Chacina sem capuz e a estatização das mortes (artigo)
A chacina sem capuz e a estatização das mortes (artigo) - Etimologicamente, a palavra chacina significa o ato de esquartejar e salgar porcos. No Rio de Janeiro, historicamente, o termo assume um sentido político entre moradores de favela, utilizado para classificar massacres, sobretudo de civis, que ultrapassam os já altos parâmetros de violência que caracterizam esses locais. Em geral, esses massacres são diretamente associados a grupos de extermínio, cuja atuação conta com a participação de agentes de segurança da ativa. Finalmente, uma terceira forma de definir as chacinas parte de uma perspectiva estatística e considera toda ação policial com três ou mais mortos civis enquanto tal. A presença das chacinas no cotidiano da vida da população brasileira é um indicativo assustador da violência de estado contra segmentos sociais específicos.
Autoria: Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk[1][2].
Introdução[editar | editar código-fonte]
Um dia antes de ser assassinada a tiros na região central do Rio de Janeiro, em 2018, Marielle Franco, cria da Maré, defensora dos direitos humanos e vereadora pelo PSOL na cidade do Rio de Janeiro, entoou em suas redes sociais a pergunta que ecoa em nossos ouvidos até os dias atuais: “Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?”. De lá até aqui, a política de segurança pública do estado do Rio experimentou intervenções federais, operações policiais e programas de militarização que sitiaram as cidades e foram capazes de promover um fenômeno ainda mais perigoso na Região Metropolitana: a expansão das milícias. Segundo o relatório “Mapa Histórico dos Grupos Armados” (2022), produzido pelo GENI/UFF em parceria com o Fogo Cruzado, as áreas dominadas pelas milícias cresceram 387% em 16 anos, e milicianos já dominam mais da metade das áreas controladas por grupos armados na região. Os ilegalismos e a perpetuação da “guerra às drogas” têm produzido graves consequências para a vida dos moradores e moradoras do Rio de Janeiro.
A estatização das mortes[editar | editar código-fonte]
Mais de trinta anos após a promulgação da Constituição de 1988, a assustadora frequência das chamadas chacinas policiais, praticadas por policiais em serviço, demonstra que a violência de Estado contra a população pobre, negra e favelada ou periférica é característica intrínseca à nossa “democracia”. No Rio de Janeiro, a ostentação da violência policial em massacres avalizados por autoridades públicas, contra a ordem democrática, parece integrar o fenômeno a que denominamos “desencapuzamento”: a paulatina substituição da atividade criminosa dos grupos de extermínio pela atuação brutal de policiais em serviço, especialmente em operações de incursão em favelas. As chacinas ocorridas na década de 1990 eram praticadas por grupos de extermínio formados por policiais ou ex-policiais, mas resultaram, majoritariamente, de atividades extraoficiais desses agentes. Foi a partir dos anos 2000 que as práticas de extermínio passaram a contar com crescente e escancarado respaldo institucional, tendência que se agravou a partir dos anos 2010 e que encontra hoje o seu ápice.
Três das cinco maiores chacinas policiais da história do Rio de Janeiro ocorreram nos últimos quinze meses, sob a vigência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu a realização de operações policiais enquanto durasse a pandemia da Covid. A maior delas, que resultou em 28 mortes, ocorreu no bairro do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, foi nomeada pela Polícia Civil de Operação Exceptis, em alusão à excepcionalidade das operações interposta pelo STF. Na ocasião, o representante da Polícia Civil criticou o “ativismo judicial” que estaria “impedindo o trabalho da polícia”. Pouco mais de um ano depois, a chacina da Penha resultou em mais 23 mortes. Segundo o porta-voz da Polícia Militar, a culpa seria do STF, que estaria provocando a “migração de criminosos de outros estados”. Na quinta-feira da semana passada, após a chacina no Alemão, com dezessete mortos, autoridades policiais chamaram defensores de direitos humanos de “narcoativistas”. O presidente da República se pronunciou sobre existirem “áreas protegidas pelo STF” onde “a bandidagem cresce”.
