Classes Perigosas (resenha)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Este verbete é uma resenha de José Paulo Netto sobre o livro raro de Alberto Passos Guimarães, relançado pela Editora UFRJ, que mostra as faces da violência brasileira com chocante atualidade.

Autoria: Resenha: José Paulo Netto[1], Verbete: Reprodução.

Sobre a autoria: Este verbete foi reproduzido pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco, de acordo com as licenças Creative Commons vigentes.

Sobre[editar | editar código-fonte]

O combate às raízes da violência ainda sobrevive como um desafio civilizatório no Brasil. Nesta primeira década do século XXI, o cenário é aterrador: violência generalizada, insegurança, corrupção policial, milícias armadas, criminalização das classes pobres e aumento do rigor punitivo. O número de presos no país, por exemplo, passou de 90 mil, em 1990, para 443 mil, em 2007 – um aumento de 468%.

No período da chamada redemocratização brasileira, a ação repressiva dos aparatos públicos de segurança não arrefeceu, como se poderia pensar, mostrando- se com mais nitidez no campo dos delitos comuns. Ao longo dos últimos 30 anos, o endurecimento das penas e o confinamento em prisões cada vez mais superpovoadas se impuseram como meio de controle da criminalidade.

A reedição de As classes perigosas: banditismo urbano e rural (Editora UFRJ, 2008), obra raríssima de Alberto Passos Guimarães, publicada em 1982, pode ajudar a compreender melhor o papel da violência na história da sociedade brasileira. E mais: o livro mostra que a política de repressão ao crime, naquela época, já sobrepujava as ações de caráter preventivo. Os órgãos policiais – dizia o autor –, “pouco fazendo para prevenir o crime, querem compensar sua ineficácia tentando inútil e injustificadamente eliminar o crime aumentando o grau de ferocidade da repressão”. A análise parece dirigida à política de segurança do atual governo do Rio de Janeiro, cuja polícia matou 1.330 pessoas em supostos confrontos no ano passado, mais da metade, por exemplo, do número de mortos em São Paulo pelo mesmo motivo – de acordo com dados oficiais divulgados pelos dois estados.

O “perigo” de cada época[editar | editar código-fonte]

Ao comentar a importância histórica da reedição da obra, a professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, Paula Ponciani – pesquisadora da área de segurança pública – afirma que as questões tratadas no livro, de alguma forma, ainda retratam a sociedade brasileira. Ela diz que a obra versa sobre a lógica recorrente de tipificar o segmento pobre da população com esse atributo de “classes perigosas”. Em sua ótica, as sociedades criam, em períodos históricos diferentes as suas próprias “classes perigosas”, que podem ser constituídas por negros, pobres ou homossexuais. “Esses segmentos passam, então, a ser tratados como cidadãos de terceira categoria”, sublinha.

Para outra estudiosa da violência urbana, a economista e antropóloga Leonarda Musumeci – do Instituto de Economia (IE) da UFRJ – tudo indica que jovens excluídos do mundo do trabalho e da escola são mais vulneráveis à cooptação pelo crime. No geral, concorda com a idéia defendida por Alberto Passos Guimarães, em 1982, de que a elite forçou “aqueles que penetraram no inferno do pauperismo e se transformaram de reservas do mundo do trabalho em reservas do mundo do crime, em suma, a passarem de classes laboriosas para classes perigosas”.

Porém, ela adverte que não dá para fazer uma associação direta entre pauperização e entrada para o crime. E lembra que no Rio de Janeiro os focos mais graves de criminalidade violenta se apresentam hoje na forma de controle territorial armado em certas áreas da cidade, por parte de traficantes ou de milícias. “Esse fenômeno das milícias está ligado a agentes do Estado que têm estratégias semelhantes às estratégias dos traficantes. Por sua vez, o abastecimento de armas e drogas é viabilizado por uma vasta rede de criminalidade e corrupção que não está ligada diretamente à pobreza ou ao lumpemproletariado”, avalia.

Paula Ponciani também concorda que essas questões ligadas à violência não estavam presentes na conjuntura do início da década de 80. “A economia do tráfico de drogas difere muito do que Alberto Passos chama de banditismo urbano. A questão do crime e da violência se tornou mais complexa”, comenta. Para Ponciani o que mudou é a estratégia recorrente do Estado brasileiro de fazer o controle da ordem social por meio da violência policial, “no caso brasileiro, uma violência desmesurada”, conclui a pesquisadora.

No âmbito da segurança pública, segundo Paula Ponciani, falta ao Estado brasileiro a incorporação do conceito weberiano de monopólio da violência legítima, “que retira das mãos de particulares a possibilidade de utilização da violência”, afirma. Mais importante do que isso, para ela, é que a violência exercida pela autoridade do Estado só é legítima porque está sob o amparo das leis e dos estatutos legais. “No entanto, o que temos no Brasil é uma negligência do Estado em relação à segurança pública”, critica a pesquisadora, acrescentando que a violação de direitos humanos não é exceção na história do Brasil. Ela pergunta: em que momentos houve respeito efetivo aos direitos humanos no país? “Essa política de segurança violenta, repleta de ações extralegais, tem mais permanências do que mudanças ao longo da história brasileira. E o segmento pobre da população é historicamente um alvo privilegiado da ação repressiva do Estado no Brasil, com o uso de força que não respeita os estatutos legais”, enfatiza Ponciani.

