Guerra ao crime organizado? Favelas e intervenção militar
Após a mudança de regime em 1985, o Rio de Janeiro enfrentou intervenções militares nas periferias para combater grupos criminosos ligados ao tráfico de drogas. Isso incluiu a Operação Rio em 1994, quando 16.500 soldados foram implantados em 12 favelas, e posteriormente a militarização da segurança pública. Em 2010-2015, ocorreram operações prolongadas nos Complexos da Penha, Alemão e Maré, com o objetivo de reduzir a violência, especialmente antes dos grandes eventos esportivos, mantendo a percepção de segurança, mas não eliminando o tráfico de drogas.
Autoria: Anaís Medeiros Passos
Antecedentes[editar | editar código-fonte]
Desde a mudança de regime que foi concluída em 1985, a periferia do Rio de Janeiro foi palco de intervenções militares para combater grupos criminais não estatais que se dedicam a venda de drogas. Essa tendência ocorre em paralelo com a existência de instituições de segurança, como a Polícia Militar, que possuem uma estreita vinculação com as Forças Armadas, incluindo o status de corpos de reserva das Forças Armadas, ênfase sobre o policiamento ostensivo e uma mentalidade de guerreiros contra o crime[1].
A expansão da produção de cocaína, com a participação da Bolívia, Colômbia e Peru, contribuiu para a diminuição do preço de venda dessa mercadoria. Ao longo dos anos 1980, as favelas no Rio de Janeiro, uma cidade crucial para o tráfico internacional de drogas para os Estados Unidos e Europa, tornaram-se um ponto chave na distribuição e venda de cocaína[2]. A riqueza desse mercado ilegal atraiu gangues urbanas como o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando Puro, sendo muitas vezes a causa de crescentes disputas violentas pelo controle territorial[3].
Em 1994, iniciou-se a Operação Rio que consagrou a atuação de militares no combate ao chamado “crime organizado” nas periferias das cidades. Graças ao artigo 142 da Constituição Federal de 1988, a qual foi mantida através da influência dos militares durante a Constituinte[4] , cerca de 16.500 soldados foram empregados em 12 favelas, incluindo o Complexo do Alemão. As tropas militares atuaram na identificação, revista, detenção e interrogatório de suspeitos. Com pouco controle dos civis sobre a mesma, a associação de moradores do Morro do Borel foi transformada em um centro de detenção aonde pessoal militar interrogou e torturou moradores[5] . Sem cumprir a promessa de reduzir a taxa de homicídios na região metropolitana do Rio de Janeiro, a operação Rio foi concluída em Julho de 1995[6] .
Nos anos posteriores, a segurança pública no Rio de Janeiro continuou a oscilar entre tímidas iniciativas de setores progressistas da sociedade em proteger os direitos humanos e a influência de agentes que haviam participado da repressão política durante o regime militar (1964-1985). Os últimos estavam convencidos que uma postura ofensiva da polícia nas favelas contribuiria para a diminuição da violência nos bairros de classes média e alta do Rio de Janeiro. Em 1995, o então Governador Marcelo Alencar (Partido da Social Democracia Brasileira, PSDB) nomeou um General da reserva do Exército Brasileiro para chefiar a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. O General Nilton de Albuquerque Cerqueira havia anteriormente presidido o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) em Salvador e liderado a Operação Pajussara, que resultou na morte de guerrilheiros do MR-8.
Cerqueira estabeleceu um “bônus de gratificação por bravura” (popularmente conhecido como gratificação faroeste) para policiais que assassinassem traficantes em confronto. Com Cerqueira no comando da Secretaria de Segurança Pública (1995-1996), o número de homicídios cometidos pela polícia foi multiplicado por 6, em comparação com a administração anterior do Coronel Nilton Cerqueira[7] . Entretanto, a taxa de homicídios por 100.000 habitantes registrada na cidade do Rio de Janeiro diminuiu de maneira considerável. Passou de 62 em 1995 para 55 em 1998, de acordo com dados do Ministério da Saúde[8] . Esses números contribuíram para a associação entre uma postura ofensiva da polícia (com a participação de militares no seu comando) e a redução da violência. Portanto, o emprego de militares nas operações de garantia da lei e da ordem ocorre num contexto mais amplo de militarização da segurança pública, na medida em que a polícia ganha traços típicos das Forças Armadas[9] .
