Dia da Favela: comemorar a resistência

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

A Federação de Favelas do RJ celebra 60 anos de luta, em 2023. É fundamental dar visibilidade, divulgar, apoiar e fortalecer a história de resistência das faveladas e dos favelados. Na data de 04 de Novembro - Dia da Favela - vamos comemorar a nossa resistência e celebrar os nossos ancestrais.

Autoria: Renata Souza [1] e  Derê Gomes[2], por Mídia Ninja.[3]
Foto: Raysa Castro / Jornal O Cidadão

A Federação de Favelas do RJ celebra 60 anos de luta[editar | editar código-fonte]

Novembro é um mês marcado por luta e resistência. Além de ser o mês da consciência negra, data reivindicada pelo movimento negro brasileiro em memória de Zumbi dos Palmares, também é o mês da favela, em decorrência do Dia da Favela comemorado no dia 4 de novembro.

Neste ano, 2023, o Dia da Favela merece um destaque especial, pois a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, a Faferj, entidade representativa de centenas de associações de moradores de favelas, completa 60 anos de existência e luta pela dignidade das favelas, por urbanização e saneamento, contra o massacre cotidiano e em defesa do Estado Democrático de Direito – no asfalto e nas favelas, onde ele nunca existiu.

Fafeg (Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara)[editar | editar código-fonte]

Fundada em junho de 1963 como Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg), foi uma das primeiras organizações perseguidas pelo regime ditatorial instaurado em abril de 1964. Na ocasião do golpe, seu presidente teve de fugir e, durante a ditadura, várias de suas lideranças foram perseguidas e presas.

A atuação da Fafeg no período foi fundamental para resistir a política urbana da ditadura que buscava aprofundar brutalmente as desigualdades nas cidades, e cuja principal expressão foi a política de remoções forçadas que tinha o objetivo declarado de erradicar as favelas das áreas nobres do Rio de Janeiro.

Apesar dessa atuação, a Fafeg, atual Faferj, raramente entra nas memórias e narrativas dominantes sobre a ditadura, no rol de atores políticos e sociais que protagonizaram a resistência. Esse lugar é em geral ocupado por entidades de classe como a OAB e a ABI, por outras organizações de esquerda e pelo movimento estudantil, compostos majoritariamente por setores das classes médias altas urbanas, brancos e masculinos.

Apagamento de lutas[editar | editar código-fonte]

Após o fim do governo Bolsonaro, estamos vendo mais uma vez um apagamento da luta daquelas e daqueles que estiveram na linha de frente da defesa do direito à vida nos últimos anos. No período Bolsonaro, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), os autos de resistência no período de Bolsonaro e Witzel/Castro (2019 a 2022) totalizam 5.742 mortos, apenas no estado do Rio de Janeiro.

Foi nesse contexto que o estado vivenciou algumas das mais letais chacinas de sua história, como as do Jacarezinho (maio de 2021, 28 mortos), Complexo da Penha (maio de 2022, 24 mortos) e Alemão (julho de 2022, 19 mortos).

Neste cenário, são o movimento de favelas e o movimento negro que têm chamado atenção para o fato de que esses dados não são compatíveis com um regime que se pretende democrático. Ações como a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) 635 e a luta pela obrigatoriedade de câmeras nos uniformes policiais, iniciativas das quais a Faferj participa e protagoniza, aparecem como ações fundamentais de resistência às graves violações aos direitos humanos do presente – e, portanto, como formas de luta pela garantia de um mínimo de Estado Democrático de Direito.

Dia 04 de Novembro: O que comemorar no dia da favela[4]?[editar | editar código-fonte]

O dia 04/11 foi instituído pela lei estadual Nº 8.489 de 2019 como o “Dia da Favela”.  No seu primeiro artigo a lei afirma que a data passa a integrar o calendário comemorativo do Estado do Rio de Janeiro, e nos artigos dois e três diz que o poder público fomentará (incentivará) a promoção de parcerias entre entidades públicas e privadas para a realização de eventos culturais no estado e nas escolas públicas em comemoração pelo dia da Favela.

