno evadido. Revista Científica em Extensão, UNESP, v.6, n.1, p.68, 2010. Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/revista_proex/article/view/160/338. Acessado em: 09 de fevereiro de 2020.

SOARES, Fernanda Bomfim; GONÇALVES, Pedro Willian Bretas; FERRAZ, Claudio Benito Oliveira. Geografia da Evasão: novos desafios no contexto do projeto cursinho pré-vestibular IDEAL da FCT/UNESP. In Anais do XVI Encontro Nacional dos Geógrafos, Porto Alegre - RS, 2010. Disponível em: https://docplayer.com.br/17519571-Geografia-da-evasao-novos-desafios-no-contexto-do-projeto-cursinho-pre-vestibular-ideal-da-fct-unesp.html. Acessado em: 16 de fevereiro de 2020.

SOUSA, José Nilton; RIBEIRO, Paulo Cesar; ABOUD, Sérgio; CAMACHO, Regina. A universidade e o pré-vestibular. In Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, Belo Horizonte – MG, 2004. Disponível em: https://www.ufmg.br/congrext/Educa/Educa22.pdf. Acessado em 10/10/2019.

STOFFEL, Amanda Ritter et al. Estudo do problema da evasão no cursinho pré-vestibular Esperança Popular da Restinga. Iniciação Científica - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007. Disponível em: http://conexoesufrgs.blogspot.com/2007/09/estudo-do-problema-da-evaso-no-cursinho.html. Acessado em: 09/02/2020.

THUM, Carmo. Pré-vestibular público e gratuito: o acesso de trabalhadores à universidade. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, 2000. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/78448. Acessado em 15/11/2019.

Outras referências

Ações Afirmativas no acesso ao Ensino Superior

Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

  1. Angela Cristina da Silva Santos. PRÉ-VESTIBULARES POPULARES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: QUANTOS SÃO E QUAL PERFIL POSSUEM ESSES PROJETOS? ENCONTROS COM A FILOSOFIA. ANO 9, N.14, 2021 (DEZ).