As Operações para Garantia da Lei e da Ordem nos Complexos da Penha, do Alemão e da Maré (2010-2015)[editar | editar código-fonte]
Contexto Político[editar | editar código-fonte]
Em 2010, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, desfrutava de uma situação favorável. Reeleito no primeiro turno das eleições estaduais em 2010 com 66% dos votos, Cabral fez, pessoalmente, campanha para a candidata à presidência do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff – futuramente aclamada como vencedora no segundo turno presidencial, dia 31 de outubro. A aliança com o governo federal foi alavancada via a transferência de recursos federais. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) (2007- período atual) destinou aproximadamente R$830 milhões de reais entre 2007 e 2011 à cidade do Rio de Janeiro – o segundo maior recipiente de ajuda federal[10].
Além da parceria com o governo federal, Cabral desfrutava de popularidade devido ao êxito das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Iniciado em 2008 e com funcionamento até os dias atuais, o projeto das UPPs havia logrado oferecer uma solução coordenada à segurança pública que superava a oposição entre proteção dos direitos humanos e eficiência na atuação policial. Como resultado, as taxas de homicídio por 100.000 habitantes, na cidade do Rio de Janeiro, haviam diminuído de 40 em 2006 para 26 em 2010. Uma das promessas de campanha de Cabral foi ampliar o projeto para outras favelas, como o Complexo do Alemão, Complexo da Maré e a Rocinha. Pesquisas antes das eleições mostravam que esse projeto era um crucial motor de votos: 92% dos moradores de favelas com UPPs e 77% dos moradores de favelas sem UPPs afirmaram serem favoráveis a essa política. Cabral decidiu continuar com esse projeto. Portanto, as operações para a garantia da lei e da ordem, nos Complexos da Penha, Alemão e Maré, foram consideradas como centrais em um processo mais amplo de instalar UPPs no norte da cidade.
No dia 24 de novembro de 2010, o recém-eleito Governador Sérgio Cabral solicitou ajuda federal ao então Presidente Luís Inácio Lula da Silva para a manutenção da lei e da ordem na cidade do Rio de Janeiro. Segundo o ex-Ministro da Defesa, Nelson Jobim, a autorização do emprego teria sido motivada por uma série de ataques incendiários a ônibus, veículos e arrastões nos meses precedentes, que haveriam sido planejados por traficantes que estariam nos Complexos da Penha e do Alemão. No final de 2010, os arrastões tiveram como alvo não somente bairros afluentes como Jardim Botânico e Urca, mas também regiões típicas de classe média como a Tijuca, na porção oeste da cidade. Segundo o jornal Folha de São Paulo, em apenas 6 dias, aproximadamente 96 carros e ônibus foram queimados na cidade do Rio de Janeiro. Especificamente, o governador do Rio de Janeiro solicitou o empréstimo de veículos blindados da Marinha, que seriam operados por oficiais da Polícia Militar, para ultrapassar barricadas nas entradas do Complexo da Penha. Entretanto, numerosos criminais fugiram dessa área para a região vizinha, o Complexo do Alemão. A seguinte medida consistiu em isolar o perímetro desse complexo (aproximadamente 3 km) com policiais civis, militares e 800 militares da tropa paraquedista.
Inicialmente planejada para durar até o dia 31 de Outubro de 2011, a operação GLO nos Complexos da Penha e do Alemão estendeu-se oficialmente até o dia 30 de Junho de 2012, sendo a mais longa ação dessa categoria registrada no Brasil. Segundo dados oficiais do Exército, tal operação empregou um contingente fixo de 1.650 militares[11] . Enquanto, nessa ação, houve um aumento anterior da sensação de insegurança na cidade, a segunda operação para garantia da lei e da ordem, no Complexo da Maré, ocorreu um mês antes do início dos jogos da Copa do Mundo. A ação estendeu-se do dia 05 de Abril de 2014 ao dia 20 de Junho de 2015. Desde um ponto de vista militar e econômico, essa área é estratégica pois ela circunda as três maiores avenidas que conectam a porção norte do Rio de Janeiro com o restante da cidade: Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil. O Complexo da Maré é um ponto de passagem obrigatório para aqueles que chegam ao Aeroporto Internacional Tom Jobim. Como o Rio de Janeiro foi assignado como sede da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016, os turistas eram obrigados a passar por uma das avenidas e, consequentemente, cerca das entradas do Complexo da Maré. Como medida preventiva, a área permaneceu sobre regime GLO, sendo resguardada por um contingente fixo de aproximadamente 2.500 militares.
