A onça pintada e a Favela do Arrelia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Crônica que conta o surgimento da favela do Arrelia, a mais antiga comunidade do Andaraí, no Rio de Janeiro.

Autoria: Marcelo Sant’Ana Lemos.

O distante bairro do Andarahy Grande...

Era início da República, no distante bairro suburbano do Andaraí Grande, que se caracterizava mais pelas belas chácaras, sítios e fazendas do que casas, sobrados e fábricas.

As galinhas e cabritos daquele bairro, de Vila Isabel e do Engenho Novo começaram a aparecer mortos, num rastro de sangue pouco usual. Algum animal de grande porte rondava pelas aquelas bandas.

Alguns moradores começaram a falar que viram uma onça pelas matas, que no cair da noite ela atacava os galinheiros e os animais que pastavam. Onça? Ali no Andarahy Grande, era uma coisa que não se via faz muitos anos!

Olha o bicho!

Deve ser invencionice no povo! Diziam alguns jornais, como o Jornal do Brasil, mais preocupado com a proibição do jogo do bicho no Zoológico do Barão de Drummond, naquele ano de 1893, do que apurar a verdade sobre as caminhadas devoradoras da onça. Eles faziam troça da situação, dizendo que a onça tinha fugido do Zoológico de Vila Isabel[1] porque estava com fome, por conta da diminuição da ração diária ocasionada pela queda da arrecadação proporcionada pelo jogo do bicho, proibido pela polícia.

O jogo do bicho, para quem não sabe foi inventado pelo Barão de Drummond, como uma forma de sustentar o seu Zoológico, cuja a manutenção era cara. Todas as pessoas que frequentavam o local recebiam um ingresso que tinha impresso um dos 25 bichos do jogo e ao final do dia, no portão da frente do Jardim Zoológico era sorteado o bicho que deu, levando o sorteado uma parte da bilheteria arrecadada, o jogo virou uma febre e persiste até hoje.

A onça

Voltando ao “tempo do onça”: desde de fevereiro daquele ano o carnívoro andava rondando as chácaras e sítios da Rua Leopoldo e da Travessa Caminha, mastigando gatos, gansos e galinhas dos moradores, como informava o jornal o Tempo[2].  Mas os moradores andavam bem preocupados, não só com suas criações, mas com o risco do felino resolver variar o cardápio e investir contra crianças do local. E foi o que ocorreu!

O Sr. Coriolano Ricardo O’Relly, cirurgião dentista, morava com a mulher e filhas, na Rua Leopoldo n. 52/56(numeração de 1893)[3], onde também dava consultas. Perto dali, na noite de quinta-feira, dia 6 de julho de 1893, às 7 horas da noite, sua filha caminhava pela Travessa Caminha quando foi atacada pela onça, por duas vezes, sendo socorrida por outros moradores que ao ouvirem os seus gritos, correram para espantar a onça e impedir que lhe fizesse estragos mortais[4]. A onça fugiu, dizem para seu refúgio, que ficava no centro da mata, na serra do Andaraí. Clamavam os moradores do bairro, nos jornais por um caçador intrépido que desse cabo do animal, que era uma ameaça real à população local!

Jornal da época.
Jornal da época.

A favela do Arrelia

É provável que o Sr. Coriolano, depois do susto que passou sua filha, tenha saído dali, pois a partir deste ano só aparece como endereço de sua clínica dentária a Rua Souza Franco (antiga Rua do Theatro), não mais aparecendo como morador da rua Leopoldo.

O terreno onde morava, uma provável chácara, virou a favela do Arrelia (uma deturpação do seu nome, de origem inglesa). A mais antiga comunidade do Andaraí.  

E a onça? Essa desapareceu sem deixar vestígios... não queria esperar para ver se apareceria um caçador e fazer ela virar tapete ou mala com o seu couro!

Ver também

  1. O Zoológico de Vila Isabel foi o segundo fundado no Rio, o primeiro que funcionava na Chácara do Souto, com entrada pela Rua do Souto (atual Rua Senador Furtado), no antigo Engelho Velho, funcionou entre a década de 1850 até 1864, quando o dono dele, o banqueiro Visconde de Souto, faliu e não pode mais sustentar os animais do seu Zoológico.
  2. Jornal O Tempo, ano 1893, n.614, de sete de fevereiro de 1893.
  3. Almananack Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial, 1891, ed. B0048.
  4. Gazeta de Notícias, ano 1893, n.187, de 8 de julho de 1893.