Chacinas policiais no Rio de Janeiro: Estatização das mortes, mega chacinas policiais e impunidade (Relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Matheus de Moura, Grupo de Estudos Novos Ilegalismos (GENI/UFF)

Contextualização[editar | editar código-fonte]

Até o momento da produção deste verbete e do relatório referido, a chacina do Jacarezinho, que deixou 28 mortos em 2021, ainda é a maior da história do Rio de Janeiro. O fato não está isolado num vácuo histórico: como os dados levantados pelo GENI e o Fogo Cruzado mostram, as chacinas policiais vêm se firmando como um fenômeno recorrente e até previsível desde a redemocratização do Brasil. Como consta no próprio relatório: "No período entre 2007-2022, foram realizadas 19.198 operações policiais no Rio de Janeiro. Deste total, 629 operações policiais resultaram em chacinas, totalizando 2554 mortos."

A recorrência do fato, entretanto, não se refletia diretamente na produção sistematizada de estudos sobre chacinas. A chacina do Jacarezinho é um marco nacional para a urgência do tema chacina. A partir dela, surgem relatórios como este que abordamos aqui. Ela representa a manifestação máxima de um evento mortal desse tipo, ao mesmo tempo que têm sua estrutura similar aos de menor porte, com arquivamentos, adulteração de cena de crime, impedimento de perícias (quando há), uma posição omissa do Ministério Público etc.

"Como pode ser visto, dois processos foi encerrados até o presente, sendo eles arquivados. Apenas 2 casos foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça e nenhum deles concluiu a fase de instrução e julgamento, isto é, nenhum deles chegou a ser pronunciado ou impronunciado no Tribunal do Júri e, portanto, não foi ao julgamento decisivo pelos jurados. Há dois casos que estão sendo investigados por meio de um Procedimento Investigatório Criminal (PIC)12 instaurado pelo próprio MP – logo distinto do inquérito policial, que é instaurado pela Autoridade Policial – sendo que ambos se encontram em processamento no MP há cerca de um ano. Outros nove casos ainda se encontram em fase de Inquérito Policial e o tempo médio de processamento desses casos, em particular, é de dez anos e quatro meses, forte indicador de que parte deles se encontra estagnado no “pingue-pongue” entre a PC e o MP13 ou perdidos em delegacias. Cabe destacar que um número expressivo de casos (12) não foi localizado, o que constitui um indicador da falta de transparência do Sistema de Justiça Criminal."

O relatório[editar | editar código-fonte]

Os dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que, além de a Região Metropolitana do Rio de Janeiro ser extremamente violenta, essa violência é impulsionada pelas forças policiais, pois 252 das 341 chacinas notificadas entre 2017-2022 foram realizadas em ações/operações policiais e 1024 dos 1342 mortos em chacinas perderam suas vidas nessas circunstâncias. Ademais, a porcentagem de chacinas policiais e de mortos nessas situações vem aumentando nos últimos anos, 2022 foi o ano em que 80,4% das chacinas e 87% das mortes em chacinas foram perpetradas por policiais. Isto significa que as forças policiais cometem muito mais chacinas com muito mais vítimas letais em eventos desse tipo do que todos os grupos armados somados. A principal justificativa para a realização de operações policiais de incursão em favelas e bairros periféricos costuma ser justamente a de combater esses grupos, considerados os principais responsáveis pela violência urbana. Por isso é fundamental compreender as motivações das operações policiais que resultam em chacinas, para saber qual o peso que este enfrenta mento ocupa no conjunto das motivações para operações policiais. Por meio da descrição das motivações das operações policiais é possível inferir que tipo de circunstância antecede ou desencadeia uma chacina.

Dentre as motivações classificadas na base do GENI/UFF estão: repressão ao tráfico de drogas e armas, disputas entre grupos criminais, mandado de prisão ou busca e apreensão ou prisão, retaliação por morte ou ataque a unidade policial, fuga ou perseguição, recuperação de bens roubados, outros e sem informações. Para analisar a relação entre a motivação das operações policiais e as chacinas policiais, calculamos com respeito ao total de operações realizadas sob cada uma das motivações registradas, qual porcentagem delas foi de chacinas. O gráfico abaixo (gráfico 3) mostra que 13% das operações policiais motivadas por “disputa entre grupos criminais” e 4,9% daquelas motivadas “fuga ou perseguição” resultam em chacinas, ao passo que as operações motivadas por “recuperação de bens roubados” e “mandado de busca e apreensão ou prisão” apresentam menor percentual de chacinas, sendo 1,7% e 2,2% respectivamente. Em média 3,3% das operações resultam em chacinas.

