Por que o militarismo é inadequado para a função policial? (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Almir Felite[1]
Publicado originalmente em: Blog Justificando[2][2][2][2], em 27 de fevereiro de 2018. 
Foto: PMERJ/Reprodução

Entre os campos progressistas e de esquerda do país, a bandeira da desmilitarização das polícias parece já ter virado uma unanimidade. Os chocantes números da violência policial e os constantes abusos cometidos, principalmente nas periferias, agora mais visíveis com a popularização de câmeras em celulares, parecem ter unido pessoas e coletivos do país minimamente preocupados com o respeito aos direitos humanos em torno desta pauta.

Porém, apesar do crescente apoio, o debate público não evoluiu muito, parecendo haver uma certa dificuldade dos defensores da proposta em demonstrar, para a população em geral, de forma mais concreta, o que significaria a desmilitarização das polícias no Brasil.

Para compreender o que tal projeto propõe, porém, é necessário, antes, entendermos quais as consequências da aplicação de uma ideologia militar nas polícias ostensivas estaduais (a Polícia Militar) e porque o militarismo é inadequado para a função policial. E é a isto que se propõe este artigo.

Para isso, devemos começar compreendendo a ideologia e o ensino dos Cursos de Formação de Oficiais, nas Academias de Polícia, onde são formados aqueles que ocuparão o alto escalão da PM de cada Estado do país. E este ensino já começa de uma forma inadequada, pois ele se inicia em isolamento, no regime de internato típico (mas não exclusivo) da educação militarizada.

Não é estranho que um agente que irá prestar um serviço que o coloca em constante contato com a sociedade civil passe a maior parte do início de sua formação afastado dessa mesma sociedade?

Isso acontece porque essas Academias Militares são o que chamamos de “instituições assimiladoras”. Faz parte de seu método separar o ‘cadete’ do restante da sociedade para criar nele uma identidade puramente militar, apagando seu antigo caráter civil.

Desse modo, as instituições militares conseguem criar o que eles chamam de “espírito de corpo”, ou seja, uma grande união entre os militares ao custo do distanciamento do nosso mundo civil.

Acontece que, ao fim do curso, este ‘novo militar’ sai de seu mundo com conceitos claros e definidos da Academia para iniciar sua vida profissional em um mundo civil com conceitos complexos e diversificados. Assim, torna-se inevitável o choque entre o militar e o restante da sociedade civil, com visões de mundo diferentes e conflitantes.

Principalmente porque a formação isolada do novo caráter desse militar se deu em um ambiente com uma hierarquia extremamente rígida e vertical. Há um certo culto a essa estrutura hierárquica na ideologia militar, que tem a obediência e a ordem como dois de seus mais importantes valores. Algo que contrasta com os valores do debate público, da democracia e do respeito à diversidade de opiniões, tidos como essenciais pela sociedade civil em suas relações.

Em outras palavras, acaba criando-se, nas Academias Militares, a ideia de que o respeito à hierarquia e à obediência internas pode, por vezes, se sobrepor ao respeito às leis e aos direitos “externos”.

Desse modo, ao invés de participar do debate público, as instituições militares tendem a tentar reproduzir no mundo civil a mesma hierarquia que aprenderam dentro das Academias, como se a sociedade e as instituições civis estivessem, de alguma forma, subordinadas aos militares.

Assim, exigir documentação e fotografar forçadamente moradores de favela passa a ser algo natural dentro do militarismo, pois este considera que a sociedade civil é apenas a “mais baixa patente” dentro de sua visão de mundo hierarquizada. Em maiores proporções, foi o que aconteceu em toda a América do Sul entre os anos 60 e 80, quando os militares subordinaram os governos da região aos seus valores, criando ditaduras.

Além do isolamento, da rigidez hierárquica e desse sentimento de superioridade, outro problema do militarismo das polícias é o escasso e insuficiente ensino sobre direitos humanos dentro das Academias.

Uma prova concreta disso é o fato de que, na Academia do Barro Branco (curso de oficiais em São Paulo), em 2013, a matéria de Direitos Humanos ocupava apenas 1,47% da carga horária do curso. Ainda assim, a Academia paulista estava entre as que mais exploravam a matéria no país. Como consequência da grade reduzida, documentos importantes no tema, como o Pacto de San José da Costa Rica e outros que falam sobre direitos de minorias e prevenção à tortura, acabavam ficando de fora do ensino do curso.

Assim, isoladas dos debates da sociedade civil, com uma hierarquia onde o pensamento crítico perde espaço para a valorização da obediência e o ensino em Direitos humanos é quase nulo, as Academias Militares se tornaram ambientes férteis para o crescimento do preconceito. Como diz Bobbio, o preconceito é uma doutrina acolhida de forma acrítica e passiva através da tradição, do costume ou de uma autoridade de quem são aceitas ordens sem discussão.

Nas palavras de alguém que viveu nesse ambiente, como o coronel da reserva Adilson Paes de Souza, numa organização em que as ações de seus integrantes estão condicionadas a um comando externo que os reprime, o resultado é a “constituição de indivíduos frágeis com uma insegurança constante, que suscita o preconceito para afirmar uma identidade que não possui”.

