Cidade Integrada: um velho ano novo para o Jacarezinho
Mais uma vez, moradores veem velhas soluções vendidas como novas. Mais uma vez, é necessário repetir que não existe cidade integrada sem direitos.
Autoria: Julio Santos Filho, para o blog Rio On Watch [adaptado], em 16 de fevereiro de 2022, reproduzido pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Sobre[editar | editar código-fonte]
Na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, 2022 não parece ser um novo ano. Novamente, moradores se veem diante da narrativa falaciosa da “retomada do território” pelo governador Cláudio Castro, Polícia Civil e Militar. Oito meses após a Chacina do Jacarezinho, defendida pelo governador, em 19 de janeiro às 5h da manhã, a favela ainda se recuperava e chorava seus 28 mortos, quando presenciou o início de um novo ciclo de temor: o Programa Cidade Integrada. O medo de novo perambulava pelos becos e vielas do Jacarezinho, sintetizado em toucas ninjas em rostos e fuzis em mãos.
As ocupações do Programa Cidade Integrada estão acontecendo ainda durante a vigência da ADPF das Favelas, que proíbe operações policiais durante a pandemia, salvo em casos excepcionais e sempre em coordenação com o Ministério Público. Em desacordo com o julgamento do STF, o Programa foi anunciado como política de ocupação permanente e não de caráter excepcional. Portanto, paira sobre ele o fantasma da ilegalidade como vício de origem. Para além disso, o Cidade Integrada conta com baixíssimos níveis de confiança nos territórios, com uma população calejada pela política do cansaço.
A narrativa oficial[editar | editar código-fonte]
Segundo o governo, Cidade Integrada, que além de entrar no Jacarezinho ocupou também a Muzema, comunidade explorada pela milícia na Zona Oeste, terá um investimento inicial de cerca de R$500 milhões no Jacarezinho focado seis eixos: social, infraestrutura, transparência, econômico, diálogo e governança, e segurança. Algumas ações desses eixos começariam ainda em janeiro e fevereiro, como o Programa Desenvolve Mulher, de incentivo a 2.000 mulheres chefes de família de 16 a 30 anos do Jacarezinho e da Muzema com cursos e o pagamento de um auxílio mensal de R$300; o Programa De Bem Com a Vida, de atendimento jurídico na área previdenciária, inclusão digital e cuidados físicos e mentais voltados para idosos; e a distribuição de vouchers para a compra de botijões de gás com fornecedores legalizados. Obras de revitalização da Escola Luiz Carlos da Vila e do Centro de Referência da Juventude já estão em andamento.
Promete-se ainda, em breve, começar a construção de uma unidade da Faetec, a reforma da Biblioteca Parque de Manguinhos e de dois condomínios populares, um na Avenida Dom Hélder Câmara e outro no Conjunto dos Ex-Combatentes, além da construção de 765 imóveis pelo Programa Casa da Gente. Paralelamente, está sendo feito o cadastro de moradores que vivem em locais irregulares e sem saneamento. Castro promete ações nos rios Jacaré e Salgado: microdrenagem, limpeza, desassoreamento e retirada de entulhos. O projeto contemplaria obras de saneamento até dentro das residências de moradores: “O objetivo é que, até o fim do ano, não haja nenhuma casa sem banheiro no Jacarezinho e na Muzema”, disse o governador.
Essas obras poderão causar a remoção de 800 famílias às margens dos rios do Jacarezinho, sem debates com a comunidade, sem projeto publicizado e sem sistema de indenizações e reassentamento. Essas obras de remoção devem custar R$47 milhões e irão começar no segundo semestre de 2022. De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), o Programa inclui a canalização do Rio Salgado e a urbanização do entorno com calçamento e pavimentação, implantação de ciclovias e de áreas de lazer.
Está prevista também a construção de novos equipamentos públicos: hospital, batalhão, espaços de lazer, centros de assistência ao cidadão e mercado do produtor rural. No entanto, para tal, será necessária a desapropriação da antiga fábrica da GE no Jacarezinho, avaliada em R$4.6 milhões.
