Frente Estadual pelo Desencarceramento
Autoria: Eliene Maria Vieira, Monique Cruz, Nina Barrouin, Patricia de Oliveira e Valéria Gomes de Oliveira[1].
Movimento social que articula redes, associações, organizações e coletivos que lutam pelo desencarceramento, bem como familiares e sobreviventes do cárcere.
História
A Frente Estadual Pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro (FRENTE-RJ) foi fundada em janeiro de 2017. No lançamento, cerca de 100 organizações da sociedade civil, incluindo movimentos sociais de familiares e sobreviventes do cárcere, se reuniram para discutir a situação de violência estrutural promovida pelo Sistema Prisional no estado, depois de participarem no I Encontro Nacional pelo Desencarceramento no ano anterior.
A FRENTE-RJ tem como missão o enfrentamento ao encarceramento em massa e às mazelas geradas pelo cárcere, a partir das experiências concretas das pessoas que tiveram suas vidas impactadas pelo Estado penal, atuando para denunciar o projeto racista, genocida e cisheterosexista levado a cabo pelo sistema de justiça. Nosso objetivo principal é o fortalecimento da luta das pessoas que sobreviveram ao cárcere e seus familiares.
Gestamos coletivamente estratégias de denúncia às graves violações de direitos humanos que ocorrem no cárcere, interpelando os atores do sistema de justiça e promovendo mobilizações através de campanhas de advocacy e litigância estratégica. Buscamos promover informações sobre direitos e funcionamento do sistema de justiça, desenvolvendo estratégias de comunicação para denunciar o cárcere enquanto violência de Estado.
Desse modo, a FRENTE-RJ busca fomentar a autonomia e a formação política na construção de um projeto abolicionista penal, considerando a materialidade da vida, construindo redes de enfrentamento ao genocídio da população negra, moradora de favelas e periferias e fortalecendo as mulheres como sujeitas de transformação. Nossas ações são pautadas pelos princípios e diretrizes da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, priorizando a construção de redes de apoio interinstitucionais, o monitoramento do sistema prisional e a incidência para a construção de políticas desencarceradoras.
Atualmente a FRENTE-RJ integra diversos espaços coletivos e interinstitucionais, como a Rede Nacional de Mães e Familiares e Vítimas de Terrorismo do Estado, o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, o GT Interinstitucional da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão de Controle Externo da Atividade Policial e do Sistema Penitenciário do Ministério Público Federal (MPF), e a articulação “De Olho na Alerj”, da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) – que monitora os projetos de lei em âmbito estadual.
Em função da pandemia de Covid-19, foi lançamos o "Zap da Frente" e a "Plataforma Desencarcera RJ!", com o objetivo de difundir informações úteis para familiares de pessoas privadas de liberdade e receber denúncias de forma segura, através do acionamento dos órgãos competentes após análise caso a caso.
A luta pelo desencarceramento
Principais ações
A FRENTE-RJ tem se articulado em muitos campos para enfrentar as violências do cárcere. Isto implica o enfrentamento, sobretudo, de retrocessos legislativos e ações e omissões de órgãos que teriam competência para minorar as violências no cárcere, mas que vêm aprofundando as práticas e as estruturas racializadas que promovem sofrimento e violação de direitos.
A exemplo, temos participado de audiências públicas como a realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 - ADPF das Favelas -, e nº 347 sobre o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional.
Além disso, a FRENTE-RJ vem atuando regularmente junto à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado (Seap/RJ) a fim de obter informações seguras acerca da entrega de produtos para alimentação, higiene e limpeza, uma vez que as unidades prisionais e socioeducativas nem sempre as têm de forma padronizada. Durante a pandemia, a situação ficou ainda mais complexa, já que as visitas foram suspensas, assim como a entrega de materiais durante um período considerável. Neste sentido, as informações fornecidas pela FRENTE-RJ permitiram que familiares e pessoas amigas pudessem fornecer os itens básicos para pessoas privadas de liberdade, sem grandes desperdícios.
Com a pandemia, serviços essenciais para a vida das pessoas presas e visitantes foram suspensos, como é o caso dos serviços de emissão de “carteira de visitante” executados pelo Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro (DETRAN/RJ). A atuação da FRENTE-RJ foi fundamental tanto para a incidência junto às instituições (Seap, DETRAN, MPRJ e DPERJ) com vistas à retomada dos serviços, quanto para a difusão de informações sobre os mesmos.
As estratégias estruturadas na prática coletiva buscam promover, assim, a mobilização das pessoas atingidas pela violência do Estado penal- -punitivista e a incidência nos espaços e instituições públicas do campo da justiça criminal e seus afins, como a justiça juvenil. O Ministério Público Estadual, por exemplo – órgão responsável por fiscalizar políticas públicas, monitorar instituições de privação de liberdade e realizar a persecução penal – vem sendo sistematicamente acionado desde a fundação da FRENTE-RJ, por meio de solicitações diretas para a realização de reuniões com membros da sociedade civil, ou por meio de atos públicos, notas técnicas e outros instrumentos com vias a garantir a participação democrática e atuação cidadã no que tange ao seu funcionamento.
