Violência de Estado, operações policiais, chacinas e... um plano

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autores: Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk.
Chacina do Jacarezinho. Imagem: Voz das Comunidades.
Chacina do Jacarezinho. Imagem: Voz das Comunidades.

Sobre[editar | editar código-fonte]

Em fevereiro de 2022, dois eventos marcaram o Rio de Janeiro: entre os dias 2 e 3 de fevereiro o Supremo Tribunal Federal julgou os embargos de declaração na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a chamada ADPF das Favelas, que trata das violações de direitos praticadas durante as operações policiais em favelas. Dentre as muitas conquistas obtidas nesse julgamento[1], destaca-se a exigência de que o Estado do Rio de Janeiro apresente um plano de redução da letalidade policial no prazo de 90 dias a ser supervisionado pela sociedade civil. A demanda por um plano para conter a violência de Estado já constava na condenação do Estado do Rio de Janeiro pela Corte Interamericana de Direitos humanos da OEA no caso de duas chacinas ocorridas na favela de Nova Brasília (em 1994 e 1995) e na Ação Civil Pública da Maré, iniciada em 2016. Uma semana depois do julgamento, neste último dia 11 de fevereiro, 8 pessoas foram mortas por policiais durante uma operação realizada na Vila Cruzeiro. Esta foi a sétima chacina policial na Região Metropolitana do Rio de Janeiro apenas este ano (com um total de 31 mortos), reiterando que a letalidade policial realizada em operações policiais não é uma exceção, mas a regra nessas ações, assim como o total descaso do governo do Estado com a vida de pessoas pobres, negras e faveladas ceifadas pelas forças policiais. Os dois momentos juntos são uma síntese da situação no Rio de Janeiro: por um lado a conivência das autoridades políticas e policiais com a violência institucional, por outro, os enfrentamentos altamente qualificados travados pela sociedade civil.

Para oferecer subsídios a compreensão desta situação, reproduzimos abaixo a participação do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) durante a audiência pública convocada pelo STF e ocorrida entre os dias 16 e 19 de abril de 2021, momento em que participaram movimentos de favela, de familiares de vítimas de violência de estado, organizações de direitos humanos, pesquisadores, representantes do governo do estado do Rio de Janeiro e das forças policiais. Nesta apresentação há uma síntese do trabalho analítico sobre operações policiais no Rio de Janeiro que o GENI/UFF vem realizando nos últimos anos, sobretudo com o datalab Fogo Cruzado. Dado o pouco tempo para a apresentação, frases curtas sintetizaram relatórios específicos e pormenorizados que haviam sido anexados aos autos da ADPF 635. Os links contidos nessa intervenção encaminham o leitor interessado aos relatórios que tratam de forma mais detida sobre cada questão abordada. Por fim, ao final deixamos também disponíveis duas entrevistas em que alguns desses pontos são retomados e discutidos a luz de acontecimentos mais recentes.

Audiência pública sobre a ADPF 635[editar | editar código-fonte]

Excelentíssimo Ministro Edson Fachin, gostaria de parabenizar a iniciativa de realização desta audiência pública, assim como toda a atuação do STF durante esse processo da ADPF 635.

A violência policial é um dos mais graves e persistentes problemas públicos no Rio de Janeiro e as ações na área de segurança pública baseadas em operações policiais são parte desse problema. As operações policiais constituíram-se historicamente como o principal instrumento da ação pública na área da segurança[1], mas as operações policiais ocorrem ao revés das políticas públicas elaboradas com base em dados e evidências e, portanto, distanciam-se da lógica dos direitos e da prestação de serviços públicos.  Elas se caracterizam no uso indiscriminado da força sobre a população negra, pobre e moradora de favelas[2], verdadeiro genocídio; também à serviço a interesses privados e, por vezes, criminosos, como na participação em milícias[3]. Porque temos 4 vezes mais operações em áreas sob domínio do tráfico de drogas se a maior parte do Rio de Janeiro já são controlados por milícias?