Segundo Castro, diferentemente das UPPs, Cidade Integrada não é só ocupação policial, mas um trabalho conjunto de ações sociais. Para pesquisadores, como o cientista político e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Henrique Aguiar Serra, é uma repaginação da UPP: “O Programa Cidade Integrada de inovador não tem absolutamente nada. Resguarda enormes semelhanças com outros programas que não têm mais o apelo que tinham, como as UPPs. Não adianta a retórica do governador falar que não é um programa de pacificação, como se ele quisesse se diferenciar das UPPs. A política estadual de segurança pública continua calcada na militarização da segurança pública e na óptica da guerra e do inimigo. E essa dupla óptica prevalece”.
Foi anunciada também a instalação de um sistema de videomonitoramento com 22 câmeras de reconhecimento facial espalhadas em pontos-chave da favela. Entre as especificações das câmeras, estão: detecção facial, de placas, capacidade de contagem de pessoas e detecção de imagens coloridas em ambientes de baixa iluminação. A central de monitoramento ficará na Cidade da Polícia, próxima ao Jacarezinho.
“Cidade Integrada é um bom título, mas na verdade é a militarização da cidade e de integrado não tem nada. É uma figura retórica extremamente vazia… uma tragédia que se repete no cotidiano das camadas populares.” — Carlos Henrique Aguiar Serra
Os perigos do reconhecimento facial para as favelas[editar | editar código-fonte]
Tentativas anteriores de implantação do reconhecimento facial no Brasil não tiveram bons resultados. É o que aponta Pablo Nunes, doutor em ciência política e coordenador do Panóptico — Monitor do Reconhecimento Facial no Brasil, do CESeC: “No caso do projeto-piloto do Rio de Janeiro, não encontramos impactos relevantes nos indicadores criminais. Muito pelo contrário, praticamente todos os índices criminais importantes tiveram aumento durante o uso do reconhecimento facial em Copacabana. O que revela que essas câmeras têm pouco impacto… em reduzir índices de criminalidade”.
O projeto-piloto de Copacabana não é caso isolado da ineficácia das tecnologias de reconhecimento facial no Brasil. Pablo analisa os efeitos decorrentes dessa tecnologia:
“No contexto brasileiro, a gente tem um avanço do reconhecimento facial, a partir principalmente de 2019, sendo a Bahia o estado em que essa tecnologia já opera por mais tempo no país. Por estar sendo operada há mais tempo, é onde se tem também o maior número de prisões: já passam das 200 prisões com o uso do reconhecimento facial. Ao ver essas prisões, começamos a catalogar esses casos e chegamos ao fim de 2019 com 184 pessoas presas. Nos casos em que havia informação, 90% eram negras e presas por crimes sem violência, como furto e tráfico de pequenas quantidades de drogas”.
A prevalência de presos negros expõe opressões sociais traduzidas como códigos binários e algoritmos. O reconhecimento facial não é uma tecnologia neutra. Tem vieses raciais, sociais e de gênero. Pablo expôs alguns desses perigos para o contexto brasileiro:
“Essas câmeras… a gente sabe, o quanto que elas produzem de problemas, principalmente para a população negra, essa população que tem muito mais chance de ser confundida por essas câmeras do que homens brancos, que são a parcela da população que tem melhores resultados em termos de reconhecimento por meio de algoritmos. Isso tem um impacto importante na vida das pessoas em termos de violações dos seus direitos. Aqui no Rio de Janeiro, no segundo dia do projeto piloto [de Copacabana], em 2019, uma pessoa foi presa erroneamente e, na verdade, a pessoa procurada já estava presa há quatro anos. Então, isso revela o quanto a própria instituição não está preparada para lidar com essa tecnologia. Para os favelados, o Estado chega na forma de um fuzil e também agora na forma de violação de direitos por meio de videomonitoramento. Imagine o quanto de informação vai ser produzida por essas câmeras que vão gravar 24 horas por dia. E sobre o direito à privacidade, à proteção de dados pessoais dessas pessoas negras que moram em favelas, a gente não discute. Colocando quase que como uma escolha entre dois mundos: ou você vai aceitar ter uma política pública de segurança que estamos impondo a você ou você escolhe proteger seus dados pessoais. Uma escolha que não deveria existir em uma democracia. Não é democraticamente plausível e aceitável que uma parcela da população tenha que escolher qual direito ela vai querer proteger entre aqueles que possui na Carta Magna.”
Cidade Desintegrada: necropolítica, e racismo nas urnas[editar | editar código-fonte]
Aponta-se a inconsistência em se adotar uma política de longo prazo, que se propõe a fazer mudanças estruturantes, em um governo com prazo de validade de onze meses. Uma política dessa envergadura, que visa interferir de maneira profunda num cenário tão complexo, deveria ter sido costurada por meses, em vários níveis de governo. Mas, segundo o prefeito do Rio, Eduardo Paes, essa coordenação não existiu.