Nos últimos meses, com o acirramento das disputas em relação à realização de audiências, em especial de audiências de custódia, a FRENTE-RJ vem fortalecendo sua atuação na promoção de argumentos contrários à chamada virtualização da justiça, assim como vem mobilizando familiares, sobreviventes e outras organizações da sociedade civil para fazer coro à luta contra o Projeto de Lei n° 1473 de 2021, que pretende autorizar o uso de videoconferência para realização de audiências de custódia enquanto perdurar a emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19.
No âmbito do socioeducativo, temos como grande referência a Associação das Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR), que integra a FRENTE-RJ desde sua fundação. Através do trabalho cotidiano construído pelas mães de adolescentes privados de liberdade, a AMAR mobilizou a campanha #FIQUEEMCASA, fornecendo cestas básicas nas portas das Unidades. Em junho, a organização começou a atender aqueles e aquelas em medida domiciliar e liberdade assistida.
Também destacamos a forma como, no início da pandemia, familiares e adolescentes foram impactados(as) pela falta de visita e falta de notícias e infestados(as) pela saudade e preocupação. Todo o atendimento socioeducativo ficou prejudicado já que os(as) adolescentes cumprindo medidas perderam o contato com suas famílias. A justificativa oferecida pelas Secretarias de Saúde (SES) e Educação (SEEDUC) – responsável pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) – foi o alto risco de transmissibilidade para o coronavírus. Tais medidas restritivas, por outro lado, podem ser apontadas como fatores de risco para a saúde mental e para o surgimento de casos de sofrimento psíquico, estresse e ansiedade entre os e as adolescentes.
Nesse sentido, a atuação da FRENTE-RJ junto à AMAR no monitoramento remoto (por meio de conversas sistemáticas com familiares e com as unidades) foi fundamental para que houvesse informação consistente sobre a situação das unidades e consequentemente sobre os e as adolescentes privados(as) de liberdade. Tanto a AMAR, individualmente, quanto a FRENTE-RJ realizaram um importante trabalho humanitário ao possibilitar que as famílias e, indiretamente, as pessoas privadas de liberdade pudessem se alimentar.
No mais, durante toda a pandemia foram arrecadados alimentos e produtos de higiene e limpeza que supriram necessidades imediatas das famílias que, mesmo com a interrupção das visitas, continuaram fornecendo produtos para as pessoas queridas que cumprem medida privativa de liberdade, sejam adultas ou adolescentes. Entre as doações estavam, inclusive, materiais em atacado que foram fornecidos diretamente às unidades prisionais do Complexo de Bangu.
As estratégias da FRENTE-RJ são construídas a partir de princípios que compreendem a via material e política, assim como a integridade das famílias das pessoas privadas de liberdade. O apoio humanitário, realizado de maneira pontual desde o início das atividades da FRENTE-RJ, ganhou força após a pandemia, por todo contexto de aprofundamento da crise econômica.
Plataforma Desencarcera RJ
A interrupção das visitações, combinada à falta de transparência da administração penitenciária sobre os impactos da Covid-19 no sistema prisional, incrementou o cenário desolador que se estabeleceu em março de 2020. Foi nesse contexto que surgiu a Plataforma Desencarcera-RJ!, uma estratégia coletiva construída pela Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro em parceria com o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), com apoio da organização Mulheres Negras Decidem (MND).
Através de um formulário, garantimos que de - núncias sobre questões de saúde, condições, acesso à justiça, acesso à informação por parte dos familiares, dentre outros, pudessem ser realizadas de forma segura. Desse modo, desde o dia 4 de junho de 2020, recebemos mais de setecentas denúncias. Encaminhamos os casos às instituições competentes e nos articulamos para criar incidências através do monitoramento realizado. Dividimo-nos entre as nossas tarefas semanais, que incluem: realização de ofícios, acolhimento e atendimento às famílias e participação de reuniões de mobilização. É importante destacar a participação de familiares de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do cárcere nessa construção, dando a tônica do trabalho da Plataforma.
Os dados sistematizados ao longo desses 13 meses apontam para um cenário de total ausência de implementação de medidas de prevenção e com - bate à Covid-19 que dessem conta das complexidades pré-existentes do sistema prisional fluminense. Quando muito, tais medidas foram implementadas de forma precária, descontínua e pontual, o que nos preocupa extremamente. Fica evidente que durante a pandemia houve um aprofundamento dos graves problemas que historicamente marcam o sistema prisional do Rio de Janeiro – e de todo o país. Cabe enfatizar as questões atinentes à alimentação, falta de água e luz, que tomaram contornos inadmissíveis durante os últimos meses.
Diante deste cenário de aprofundamento de arbitrariedades e violações no cárcere, ausência de suporte às pessoas privadas de liberdade e insegu - rança alimentar, sanitária e emocional em um con - texto de pandemia, a FRENTE-RJ reforça seu com - promisso de atuar e construir ações e estratégias de enfrentamento à conjuntura posta, coletivamente. Só assim caminhamos mais longe.
Redes sociais
Ver também
- Chacinas e criação de movimentos sociais de mães no RJ (linha do tempo)
- Mães vítimas de violência estatal
- Chacinas no Rio de Janeiro
- Rede Nacional de Mães e Familiares