João Marco (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

A entrevista faz parte do projeto "Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz.

Autoria: Dicionário de Favelas Marielle Franco a partir de material de pesquisa gentilmente cedido Projeto do Campus Fiocruz da Mata Atlântica em parceria com a Cooperação Social.

Sobre[editar | editar código-fonte]

A entrevista faz parte do projeto "Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Neste episódio, a conversa é com João Marco, diretor do CPJABA . Ele foi entrevistado no Campus Fiocruz Mata Atlântica, em 2015.

JoãoMarco

Entrevista[editar | editar código-fonte]

Transcrição da entrevista[editar | editar código-fonte]

A chegada na Boiúna[editar | editar código-fonte]

João Marco- eu vim pra cá em 1970, vim da Usina. Meus pais compraram um terreno no Jardim Boiuna e nós viemos morar em Jacarepaguá.

Irmão de 10 filhos, aos 14 anos fui trabalhar para ajudar, como cobrador de ônibus, e já participava ativamente da luta dos rodoviários. Com 14 anos, trabalhava como gente grande, inclusive à noite. Naquela época o bairro estava bastante doente, dificuldades de transporte, de iluminação. Tinha dificuldade de qualquer assistência mais básica. É que o poder público atende em excesso em alguns bairros e deixa a dever em outros. Esquecidos, mais humildes. Onde se paga imposto, até mais, porque os pobres pagam impostos, os outros têm formas de saírem do imposto.

Associação de Moradores e centro de formação (CEPEJABA)[editar | editar código-fonte]

Em 1986, formamos a Associação de Moradores do Jardim Boiuna (AMOJAB), onde fui o primeiro presidente, ainda bem jovem.

Para resolver questões imediatas - orelhões, postes de luz - e outras mais sérias, como a moradia. Havia muitas pessoas naquela época pagando aluguel, outras morando de favor na região. Aí nós partimos para uma alternativa concreta e ousada na década de 80: a conquista da moradia para as pessoas. Apesar de ter sido na base do voluntarismo nós ocupamos um terreno na Boiuna, onde 180 famílias ficaram. A Associação teve a oposição de algumas pessoas do bairro, conservadores achando que aquilo ali ia trazer o reino, ia haver conflitos dentro do bairro. Eles não percebiam que o conflito já existia. O conflito de uns terem alguma coisa e outros não terem nada. Eu era o presidente da Associação e alguns moradores eram contra, e contra a grande maioria que precisava de casa.

Nós conseguimos algumas vitórias. Temos lá o centro de formação- CEPEJABA. Este centro de formação trabalha com educação. Tínhamos o pré- vestibular ligado ao Frei David, pré-vestibular para negros e carentes. Temos hoje uma aluna deste curso em Cuba, e quando voltar ela vai trabalhar na Comunidade. É mulher, é negra. Porque estou destacando a questão racial? Porque não gostaria que tivesse as cotas, mas enquanto não temos o nosso quinhão na sociedade... esperamos que um dia não tenha mais.

O centro de formação hoje tem alfabetização para jovens e adultos. Em Jacarepaguá as escolas não têm o noturno, nem no Município nem no Estado. Temos o 5º ano do segundo seguimento e Ensino Médio. Todos os professores são voluntários. Eu sou coordenador e professor voluntário e fazemos uma interligação, saindo da sala de aula, trabalhando as matérias para entender por que não temos posto medico próximo, por que não temos atendimento primário. Precisamos perder um dente e ir ao posto arrancar. Por que não temos lazer? Porque a saúde não é só médico. A saúde mental, a saúde social- isto para o curso é fundamental.

No Jardim Boiuna não havia associação de moradores. Havia um instituto que só tratava de lazer, com organizações de bailes. Não éramos contra este lazer. Mas não levavam em conta as questões culturais. Foi aí que começamos a discutir, fizemos varias assembleias e conseguimos constituir a Associação em 1986. 18 de outubro de 1986.