Para Carlos Henrique Aguiar Serra, este é um programa que vai durar pouco devido a seu caráter vertical, desconectado dos territórios, eleitoreiro e efêmero: “O que também chama atenção é o caráter eleitoreiro do Programa… a tentativa de maquiar a realidade, uma política pública efêmera, sazonal, que se o governo não for eleito, acaba. Essa é a diferença entre uma política pública inconsistente e efêmera de uma política pública consistente, de Estado… [as efêmeras são] lançadas à mercê da conjuntura, com um leque de interesses extremamente pragmáticos e tentando ocultar a realidade. Infelizmente, elas reproduzem toda essa lógica de opressão, repressão e criminalização e não há ainda perspectiva de mudança”.
O Cidade Integrada carrega vícios de projetos antigos de ocupação, continuidades de fracassos passados: das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e da UPP Social, das Companhias Destacadas, dos Destacamentos de Policiamento Ostensivo (DPO), dos Postos de Policiamento Comunitário (PPC), dos Grupamentos de Policiamento de Áreas Especiais (GPAE), etc. Como todas essas políticas anteriores, o Cidade Integrada é vendida como solução mágica.
Muitas dessas políticas foram descontinuadas e enfraquecidas ao longo do tempo, como as UPPs. Outras foram quase completamente extintas, como os DPOs e PPCs. Em alguns casos, esses espaços de militarização foram retomados e ressignificados pelas comunidades, como o DPO de Antares, na Zona Oeste, que virou a Biblioteca Marginow, uma biblioteca comunitária e centro cultural, e o PPC da Vila do João, no Complexo da Maré, que deu lugar à Associação de Moradores. Já em outros, mesmo que só em aparência, fósseis de políticas passadas continuam funcionando de maneira residual, como o PPC do Parque União, também na Maré, e o DPO do Morro do Barbante, na Ilha do Governador.
Castro disse: “A principal coisa desse programa não é a segurança pública“. Contudo, especialistas veem o acirramento da guerra às drogas, da militarização e das violações cometidas por policiais: arrombamentos e invasões de casas, destruição e roubo de patrimônio, ameaça, tortura psicológica, agressão a crianças, animais e adultos. Moradores afirmam que até cofrinhos de criança foram roubados por policiais do Cidade Integrada.
O morador de favela já entendeu há anos: precisa provar que é inocente. É preciso convencer os policiais da fonte honesta de seus pertences e utensílios domésticos, mesmo não estando em casa. É por isso que, ao sair para trabalhar pela manhã, que moradores têm pendurado bilhetes em suas portas com a intenção de explicar à polícia suas profissões e justificar seus bens.
Apesar da ocupação ter começado às 5h, ainda na noite anterior, os moradores perceberam o cerco à comunidade, sem que soubessem o que estava acontecendo. O medo e o silêncio se instauravam de novo no Jacarezinho. O procurador da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Rodrigo Mondego, contou o que presenciou em uma visita à favela:
“Soubemos [do cerco ao Jacarezinho] na noite anterior à ocupação. Existia o temor da comunidade, das lideranças locais e dos movimentos sociais de acontecer alguma chacina, algum tipo de violência. Ninguém da comunidade sabia o que era aquele cerco. Só no dia seguinte, com a ocupação, nós ficamos sabendo sobre o Projeto Cidade Integrada.
Diversos relatos chegaram a gente: invasão e roubo de residência perpetrado por policiais militares, por exemplo. No sábado seguinte à ocupação [22/01], a gente foi para lá—as Comissões de Direitos Humanos da OAB/RJ e da ALERJ, junto à Ouvidoria da Defensoria Pública—para ouvir moradores. No meio da nossa visita, a gente presenciou algumas casas que haviam sido invadidas por policiais [minutos antes]. Um caso de repercussão é o de um vendedor de queijo coalho na praia que estava trabalhando enquanto sua casa foi invadida. Roubaram diversas coisas da casa, dentre elas um pote de moedas, onde ele guardava suas economias.
Depois acompanhamos um caso de tortura de um estudante de direito que teve sua casa invadida. A casa, inclusive, era feita de escritório de advocacia, com um cômodo da casa para um advogado fazer seus atendimentos.”