A liminar do STF, alvo dessas acusações, foi proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635, a ADPF das favelas, iniciada por uma coalizão de movimentos de favelas e familiares de vítimas de violência de Estado. A ação assegurou parâmetros legais para a realização de operações policiais, interrompendo uma escalada ininterrupta da violência policial (crescimento de 313% de 2013 até 2019). Em 2020 observou-se a maior redução anual na letalidade policial dos últimos quinze anos (em 34%). Isso ocorreu concomitantemente a uma redução tanto os crimes contra vida (24%), como dos crimes contra o patrimônio (39%), demonstrando que o respeito aos direitos humanos não se opõe ao controle do crime.
A trégua experimentada pelos moradores de favelas em 2020 foi interrompida desde a ascensão de Cláudio Castro ao governo do Rio de Janeiro, quando a liminar do STF passou a ser deliberadamente desobedecida. Segundo dados do datalab Fogo Cruzado, nos últimos anos as ações oficiais produziram quase três vezes mais chacinas (ocorrências com três ou mais mortes), do que a soma de todos os grupos armados (facções do tráfico de drogas e milícias) e vitimaram praticamente o triplo de pessoas. Está em curso um fenômeno de “estatização das mortes”, no qual o peso da letalidade policial no total das mortes violentas foi avançando ao longo dos últimos anos. Em 2021 as polícias foram responsáveis por um terço do total das mortes na região metropolitana do Rio (35%), três vezes o limiar considerado aceitável por parâmetros internacionais (10%) e até mesmo que a média brasileira (12,9%). Não seria de se esperar que com o avanço do regime democrático o uso da força pelo Estado fosse publicamente pactuado e limitado legalmente?
Nossa hipótese é de que, historicamente, as polícias do estado do Rio de Janeiro reagiram com violência e por meio de chacinas às tentativas de controle democrático de sua atividade. As duas gestões de Leonel Brizola (1983-87 e 1991-94) enfrentaram esses problemas. Em seu primeiro governo, procurou impor limites práticos ao exercício arbitrário do uso da força, como a proibição das invasões de domicílio em favelas ou das prisões para averiguação. A polícia reagiu a essas mudanças se recusando a fazer seu trabalho, em uma espécie de greve branca e de chantagem – o suficiente para criar uma sensação de “desordem” que seria amplificada pelos jornais e canais de televisão.
Foi na esteira desse processo que Moreira Franco (1987-91) se elegeu, prometendo acabar com a violência em seis meses. Restituiu à polícia a permissão para exercer a sua discricionariedade autoritária, e esse descontrole potencializou a imersão de agentes policiais em mercados criminais de roubos, sequestros e extorsões. Esse modelo autoritário de polícia foi rechaçado nas urnas em 1990, e Brizola assumiria novamente com a missão de combater os grupos de extermínio dentro da polícia. Grupos de policiais encapuzados responderam ao governo estadual através de massacres como a chacina de Acari (1991); as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em 1993. O motim policial anunciava uma nova fase de enfrentamento e desestabilização dos governos.
Já no mandato de Marcello Alencar (1995-99), a letalidade policial passou a ser premiada com uma bonificação que chegava a triplicar o salário dos agentes que matavam mais – era a época da gratificação faroeste. Com esse estímulo, as chacinas foram incorporadas ao modus operandi das corporações, tornando-se uma política de Estado. Esse é o momento em que as chacinas passam a mudar de autoria, migrando dos grupos de extermínio para o cotidiano das polícias. Começa aí o processo de “desencapuzamento” das chacinas. Mesmo que em algumas operações os policiais ainda estejam de rosto coberto (numa prática questionável do ponto de vista da transparência do serviço público), o que se vê é que as mortes cometidas por policiais contam com a anuência das autoridades.