Em ambos os casos, a brutalidade policial quase nunca resulta em responsabilização legal, 99,2% dos casos, o próprio Ministério Público solicita o arquivamento dos inquéritos sobre mortes perpetradas por policiais[4]. Assim, o uso abusivo ou criminoso da força e a certeza da impunidade criam um círculo vicioso entre violência policial e corrupção. É justamente essa perversa estruturação sistêmica – que associa violência policial, corrupção e impunidade que vem criando forças policiais ineficazes e que, no limite, ameaçam as instituições do estado de direito.

Não custa lembrar que nos regimes democráticos e dentro dos limites do Estado de Direito, a autoridade pública reivindica o monopólio da violência legítima, mas não a disposição ilimitada sobre a vida, como é próprio dos regimes autoritários. Por isso 3 elementos que devem ser estruturantes do plano de redução da letalidade policial, 1 A delimitação normativa operacional, 2 A transparência de critérios que justificam essas ações e 3 A prestação de contas sobre seus resultados.

Vossa excelência, o enfrentamento dessas questões tem avançado antes como resposta da Justiça à mobilização da sociedade civil do que como iniciativa do Governo do Estado. O apoio, a sensibilidade e a coragem do STF têm sido fundamentais para que a sociedade fluminense possa ter algum horizonte e alguma esperança, nesses tempos tão sombrios que vivemos. A decisão de vossa excelência do dia 4 de junho interrompeu uma escalada ininterrupta da violência policial desde 2014 (313%, 1643 mortes em 2019), mas 2020 foi o ano com a maior redução na letalidade policial dos últimos 15 anos (34%). Pelo nosso cálculo, até agora foram salvas 288 vidas[5]. Importante dizer que isto ocorreu concomitantemente a uma redução tanto os crimes contra vida (24%), como dos crimes contra o patrimônio (39%)[6].  Esse último fato deve ser destacado, porque prova que o respeito aos direitos humanos, a dignidade da vida humana e o enfrentamento da letalidade policial não se opõem ao controle do crime, muito pelo contrário.

Contudo, venho aqui alertar vossa excelência que corremos sério risco desses avanços serem perdidos pelo descumprimento da decisão de 4 junho[1]. Nos quatro primeiros meses de vigência da liminar percebemos avanços notáveis, mas a partir do mês de outubro e, particularmente nos últimos 2 meses (janeiro e fevereiro), percebemos que houve um aumento de 86% no número de operações policiais, de 187% na letalidade policial. Nos quatro primeiros meses foram notificadas 3 chacinas e nos meses seguintes, 14 chacinas! No mês de fevereiro, as forças policiais foram responsáveis por 44% de todas as mortes no Rio de Janeiro, uma cifra escandalosa, dado que a média no Brasil é de 12%.

Nós identificamos que um gargalo para esse problema é a produção da ambiguidade do conceito de excepcionalidade. Por isso mesmo a Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos preparou uma nota técnica sobre este conceito de excepcionalidade[2], na qual, em resumo, analisamos  (1)os marcos legais e normativos nacionais existentes que normatizam as operações policiais (que já previam o caráter excepcional/emergencial das operações policiais, sobretudo as IN’s das próprias policiais cvil e militar) e (2) naqueles que são utilizados por esses  mesmos documentos como condicionantes (tratados e protocolos internacionais sobre uso da força e de armas de fogo). Em ambos e, particularmente nas IN’s das forças policiais já está contido o elemento da excepcionalidade. Nos parece claro que esses princípios basilares e marcos legais, anteriores à ADPF 635, devem ser interpretados de maneira ainda mais restritiva no contexto da decisão colegiada do STF. Mas o fato é que os controles internos e externos da atividade policial têm sido o ponto que fragiliza todo o mecanismo de contenção da violência de estado e esvazia a efetividade da decisão do STF.