Leia mais na reportagem da Agência Pública: Treinados pra rinha de rua

 

Esse preconceito gera a criação de estereótipos, algo que casa muito bem com o militarismo, já que, muitas vezes, essa ideologia se utiliza de “mecanismos de rotulação” e de “soluções padrão”. Ou seja, é comum, para os militares, adotar uma determinada opinião sobre pessoas e situações levando em conta aspectos visuais fáceis de enxergar e, com base nessa opinião, adotar um modo padrão de agir.

Usando um senso comum (errado e preconceituoso) para explicar melhor: é comum ouvir que um sujeito utilizando boné e roupas largas que possam “ocultar sua identidade” seja um suspeito. Temos aí o “mecanismo de rotulação”. Agora imagine que, baseado nessa ideia, a PM adote o procedimento padrão de, durante a noite, abordar qualquer sujeito nessas condições. Temos aí a “solução padrão”.

Porém, em um país marcado por uma história de opressões a minorias e pela luta de classes, um país que, de seus 500 anos, viveu quase 400 sob um regime de escravidão negra, é óbvio que rotulação e preconceitos não recairão sobre “casacos e bonés”.

Assim, o que vemos mesmo é a rotulação como eternos suspeitos de pessoas negras, pobres e moradoras das periferias.

O isolamento, a rígida hierarquia, a aversão aos direitos humanos e o ambiente propício ao preconceito acabaram transformando a Polícia Militar em mais uma peça do nosso racismo institucional e da nossa desigualdade social, porém, com uma face um pouco mais sangrenta que as demais.

E essa face sangrenta tem raiz em mais um traço tipicamente militar: a ideologia do inimigo. Ela consiste na ideia de que existem ‘inimigos internos’ que colocam a ‘ordem e a segurança’ do país em risco e, portanto, precisam ser eliminados. É uma ideologia que retira a cidadania daqueles que ela considera inimigos, tidos como perigosos para o resto da sociedade, justificando, assim, as arbitrariedades e o desrespeito aos direitos dessas pessoas.

E, partindo de uma instituição pouco democrática e fechada ao debate, não é estranho que essa ideologia paute o seu conceito de “inimigo” em argumentos preconceituosos, conforme já explicado anteriormente.

Assim, há quem fale que os militares, hoje, aplicam uma “Doutrina de Segurança Social”, enxergando nas pessoas pobres, moradoras de periferia e negras sempre um “inimigo e suspeito” em potencial. Não à toa, há inúmeras pesquisas demonstrando que este grupo de pessoas compõe a maior parte das vítimas da violência policial.

Com todos esses traços, o militarismo acabou desvirtuando as instituições policiais de suas reais funções em um Estado Democrático de Direito.

Aliás, militarizando o nosso sistema de Segurança pública, criamos polícias que são ineficazes, até mesmo, no combate à criminalidade. Isso porque a visão militarizada, com foco num suposto “inimigo interno a ser eliminado”, cegou a sociedade e o Estado para as reais causas da violência e dos crimes.

A militarização transformou todo o debate acerca do crime em um ‘caso exclusivo de polícia’, preferindo políticas repressivas que há anos só conseguem piorar ainda mais o problema. Ao invés de adotar políticas que ataquem as causas sociais que levam pessoas a delinquir, como a desigualdade de renda, o desemprego, o ensino precário, a falta de lazer, entre outros, preferimos adotar uma política que ataca pessoas típica da ideologia de guerra militar.

Junte a militarização do Estado com a desigualdade social gritante do país, com a criminalização das drogas (que fez nascer um mercado ilegal bilionário) e uma política punitivista de superencarceramento (que possibilitou o nascimento das grandes facções criminosas), e chegamos ao atual estágio de um dos países mais violentos do mundo.

Assim, além de todos os problemas citados acima, a militarização das polícias sequer conseguiu atingir o objetivo a que se propõe em seu discurso: reduzir a violência e a criminalidade. Pelo contrário, só fez esses números explodirem ainda mais.

Difícil crer, porém, que isso se trate de um erro do nosso Estado. Nenhum erro duraria tanto tempo. Para muitos, e me incluo aqui, a militarização se trata de uma forma encontrada por nossas elites para manter seu poder através de uma instituição de controle social como é a Polícia Militar.

Contrapondo-se a esse modelo, temos a ideia de desmilitarização da polícia, adotando-se o conceito de policiamento comunitário implantado em países mais desenvolvidos.

Neste conceito, se abriria espaço para uma política interdisciplinar que combatesse o crime em suas causas sociais, transformando o policial em um agente de segurança pública que auxiliaria a população na formação desta nova política.

Porém, para não me alongar muito, prefiro falar sobre o significado da desmilitarização e da criação de uma polícia comunitária em um próximo artigo. Neste, prefiro encerrar com as palavras de Theodor Adorno, que caem como uma luva nesse debate sobre o militarismo:

“O elogiado objetivo de ‘ser duro’ de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente.”

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
  2. Todas as fontes e a ideia central do texto podem ser encontradas no seguinte artigo – FELITTE, Almir Valente; PONZILACQUA, Marcio Henrique Pereira. O impacto social da organização militar da polícia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 132. ano 25. p. 193-217. São Paulo: Ed. RT, jun. 2017.

Veja também[editar | editar código-fonte]