Paralelamente a militância sindical continuou. E estudava- naquela época era mais difícil. Eu saía da Boiúna pra fazer o ginásio no Sobral Pinto - e hoje você tem a vantagem do passe escolar, naquela época não tinha. Na época de estudante quando não tinha grana ia a pé. Eu ia e voltava, e era na Praça Seca. Na Boiúna não havia um orelhão, a Escola Brandão Monteiro só tinha da primeira a 4ª série e não tinha mais nada. Nós queríamos transformar- não só fazer uma sede- um espaço para a luta.

É bom deixar claro que esse prédio conseguimos graças a parceria com uma ONG da Alemanha, chamada CAMPO (da Comunidade Européia) que construiu nosso prédio. Tem uma quadra sendo construída- funciona a associação de moradores- ali é um espaço de discussão.

As lutas e ocupações em Jacarepaguá[editar | editar código-fonte]

Nossa atuação saía para fora do bairro, e fomos atuar na FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro), na zonal Barra e Jacarepaguá. Eu fui coordenador da luta de transporte. Naquela época, organizamos uma passeata da Taquara até a Praça Seca, e paramos o Mato Alto num dia domingo, com charretes levando as pessoas e a carreata atrás. E participamos na luta de habitação, por moradia. Tivemos varias ocupações: desde o final da década de 70 aos 90 anos, muitas ocupações aconteceram. Algumas passaram de uma ocupação a apenas uma moradia. Poucas conseguiram se tornar um gueto de resistência. Nós não queríamos apenas ficar no local, queríamos a documentação.

No Jardim Boiúna as 188 moradias, estamos na reta final, na Secretaria Municipal de Habitação para obter a escritura definitiva, o RGI e a consolidação, porque na Barra, ou Ipanema, quando se tem um imóvel é registrado. CRJABA nesta área- parte foi destinada à Associação.

No final de 1987 havia muitas pessoas pagando aluguel. Havia uma necessidade real, e pessoas do bairro eram contra. Muitas reuniões eram feitas na minha casa. Eram reuniões secretas e meu pai dava aprovação dele. As reuniões secretas tinham o objetivo de não vazar informações. Me lembro que a ultima reunião foi onze dias antes do meu casamento. E fechou-se que a ocupação no Boiúna seria naquele dia 13 de outubro de 1988, e aconteceu.

E foi tratada toda estratégia de como ocupar, com resistir, tudo planejado. Não foi uma ocupação fácil. Teve polícia, com pessoas do bairro tentando comprar. Na época chegaram para mim perguntando por que eu estava andando á pé- "eu tenho um carro lá em casa que é sua cara". Já naquela época, tentava-se comprar as pessoas, tudo para evitar pobres na Boiúna. Mas conseguimos consolidar. Hoje lá tem dez travessas- todas as dez travessas levam o nome de dez moradores, e já está registrada na SMTU (Secretaria Municipal de Transporte Urbano), que participaram ativamente. Uma delas teve o nome do Vavá, que era eletricista.

Hoje nosso processo esta no urbanismo. Estamos sempre tentando reunião, mas nunca marca, o secretário Pierre. Também estabelecemos uma cota social- porque não queríamos que fosse gratuito, porque o gratuito às vezes sai caro. Os valores sociais vão de 57,00 a 400 e poucos reais, pagando à vista mas com o titulo na mão.

Naquela época eram trabalhadores que construíram suas casas, algumas ainda vivem no embrião. Acertamos com o secretário Jorge Bittar e estamos aguardando a escritura. Só depois de conseguir o RGI deixaremos de ser ocupação e nos tornamos parte da cidade como bairro.

Outras ocupações foram em 1986. A última de Jacarepaguá, na Meringuava. Era um terreno próximo a Cinédia, hoje Rede Globo. Estivemos lá, e também o Tião Sem Medo, companheiro Rodoviário que foi assassinado covardemente por causa da luta pelas ocupações, era da associação de moradores do Cafundá. E outros como Claudio Matos, Olívio Bonna, Arnóbio, Pedro Soares da Boiúna.