Os Complexos do Alemão, da Maré e da Penha possuem, no total, cerca de 400.000 habitantes, ou aproximadamente 6% da população da cidade do Rio de Janeiro[12] . São áreas conhecidas pelos cariocas que habitam em bairros de classes média e alta como “perigosas”, o que coincide, do ponto de vista social e econômico, com as menores taxas de desenvolvimento social da cidade. É nesse contexto de pobreza que a operação militar desenvolveu-se. Enquanto os Complexos do Alemão e da Penha são controlados pelo Comando Vermelho (CV), a Maré é um território “dividido” entre três gangues (ADA, TCP e CV) e a milícia.
A Intervenção Militar em Profundidade: O Impacto para a População[editar | editar código-fonte]
De acordo com os acordos específicos que foram firmados, os militares empregados nos complexos de favelas estavam apenas facultados a realizar patrulhamento ostensivo, patrulha e prisão em flagrante. Ao longo das operações, os Batalhões locais permaneceram subordinados ao comando militar da Força de Pacificação. Essas ações não visaram a eliminar o tráfico de drogas na localidade, mas sim diminuir a presença ostensiva dos mesmos. Isso indica que o principal objetivo de representantes do estado na localidade não é tanto assegurar o monopólio legítimo sobre os meios de violência, mas sim gerar a percepção de que é capaz de fazê-lo, reduzindo a percepção de insegurança na cidade.
Além disso, é importante salientar que as atuais operações para a garantia da lei e da ordem, na área de segurança pública, possuem um caráter híbrido, que mescla elementos de operações de paz, policiamento comunitário e contra insurgência. A missão de paz no Haiti (MINUSTAH) desempenhou uma grande influência sobre a concepção da modalidade de intervenção dos militares. Ou seja, uma força para ocupação e administração do território. As primeiras tropas que participaram das operações no Complexo do Alemão e da Penha haviam previamente participado da Missão das Nações Unidas para a Pacificação no Haiti (Minustah) entre 2006 e 2007[13]. Enquanto o aspecto propriamente militar da operação não deve ser menosprezado, o papel desempenhado pelo contingente de militares no Haiti desde 2004 tem sido associado à capacidade de estabelecer uma relação de confiança com os haitianos – elemento que foi essencial para desmantelar o controle de gangues na periferia da cidade.
Esse traço distingue as operações contemporâneas GLO do emprego de militares na segurança pública nos anos 1990, a exemplo da mencionada Operação Rio. Seja por demanda civil ou imposição militar, a chamada Força de Pacificação não atuou somente na área de segurança propriamente dita, mas também foi ativa em áreas que são, por definição, não-militares e envolvem dimensões sociais e econômicas da vida na comunidade. Nesse caso, a relação com líderes comunitários influentes é considerada um ativo de inteligência. Portanto, a realização de reuniões com a comunidade foi uma peça central dessas operações. Esses encontros tinham por objetivo conhecer os membros mais influentes da comunidade, verificar a provisão de serviços públicos e, quando possível, melhorá-los. Organizadas pelo Estado Maior da Força de Pacificação, as reuniões com líderes de ONGs e presidentes de associações de moradores ocorriam inicialmente uma vez a cada 15 dias e, posteriormente, uma vez por mês. Cada contingente militar emitia um relatório de lições aprendida, nos quais a manutenção de uma boa relação com a comunidade foi salientada como importante para o êxito da missão. Essas ações revelam a preocupação das instituições militares em não somente manter o controle territorial, mas também conhecer o ambiente no qual as gangues operam. Entretanto, é notório que tal objetivo enfrente dificuldades na medida em que, a cada seis meses, havia troca do comando a operação – o que prejudicava o estabelecimento de uma relação de confiança com associações locais.