O Rio violento[editar | editar código-fonte]

De acordo com Leonarda Musumeci, esse quadro de confronto, no caso do Rio de Janeiro, é exacerbado, embora o abuso policial e a violação de direitos fundamentais da população mais pobre sejam problemas endêmicos em todo o Brasil. “Evidentemente, a política de confronto explicitamente adotada pelo governo do estado do Rio se dirige, sobretudo às áreas de baixa renda”, observa. A pretexto de se travar uma “guerra” contra o crime, estimula-se o aumento da violência policial contra esses segmentos da população, na opinião de Musumeci. “Quanto mais ineficaz se mostra essa estratégia, mais se recorre a ela, gerando uma absurda escalada da letalidade nas ações da polícia”, condena.

Numa pesquisa recente, Paula Ponciani constatou que o governo do estado não tem um plano estadual de segurança pública. Isso quer dizer que as ações dirigidas à segurança pública estão sendo norteadas por pressões da mídia, do público e da política partidária de caráter eleitoreiro. “São ações fragmentadas, descontínuas e episódicas, em resposta a pressões do momento, sem se guiar por um plano de segurança”, assevera. Na atual gestão governamental, afirma que não há políticas de redução da violência e do crime que compreendam a dimensão preventiva. “Esse incentivo para a polícia atuar como ‘força de guerra’ em comunidades pobres é uma opção política”, frisa a pesquisadora.

Em sala de aula, Ponciani costuma recomendar a leitura da obra de Alberto Passos Guimarães – segundo ela “reeditada em boa hora” – e sempre discute o conceito de “classes perigosas” quando aborda a questão da segurança. Especialmente dessa segurança pública que, no seu entendimento, distingue entre a “polícia do doutor” e a “polícia do moleque”.

De acordo com Leonarda Musumeci, não há solução mágica ou centrada em um único aspecto para o problema da violência. Ela diz que as experiências em que houve redução acentuada dos índices de violência, como em São Paulo, Bogotá ou Nova York, mostram a necessidade de programas integrados, que atuem em várias frentes. Musumeci também considera que o problema da violência não é uma mera questão de repressão policial ou judicial. Para enfrentá-lo, conclui, somente com um misto de medidas que envolvam políticas sociais, reforma e controle externo das instituições de segurança, combate à corrupção e da criminalidade dentro do aparelho de Estado, além de ações específicas voltadas para os segmentos sociais mais vulneráveis à violência.

Uma obra para ficar[editar | editar código-fonte]

A segunda edição de As classes perigosas tem notável importância, já que o livro praticamente desapareceu do alcance do público nos últimos anos, analisa o professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, José Paulo Netto, autor do texto de apresentação da obra. Para ele, tanto a problemática como a metodologia de análise do livro permanecem extremamente atuais. “Quando acadêmicos, estudiosos e autoridades públicas se vêem obrigados a continuar tomando a violência como objeto de compreensão e intervenção, o trabalho de Passos Guimarães mostra-se como um referencial de conhecimento obrigatório”, elogia.

José Paulo Netto lembra que após o aparecimento de As classes perigosas produziu-se muito conhecimento relevante sobre o tema do banditismo urbano e rural. Contudo, realça que a massa crítica acumulada não invalidou nenhum dos elementos substantivos que Passos Guimarães extraiu do seu objeto – “a sua análise, pois, revela-se, ainda hoje, paradigmática”.

Porém, o que de mais significativo pode-se extrair da obra, segundo o professor da UFRJ, é a absoluta atualidade e validade do seu método, radicalmente histórico e inspirado na tradição da dialética marxista. “Por outro lado, a forma como o poder público vem propondo o confronto como política de segurança revela a inteira inépcia dos responsáveis por esta política para compreender a essência do fenômeno da violência. Tanto mais por isto, a leitura do livro de Guimarães Passos é atualíssima”, enfatiza.

Mas como, então, Alberto Passos Guimarães vê o fenômeno da violência? Como marxista de boa cepa, ele recusa-se a considerar o fenômeno da violência, urbana e rural, como resultante de duas ou três causas, avalia José Paulo Netto. “A sua análise é pluricausal e, por isso mesmo, não reduz ou esquematiza o complexo de causas, razões e motivos que estão na base do fenômeno da violência”, explica. Contudo, prossegue o professor da UFRJ, Passos Guimarães confere prioridade ontológica às razões econômico-políticas, que estão no cerne do problema e devem ser buscadas na particularidade da formação histórica brasileira, pois permanecem presentes até hoje.

José Paulo Netto observa que, desde a primeira edição de As Classes Perigosas, cresceu a massa crítica voltada para a análise do seu objeto. “Por isso, o seu livro não é suficiente para dar conta do fenômeno da violência tal como ela se apresenta atualmente”, adverte. Mas, especialmente pelo exemplar método de análise, reitera que a obra é de consulta obrigatória tanto para os especialistas como para os leitores comuns interessados no tema.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Coletivo de Ação e Cidadania Machado de Assis

Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

Arte, Cultura e Saúde Mental - cidadania, emancipação e criatividade (Manguinhos)

Notas e referências