Vossa excelência, de forma mais profunda e grave, me permita dizer que é flagrante o desrespeito a esta corte pelas autoridades políticas e policiais do Rio de Janeiro. E que a conivência do MPRJ também afronta a mais alta instância jurídica deste país. Mostra o descompromisso e a cumplicidade dessas autoridades com o extermínio da população negra, pobre e residente em favelas e com as instituições do estado de direito. Neste momento de encruzilhada do nosso destino comum, a coragem e determinação do STF são fundamentais. Em primeiro lugar, só o STF pode fazer cumprir a sentença da corte interamericana[3], sob pena, em caso contrário, de virar letra morta. Em segundo, acredito ser necessário, fundamental e imprescindível não somente a elaboração do plano para redução de letalidade policial, como também o monitoramento atento de seu cumprimento.

Muito objetivamente elaboramos um indicador de eficiência[4] das operações policiais, a fim de constituir-se como ferramenta do processo de avaliação e monitoramento do futuro plano de redução da letalidade policial. Percebemos, ao construir o indicador, que a redução das operações decorrente da Decisão do dia 4 de junho não foi acompanhada do fato das operações serem mais seguras, realizadas com as devidas cautelas que, repito, já estão contidas nas IN’s das próprias polícias civil e militar. Segundo nosso levantamento, apenas 1,7% de todas as operações entre 2007-2021 podem ser consideradas eficientes, todas as outras 98,3% ficaram aquém do desejável. Acreditamos que o indicador de eficiência das operações policiais pode ajudar no enfrentamento da letalidade policial se conjugando com as metas claras e definidas a serem elaboradas no plano.

Vossa excelência, (e com isto eu concluo), é necessário que a sociedade civil, incluindo pesquisadores, ONG’s e, principalmente, movimentos de familiares de vítimas de violência de estado, estejam contemplados neste monitoramento. Que façam parte e sejam protagonistas do processo de supervisão do cumprimento, ajudando a elaborar e executar os instrumentos que garantam a efetiva redução da letalidade policial. É a sociedade que outorga o mandato de uso da força pelas forças policiais, portanto, é mais que razoável que esteja presente na supervisão do cumprimento do plano. Vossa excelência, como visto por todos que tiveram o privilégio de acompanhar o primeiro dia desta audiência, temos uma sociedade civil vibrante, diversa, competente, qualificada e com grande responsabilidade pública no Rio de Janeiro – é a ela a quem deve ser confiada essa importante tarefa de acompanhamento de execução do plano de redução da letalidade policial. De nossa parte, fica aqui disponível o indicador de eficiência das operações policiais assim como nosso compromisso em apoiar toda e qualquer solução para o problema da letalidade policial, que por um lado é imenso, mas, como provado pela decisão do dia 4 de junho, pode ser enfrentado, inclusive no curto prazo.    

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências[editar | editar código-fonte]

Chacina na Vila Cruzeiro mostra falta de controle do governo do Rio sobre a polícia, afirma pesquisador

Ações policiais no Rio de Janeiro juntam brutalidade com ineficiência, critica pesquisador


[1] https://fogocruzado.org.br/wp-content/uploads/2021/06/Um-ano-de-ADPF-das-favelas_GENI.pdf

[2] https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2021/05/Nota-Técnica-excepcionalidade_REDE-FLUMINENSE-DE-PESQUISADORES.pdf

[3] https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/atuacao-internacional/editais-2018-1/copy_of_FavelaNovaBrasiliaSentenca.pdf

[4] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio-audiencia_indicador_Final.pdf


[1] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/02/2019_boll_sumario_operacoes_policiais.pdf

[2] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/02/2019_boll_Roubo-letealidade-e-protecao-patrimonial.pdf

[3] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/02/2020_10-_Relatorio-Parcial_A-expansao-das-milicias-no-Rio-de-Janeiro_FINAL.pdf

[4] http://necvu.com.br/wp-content/uploads/2020/11/MISSE-E-AL_Quando-a-policia-mata-2013.pdf

[5] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/02/2020_Relatorio-efeitos-da-Liminar.pdf

[6] http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio-audiencia_balanco_final_22_03_2021-1.pdf


[1] Ver o certificado de julgamento: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=759044173&prcID=5816502&ad=s#