Assim como em operações de conta-insurgência contra movimentos guerrilheiros, as operações GLO utilizam amplamente a estratégia de ganhar os “corações e mentes” da população. Entretanto, a maior diferença é o seu foco em reestabelecer a presença de agentes do estado na área e reconectar a região ao restante da cidade. As reuniões com líderes da comunidade também tinham por objetivo verificar a provisão de serviços públicos como eletricidade, água e asfalto. Em um contexto de pobreza, no qual relações pessoais são o lubrificante da sobrevivência diária, esse tipo de postura pode contribuir para a aceitação da presença do Exército na área. Nesse caso, a instituição é vista como representante do estado na favela, na visão de alguns entrevistados para a pesquisa de doutorado que embasa esse verbete.
Relacionado à provisão de serviços, a Força de Pacificação promoveu ações cívico-sociais (ACISOs). As ACISOs foram historicamente utilizadas na luta contra movimentos guerrilheiros no Brasil, ao longos dos anos 1960 e 1970[14]. Essas ações demonstram a capacidade das instituições militares em promover serviços básicos em regiões nas quais as agências civis falham em fazer o mesmo. Em um contexto de pobreza, violência e instabilidade, essas ações podem ser vistas de maneira positiva pela população e, consequentemente, reforçam o prestígio dos militares com a mesma[15]. No Rio de Janeiro, as ações sociais incluíram consultas médicas, atendimento dentário, pequenos serviços de reparação, organização de campeonatos de futebol e corridas. Essas ações também possuem um caráter cultural, na medida em que visam a inculcar valores sobre integridade, disciplina e honra entre os favelados. Durante visitas a escolas públicas na região, oficiais militares discorriam sobre as virtudes do alistamento no Exército e distribuíam uma revista chamada Recrutinha que, alertava, entre outros temas, sobre as consequências para a saúde do uso de drogas. No Dia do Soldado, celebrado em 2012, 500 crianças do Complexo do Alemão e da Penha visitaram os quarteis militares e participaram de cerimônias militares, nos quais foram celebrados os “valores de ética” e “moral” mantidos pelos soldados.
Um terceiro conjunto de ações consiste na legalização do “gatonet”. No Complexo do Alemão, oficiais militares organizaram reuniões entre líderes de associações de moradores e a companhia de TV NET para negociar um preço pelo serviço de internet abaixo do mercado. A legalização do gatonet foi mencionada, com orgulho, por militares que participaram da Força de Pacificação nesse território. Entretanto, não é certo que para moradores a dimensão legal/ilegal tem o mesmo peso, visto que a economia informal é um aspecto crucial que permeia a vida cotidiana.
Finalmente, uma última modalidade de intervenção da Força de Pacificação na vida social da comunidade consiste na premiação ou na punição de comportamento de moradores, a partir de visões morais de oficiais militares. Em primeiro lugar, a Força de Pacificação fez cumprir a “Lei do Silêncio” de 1977, que proíbe músicas altas entre as 10h da noite e as 7h da manhã. Além disso, o estilo de música conhecido como funk carioca foi proibido de tocar em eventos públicos, pela Força de Pacificação, durante a primeira ação. É importante ressaltar que quatro cantores de funk foram presos no início da operação GLO nos Complexos da Penha e do Alemão sob a acusação de “apologia ao crime”[16], sendo três deles liberados dez dias depois. A medida de proibição do funk durante a operação foi interpretada, por oficiais militares, como uma ferramenta para “educar o povo”, sem questionar que os limites da cultura tolerável são definidos pela própria instituição militar. A despeito da opinião pessoal de cada indivíduo sobre esse estilo de música, é certo que a proibição inicial do baile funk durante a operação GLO nos Complexos da Penha e do Alemão restringiu as, já limitadas, opções de lazer para a juventude na favela.
Referências[editar | editar código-fonte]
- ↑ Passos, A.M., Trujillo, M.T.M. Olivier Dabène (dir.), América latina. Militarización y multilateralización del policing: una mirada a Brasil y México. Dabène, Olivier (dir). El año político 2018/Les Etudes du CERI, n° 239-240, janvier 2019. Disponível em: www.sciencespo.fr/ceri/fr/papier/etude. 81-94.
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