Fizemos uma articulação com a Fundação Bento Rubião, a Igreja Sagrada Família, a Igreja Batista do Jardim Boiúna, e o CRJABA, que estava se organizando e o prédio em construção. Ocupamos lá, numa ocupação que deu certo socialmente, mas politicamente não avançou. Até hoje moram lá umas 200 famílias, mas houve um atraso porque o poder paralelo não acompanhou a organização e não tem documento.

No período de 1980, ocupamos próximo à Colônia, próximo à fabrica da Nexus - um companheiro Otevaldo. Também na Gardênia Azul. Ocupamos também no Curumaú, que está estabilizado mas não avançou na questão da documentação.

As ocupações nesta época eram uma necessidade e se deparava com o estoque de terras em Jacarepaguá. Estocar para valorizar e para que os pobres na Cidade de Deus- sabem que o maior arrependimento foi terem criado a Cidade de Deus, porque hoje chamam de Barra, Camorim... e Barra não é para pobres. Não é para favelados.

Morar nem Jacarepaguá ou na Baixada, nos lugares mais pobres e ser só um local dormitório. Não dá pra você se locomover para trabalhar para os ricos e não pode ter qualidade de vida: os amigos, parentes, as relações de vida, Igreja, lazer e a questão cultural. Você só servia para trabalhar. É a mesa relação com a terra: você serve para plantar, mas não pode ter terra.

A nossa saúde se dá em dormir mais horas, em não acordar as 3 horas da manhã. Eu fiz isto muito. Acordava as três e pegava às 04h15min na Santa Maria. Tinha que vir a pé da Boiúna a Taquara. Em Copacabana nós sabemos que o idoso tem até 80/90 anos. Isto é ter qualidade de vida, é ter saúde.

A Fiocruz trabalha a linha de saúde, não é só questão de médico, anemia. Quando eu me relaciono prazerosamente - eu vim aqui voluntariamente - isto me deixa saudável. Não estou fazendo algo forçado. Estou fazendo algo que eu conheço, fazendo algo para contribuir. E também falar de saúde. Lembrar que a especulação imobiliária estoca terras. E nós morando nos lugares mais afastados-somos mão de obra remunerada, para ir trabalhar. Eles ficam cada vez mais ricos. E surgem espaços que você vai trabalhar, mas depois não pode ir lá para comprar. Isto vira uma falsa realidade. Seu filho vê e pede coisas, quando o poder aquisitivo já não permite.

Em 1998 a cooperativa Shangrilá surge e nós fomos parceiros também. Quando ela foi inaugurada eu estava na Alemanha, na ONG nossa parceira. E lá eu disse: não basta apenas cooperar, é preciso conscientizar, senão se torna apenas mais um indivíduo com casa.

Em vários campos de vida, eu me senti ameaçado; uma ameaça é sair para trabalhar aos 14 anos, trabalhar 39 anos, e, ao se aposentar, ganhar menos. 14+39= 53 anos. Hoje estou com 55- aposentei cedo, mas com 39 anos de carteira assinada. Dois anos aposentado, mas tenho que trabalhar. E no momento pela terra. É complicado porque vale dinheiro, conflitos, e tem propostas indecorosas- e se você não tiver coragem e firmeza você desiste ou caminha por outros caminhos.

Eu e muitos companheiros desta luta, (o velho companheiro Moacir também), nunca nos metemos em coisas erradas, e isto é uma afronta aos poderosos. E aqueles que nos querem amedrontar às vezes perguntavam "porque vocês estão se metendo, se vocês tem a casa de vocês"? A resistência as ameaças ela se dá a todo o momento. É preciso mostrar aos jovens que tem que avançar, tem que transformar. Um pouco do que o papa falou: ser revolucionário. Ter consciência com causa, mas também perceber que quando querem nos frear, é porque estamos no caminho certo.