Outro fato emblemático do tipo de policiamento que o Estado oferece às favelas aconteceu no Jacarezinho no dia 6 de fevereiro: a prisão arbitrária de Yago Corrêa de Souza. Era domingo e o jovem de 21 anos tinha ido à padaria comprar pão para um churrasco. Ao sair da padaria, foi surpreendido por policiais do Cidade Integrada, preso por tráfico de drogas e associação ao tráfico e levado para o Presídio José Frederico Marques, em Benfica. Um flagrante abuso por parte dos policiais. O delegado José Borba Carregosa, da 19ª DP da Praça da Bandeira, que está a frente das investigações do caso, disse que Yago “estava na hora errada e no local errado“.
Em 8 de fevereiro, dois dias depois da prisão, na audiência de custódia, o juiz não teve provas para mantê-lo preso e concedeu a liberdade provisória a Yago. Portanto, Yago continuará respondendo ao processo em liberdade, após ser preso em um presídio por dois dias por comprar pão na favela em que mora.
Pouco tempo depois da soltura de Yago, no dia 10 de fevereiro, mais uma vez, a polícia do Cidade Integrada reforçou a necropolítica, desta vez matando um morador do Jacarezinho. João Carlos Sordeiro Lourenço, 23 anos, era procurado por homicídio, mas ao invés de preso e julgado, foi sumariamente executado por policiais. Esse assassinato causou revolta e protestos de moradores na Avenida Dom Hélder Câmara, uma das principais vias da Zona Norte.
A milicianização da segurança pública[editar | editar código-fonte]
Ao mesmo tempo em que tropas entravam no Jacarezinho, invadiam também a Muzema, comunidade explorada pela milícia na Zona Oeste. Milicianos controlam territorialmente a maior parte das favelas e periferias do Rio e do Grande Rio, já ocupando ilegalmente e explorando 57% do território da cidade do Rio, segundo o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro. Porém, historicamente, não têm sido alvo prioritário dessas políticas de enfrentamento e ocupação. Muitos afirmam o papel complacente dos últimos governos com a milícia.
Milicianos vêm desmatando áreas de mata nativa e de proteção ambiental e, com violência, gerem a especulação imobiliária na Zona Oeste e na Baixada Fluminense. O governador prometeu que, com a legalização e a titulação de imóveis, além de linhas de crédito no valor de R$30 milhões para os moradores, a quadrilha local perderia parte importante de seu poder econômico, advindo da especulação imobiliária na Muzema e da agiotagem. Contudo, Carlos Henrique conclui que essas medidas podem acabar beneficiando a milícia:
“Na Muzema, há negociação [entre o governo e a milícia]. Os últimos governos sempre foram coniventes e basicamente há uma milicianização da segurança pública… Não adianta nada o governador anunciar que vai dar a propriedade, os títulos, porque na verdade as propriedades são da milícia. A política de segurança pública no Rio de Janeiro combina militarização e milicianização, que se articulam e praticamente se fundem”.
Essas quadrilhas também atuam cobrando taxas de segurança e controlando serviços de telefonia, TV a cabo e internet, inclusive sequestrando antenas de operadoras formais, gás, tráfico de drogas, falsificação e contrabando de cigarros, máquinas de caça-níquel, extração ilegal de minérios, exploração ilegal de areais, roubo de combustível, entre outros. No final do ano de 2021, até “taxa do porco” começou a ser cobrada na Favela do Rola, dominada pela milícia: R$5 por porco criado por semana. Caso o morador não pague duas semanas seguidas, o porco é confiscado para o churrasco dos milicianos.
A falta de transparência e diálogo do Programa Cidade Integrada são falhas estruturais. Castro prometeu criar conselhos comunitários com membros do governo e representantes da população. Entretanto, moradores reclamam que só tiveram uma reunião com o governo sobre o projeto, somente três dias após a ocupação e depois de muita pressão popular. A favela segue sem ser ouvida, com medo.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Cidade Integrada: uma reedição das UPPs em ano eleitoral (entrevista)
Cidade Integrada: uma conversa com o pesquisador mareense Lourenço Cezar
Encarcerados por reconhecimento fotográfico e a seleção penal que condena inocentes
Racismo Algorítmico por Redes da Maré
Presidente da Associação dos Moradores do Jacarezinho fala sobre a ocupação na comunidade