Mega Chacinas[editar | editar código-fonte]

A interpretação da evolução histórica da participação da letalidade policial na letalidade violenta e a variação conforme das chacinas, segue alguns marcadores importantes que já foram apresentados em outra oportunidade (Hirata et al. 2021). Cabe destacar, contudo, alguns pontos de inflexão claramente visíveis no gráfico acima (Gráfico 6): O primeiro ponto de inflexão foi a implementação das UPP’s (2008) e o sistema de metas (2009), que coincidem com a redução da participação do Estado na produção de mortes e da quantidade de chacinas policiais. O segundo ponto de inflexão é o início da desmontagem dessas duas políticas (2013-2014), aliada à grave crise que levou o Governo do Estado do Rio de Janeiro a falência fiscal (2015). Observa-se no período posterior a esses marcos um crescimento constante da participação da letalidade policial na letalidade violenta e no número de chacinas policiais, inclusive muito superior à diminuição registrada anteriormente. Este aumento atravessou o período da recuperação fiscal do estado do Rio de Janeiro, que melhorou a capacidade operativa do Estado, da intervenção federal de 2018, que trouxe tropas do Exército para se somar às já violentas polícias do Rio de Janeiro, e da extinção da SESEG em 2019, que conferiu maior autonomia às polícias. O terceiro ponto de inflexão veio somente com o a decisão do STF de restringir as operações policiais em 2020, que se conseguiu frear este avanço da estatização das mortes e das chacinas.

Apesar da Decisão do STF continuar em vigor, a participação da letalidade policial sobre a letalidade violenta continuou muito alta desde 2020, mantendo o patamar mais alto de toda a série. O número de chacinas, contudo, mostrou uma redução significativa. Como isso foi possível? Observa-se que, embora a quantidade de chacinas policiais tenha diminuído, uma parte delas se tornou extremamente letal, concentrando um número muito elevado de mortes numa única ação policial. Nesse período ocorreram algumas das chacinas mais letais da história do Rio de Janeiro. Para compreender esse fenômeno novo, a que denominamos mega chacinas policiais, dividimos as chacinas segundo o número de mortos: de 3-4 mortos, de 5-7 mortos e 8 ou mais mortos, as doravante chamadas mega chacinas. Em seguida, procuramos compreender o peso percentual de cada um desses grupos nos períodos demarcados pelas inflexões históricas apontadas acima.

Como é possível observar, o período de 2020-2022 é aquele no qual a porcentagem de mega chacinas policiais (aquelas com mais de 8 mortos) é a mais elevada, chegando a 23,4% das chacinas. Em períodos anteriores, a participação das mega chacinas no total de chacinas policiais chegara no máximo a 12,9% no período de 2007-2009 e, entre 2014 e 2019, chegara a ser quase cinco vezes menor do que entre 2020-2022.

De todas as 629 chacinas que ocorreram entre 2007-2022, apenas 27 delas (4,2%) apresentaram 8 ou mais mortos, podendo ser caracterizadas como mega chacinas policiais. Um terço dessas 27 mega chacinas (9) se concentram no período de 2020-2022, sendo que dessas, encontramos a mais letal (Jacarezinho, com 27 mortos civis, em maio de 2021), a segunda mais letal (Penha, com 23 mortos, em maio de 2022) e a quarta mais letal (Alemão, com 16 mortos, em julho de 2022). Podemos então dizer que o processo de estatização das mortes, no qual a letalidade das polícias se torna cada vez mais significativa para o conjunto total das mortes, se encontrou nos últimos anos com a realidade das mega chacinas policiais, que são não apenas escandalosamente mortais, mas também cada vez mais recorrentes.

Impunidade[editar | editar código-fonte]

O poder executivo estadual tem sido bastante explícito ao endossar a suposta legitimidade e legalidade das mega chacinas policiais ocorridas durante o seu mandato. Mas diante desse total descontrole sobre o uso da força estatal, cabe indagar o que está sendo feito pelo sistema de justiça para submeter as instituições policiais à Lei e, assim, assegurar o respeito do direito à vida da população pobre, negra e favelada. Tal estado de coisas não poderia se perpetuar sem a leniência do Ministério Público e da Justiça estaduais, instituições encarregadas, respectivamente, da fiscalização da atividade policial e da responsabilização legal de criminosos.

A impunidade das mortes perpetradas por agentes de estado tem sido objeto de investigação de importantes pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e outros estados, desde os trabalhos de Verani4 e Cano5 que trataram dos então chamados “autos de resistência” quando ainda processados pela justiça militar. Muito anos após esses casos terem passado a ser de competência da justiça comum, estudos como o de Misse et al.6, Zaccone7, Araújo8, Farias9 e, mais recentemente, do Fórum Justiça10 apontaram a indiferença legal e a impunidade como elementos centrais e determinantes para a continuidade da letalidade policial no Rio de Janeiro.

No estado do Rio de Janeiro, tamanha é a presunção de verdade da palavra do policial que vige a Súmula nº 70, segundo a qual “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”11 A mesma fé pública que confere à palavra dos policiais o status de prova única e suficiente para condenar um réu serve também como prova definitiva de que as mortes por intervenção por agentes do Estado ocorrem sempre em legítima defesa. Não se trata aqui de negar que ocorram confrontos entre polícia e grupos armados, mas de constatar que há desproporcionalidade no uso da força por parte da polícia, ausência do emprego de cautelas destinadas à defesa da vida e que ocorrem execuções sumárias escamoteadas como legítimas defesas. As mega chacinas policiais com elevado número de vítimas, são emblemáticas nesse sentido. Como argumentar que 27 pessoas foram mortas em legítima defesa? A fórmula habitual da impunidade não pode ser aplicada tão facilmente às chacinas.


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