Eu me lembro que no terreirão- hoje Recreio dos Bandeirantes, a ocupação lá e nós estávamos conversando com os moradores que ocuparam- tinha gente da FAMERJ. Chegaram algumas pessoas. Não colocaram quem era. Estamos atrapalhando muitas pessoas, especialmente os especuladores imobiliários da região. Essas pessoas são atrasadas, mas tem articulações com o poder constituído. Na Câmara dos Vereadores tem vereadores que tem esta linha, a linha do atraso, da corrupção, do comprometimento com o poder da especulação de terra, muitas vezes na ilegalidade. Eles especulam com a terra, porque vendem terrenos que não tem documentação.

Essas pessoas mais humildes, e mesmo a classe média, ficam sem poder legalizar, porque foi um negócio totalmente sem condições de venda. Mas mesmo assim combatia a necessidade social de moradia. Naquela época tínhamos o papel de transformar aquele espaço em moradia. Por persistência nossa, a luta continuou. Eu, a zonal da FAMERJ, companheiros de vários partidos políticos. A zonal é apartidária, mas companheiro Edilson, companheira Valmíria e o Otevaldo estavam nesta luta.

E na ocupação da Meringuava, em 1996, tivemos uma luta muito complicada. Pra ficar claro, o companheiro Tião Sem Medo, que morreu na Curicica, o inquérito foi arquivado. O que nos preocupa muito quando dizem que ele morreu por causa da discussão sindical, mas ele estava com a gente na ocupação da Meringuava. A luta por mudança da qualidade de vida do povo mais pobre tem que ser feita pelo povo que tem consciência. Hoje os jovens estão fazendo, nós já demos a nossa contribuição- e achamos que eles devem continuar. E nós não vamos parar para dizer que já fizemos, vamos fazer juntos.

O papel da Fiocruz aqui em Jacarepaguá[editar | editar código-fonte]

Com relação à saúde e à Fiocruz, acho que tem sido parceira na luta por moradia popular aqui na região. E temos o prazer de dizer que começou com a CEPEJABA.

Nós temos que aproveitar a Academia, para transformar a sociedade, não para acumular título. Muitas vezes sou doutor, sou mestre de que? Pra si, pra ter mais, e ter título, para ter mais um complemento de salário. Eu tenho mestrado na área tecnológica, eu trabalho no EJA (Educação de Jovens e Adultos), para jovens e adultos. Eu tenho refletido, não adianta colocar os softwares mais sofisticados, programas mais sofisticados, falar no facebook, quando alguns não sabem escrever. Vamos aproveitar essas ferramentas sim, para fazer com que eles possam se comunicar, numa forma de transformar, e não  ser apenas um reprodutor, um copiador, o que já aconteceu há 500 anos.

Nossos alunos não saem do CEPEJABA, sem antes criar um acesso ou uma conta. Mas também utilizar a internet para buscar informação e ao mesmo tempo se posicionar.

O que me move é perceber que não estou lutando sozinho. É perceber que quando eu vejo as cooperativas funcionando, a minha pergunta é quantos estarão na luta, na nossa família. Respeitar a militância. Eu vou morrer lutando porque a luta tem que ser eterna.

Outros depoimentos[editar | editar código-fonte]

Para acessar outros depoimentos, clique nos links abaixo:

  1. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - Dona Jane: acesse clicando aqui
  2. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - Maria Zélia Carneiro Dazzi: acesse clicando aqui
  3. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - José Jorge: acesse clicando aqui
  4. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - Renato Dória: acesse clicando aqui
  5. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - Guaraci Jorge dos Santos: acesse clicando aqui
  6. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - Sandra Maria Rosa: acesse clicando aqui
  7. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - : Luiz Alberto de Jesus acesse clicando aqui
  8. Histórias, Memórias e Oralidades em Jacarepaguá - : Noemia Caetano acesse clicando aqui

Veja também[editar | editar código-fonte]