Porém antes de “comemorar”, precisamos pensar bem sobre o significado de um Dia da Favela no calendário oficial. Isso porque não se pode, em primeiro lugar, falar em favela sem entender do que estamos tratando. A favela existe há mais de cem anos no Rio de Janeiro e mesmo assim ainda é muito mal compreendida, sendo vista como um “problema” e como uma ameaça. Se olharmos para a construção do imaginário sobre a favela – melhor seria dizer as favelas, no plural, para expressar a diversidade delas – veremos que desde seu surgimento ela abrigou os mais pobres, os negros, os nordestinos e todos aqueles que não se enquadravam no que se chamava de “boa sociedade”.

Precisamos ainda reconhecer que a origem das favelas remota às nossas desigualdades sociais, culturais, raciais e econômicas mais gritantes. Estudos recentes, por exemplo, apontam que morar numa favela pode significar menos 20 anos de vida quando comparado com a expectativa de vida de um morador de áreas mais ricas da cidade.

Por isso, não há como “romantizar” as dificuldades enfrentadas pelos favelados. Desde o surgimento desses territórios populares no Rio de Janeiro, começando pela primeira favela, o Morro da Providência, as favelas sempre sofreram com o racismo e com o preconceito. E mesmo depois de tanto tempo, seus moradores e moradoras são, ainda hoje, tratados como cidadãos de segunda categoria.

No entanto, cabe reconhecer a força da organização coletiva dos favelados e faveladas ao longo do tempo. Desde sempre elas e eles se acostumaram a lutar por seus direitos e a resistir a inúmeras tentativas de remoção e destruição de suas casas. Embora, muitas vezes, não tenham sido bem-sucedidos, pois acabaram perdendo a batalha para o Estado, que de mãos dadas com os especuladores imobiliários - interessados nos terrenos ocupados pelas favelas – retiraram milhares de moradores de mais de uma centena de favelas ao longo da história do Rio de Janeiro.

Por isso, temos de ter cuidado quando ouvimos de algumas pessoas, talvez mais entusiasmados com a recente atenção que as favelas têm recebido da mídia - atenção nem sempre positiva -, quando afirmam “que a favela venceu”. Na verdade, isso ainda está para se consolidar, já que a luta dos favelados por direitos básicos, como o direito à vida, e por respeito tem de ser conquistados diariamente e com muita persistência. Lembremos que oficialmente – pela definição do IBGE - as favelas ainda são definidas como “aglomerados subnormais”.

É verdade que os moradores e moradoras das favelas cariocas a cada dia avançam no sentido de construir lutas coletivas que enfrentam as desigualdades a que estão submetidos. Caso, por exemplo, da intensa mobilização realizada para dar conta, quase sozinhos, dos desafios da pandemia de Covid-19.

Lutas como essa constroem ações cujo impacto melhora a vida dos favelados e, na sequência, podem ajudar a construir uma cidade mais justa e igualitária. Isso porque não há cidade sem a favela, ela é cidade. É desse território, a favela, de onde partem as maiores lições de solidariedade hoje. Essas lições ajudam na renovação das relações entre as pessoas e criam novas formas de sociabilidade e cultura, cada vez mais inclusivas e em redes de apoio que fogem dos padrões excludentes do mercado.

A favela, sem deixar de reconhecer os inúmeros problemas estruturais pelos quais passa, é um lugar de riqueza, criatividade e de crença num futuro melhor. Se olharmos desse jeito para as mais de 1.300 favelas do estado do Rio de Janeiro, e poderíamos incluir também as favelas espalhadas pelo Brasil, teremos, aí sim, o que celebrar neste 4 de novembro.

Redes da Maré, Rio de Janeiro, 04 de novembro de 2021.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Rede Favela Sustentável

Ocupa Alemão

Empreendedorismo em favelas

  1. Jornalista e doutora em Comunicação e Cultura, Renata Souza é cria da Favela da Maré. Feminista negra, preside a Comissão da Mulher da Alerj. Foi reeleita a deputada estadual mais votada da história.
  2. * DERÊ GOMES é cria da Vila Cascatinha, Complexo da Penha, historiador formado pela UERJ, com mestrado em Planejamento Urbano pela UFRJ. Também é fundador da Ação Negra – Articulação Nacional do Movimento Negro Brasileiro e compõe a direção da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, a FAFERJ.
  3. Mídia Ninja
  4. Redes da Maré