Essa trajetória foi brevemente interrompida no governo de Anthony Garotinho (1999-2002) que, sob os auspícios de Luiz Eduardo Soares, investiu na modernização da polícia, até que este fosse exonerado do cargo de subsecretário de Segurança Pública depois de denunciar a chamada “banda podre” da polícia e virar alvo de ameaças desse grupo. Foi então que grupos criminosos de policiais começaram a se organizar sob a forma das milícias, que se tornaram conhecidas durante o governo Rosinha Garotinho (2003-07). É também no mandato de Rosinha que novos dispositivos jurídicos propiciaram o cerco autoritário às favelas: mandados de busca e apreensão genéricos, contra comunidades inteiras, passaram a ser expedidos; o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confere ao testemunho do policial o status de fé pública, a partir da Súmula 70; e os delegados passaram a autuar moradores de favela que protestavam contra a brutalidade policial pelo crime de associação ao tráfico.
O programa das Unidades de Polícia Pacificadora, iniciado no governo de Sérgio Cabral Filho, proporcionou um período de significativa contenção da letalidade policial, pois, com a ocupação permanente de favelas, as operações policiais se reduziram drasticamente. Já o governo de seu sucessor, Luiz Fernando Pezão, foi marcado pela crise política e econômica e a falência fiscal do governo do estado – a letalidade policial e as chacinas em operações subiram drasticamente, concomitante ao aumento de todas as demais ocorrências criminais. Essa piora dos indicadores culminou, em 2018, com uma intervenção federal na segurança pública do estado, coordenada por um general do Exército, e abriu caminho para a chegada ao poder da extrema direita, representada no Rio de Janeiro pela chapa Wilson Witzel/Cláudio Castro.
O primeiro ano do governo Witzel conseguiu atingir a cifra macabra de 1814 mortos pelas polícias e 75 chacinas policiais, os patamares mais elevados de toda a série histórica – tanto a do ISP, a partir de 1999, como a do Geni/UFF, que analisa os dados desde 2007. A extinção da Secretaria de Segurança Pública (Seseg) e da Corregedoria Geral Unificada (CGU) conferiu grau máximo de autonomização às polícias, que passaram a atuar de forma ainda mais brutal. As chacinas se tornaram ainda mais frequentes. Foram sendo fechados os poucos canais de diálogo entre o estado e a sociedade civil, o que impulsionou a utilização dos meios judiciais como forma de enfrentamento da letalidade policial, como no caso da Ação Civil Pública da Maré e, atualmente, a ADPF das Favelas – no âmbito da qual se conseguiu que o STF circunscrevesse algumas das devidas cautelas durante a atuação das polícias em operações.
Algumas das conquistas populares na justiça e contra as quais a polícia se insurge atualmente são: a solicitação da presença de ambulâncias durante operações; a proibição de utilizar escolas, creches e hospitais como bases operacionais; a exigência de que as cenas dos homicídios sejam preservadas; a prioridade de investigação dos casos envolvendo a morte de crianças e adolescentes; e a investigação independente de homicídios de autoria policial, dentre outras medidas visando à preservação da vida e a observância à lei. Resta saber em que sentido essas conquistas “atrapalham o trabalho policial”. Que tipo de atividade policial é essa que não pode ser submetida a nenhum controle legal?
As políticas de segurança pública baseadas no confronto armado e no extermínio de suspeitos proporcionam custos altíssimos à sociedade e não contribuem para a diminuição da ocorrência de crimes, mas proporcionam retornos eleitorais. Além dos números inaceitáveis de mortos, todos os dias milhares de pessoas são impedidas de comparecer ao trabalho e a escolas, creches e serviços de saúde deixam de funcionar nas áreas onde a polícia realiza operações. Enquanto isso, os grupos armados dispõem de um contingente pronto para substituir agentes do rés ao topo da hierarquia criminal. A ausência de controles sobre as incursões armadas em favelas colabora para a corrupção do aparato policial, pois o uso não regulado da força oficial abre caminho para a obtenção de vantagens privadas.
Defender que as chacinas policiais são eficientes para o controle do crime é negacionismo ou, pior, perversidade. As chantagens e chacinas que se sucedem às tentativas de controle democrático da atividade policial são os maiores sintomas de algo que cresce corroendo as instituições democráticas. Já não se trata mais apenas de uma questão de segurança pública, mas da própria democracia.
- ↑ Coordenadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).
- ↑ Publicado originalmente na Revista Piauí.