Feminismos negros e decolonialidade no Museu da Maré
Pesquisa que teve como objetivo investigar as relações de poder existentes no campo da Memória Social e dos museus, chamando atenção para a invisibilização das histórias de mulheres negras nos museus tradicionais da modernidade. Considera as práticas do Museu da Maré e as narrativas de mulheres negras de sua equipe como instrumentos decoloniais que transpõem as tradições museais.
Autoria: Mariah
Resumo
Ao apontarmos para a invisibilização das histórias de mulheres negras nos museus tradicionais da modernidade, a presente pesquisa teve o objetivo investigar as relações de poder existentes no campo da Memória Social e dos museus, trazendo as práticas do Museu da Maré e as narrativas de mulheres negras de sua equipe como instrumentos decoloniais que transpõem as tradições museais. A pesquisa foi realizada através do método qualitativo por meio de observação participante e de entrevistas às colaboradoras do museu, no âmbito do Projeto Museus da Consciência: um novo desafio (ICS-UERJ), coordenado pela Profª Drª Myrian Sepúlveda dos Santos. O Museu da Maré é referência mundial em relação às práticas propostas pela Museologia Social na busca pela dinamicidade da memória a partir do protagonismo dos diversos sujeitos na construção de suas histórias, memórias e no apontamento das referências culturais, assim como por viabilizar a resolução das demandas sociais e pedagógicas do Complexo da Maré. Ao demonstrarmos que as estruturas dos museus na modernidade foram configuradas conforme a lógica colonial de hierarquização e de exploração de modo a sustentar a matriz colonial de poder, a Museologia Social veio como um movimento crítico na década de 70 ao modelo tradicional de museu promovendo a diversidade das narrativas históricas e culturais. No mesmo sentido, associamos o pensamento feminista negro como instrumento crítico-teórico para demonstrar a diversidade que permeia o grupo das mulheres negras enquanto grupo político de combate às opressões de raça e gênero.
Introdução
A Museologia Social rompe com os paradigmas dos museus tradicionais da modernidade ao questionar o papel social dos museus. Os parâmetros estabelecidos pelo movimento da Nova Museologia propõem a valorização das diversidades culturais, a participação da comunidade na construção coletiva dos acervos, assim como no desenvolvimento local e na resolução das demandas sociais presentes nos lugares que os museus se encontram. Desse modo, o presente trabalho tem a intenção de contextualizar os desdobramentos críticos que contribuíram para a ruptura paradigmática do campo museológico com a Declaração de Santiago para demonstrar como as práticas estabelecidas pelo Museu da Maré através de seus agentes participativos fortalecem as narrativas das mulheres negras consolidando suas memórias enquanto grupo político diante do sistema de opressões, associando assim o pensamento feminista negro como instrumento crítico decolonial.
A realização dessa pesquisa ocorreu no contexto do Projeto Museus da Consciência: um novo desafio, coordenado pela Profª Drª Myrian Sepúlveda dos Santos (ICS-UERJ), onde foi utilizado o método qualitativo de observação participante nas exposições e nos demais espaços do museu entre os anos de 2019 e 2021. Ao longo desse período tive a oportunidade de entrevistar a Marilena Nunes e a Dona Vera que se identificam enquanto mulheres negras, moradoras do Complexo da Maré e fazem parte da equipe do museu. Nessa entrevista, além de contarem de suas rotinas e de como conheceram o Museu da Maré, elas falaram sobre suas histórias de vida, dos desafios encontrados no percurso ocasionados pela questão da cor da pele, pela textura do cabelo, por serem mulheres e pelas dificuldades econômicas, mas que encontraram no museu um espaço de lutas, de referências culturais e simbólicas onde puderam afirmar suas identidades, ampliar suas vozes e expressões.
O Museu da Maré e a Museologia Social
O Museu da Maré e a Museologia Social O Museu da Maré foi inaugurado em maio de 2006 durante a 4ª Semana de Museus, embora o histórico de seus projetos e ações tenham sido iniciados anteriormente a partir do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). O Museu da Maré fica localizado na região do Morro do Timbau e foi um dos primeiros museus comunitários criados na cidade a partir da iniciativa dos moradores como meio de reivindicar os direitos sociais para as favelas do Complexo da Maré. Entre esses direitos, o direito à memória. A criação do acervo do Museu da Maré foi feita com o apoio dos moradores que doaram seus objetos pessoais à exposição de longa duração “Os Tempos da Maré”. A exposição “Os Tempos da Maré” é dividida por partes correspondentes aos tempos de cada época que perpassam a história da Maré, relatando os aspectos presentes no cotidiano dos moradores ao longo da história de constituição do bairro, assim como propor reflexões a respeito das conjunturas do território, desde o “Tempo das Águas até o “Tempo do Futuro”.
O museu faz parte da Rede de Museologia Social do Estado do Rio de Janeiro que integra museus comunitários, ecomuseus, pontos de memória entre outras iniciativas que tem como objetivo difundir o debate acerca das práticas da museologia social no estado, atendendo os parâmetros da nova museologia com as funções de comunicar e resolver as demandas e conflitos locais. As políticas do movimento da Museologia Social se configuraram como demandas emergentes dos museus latino-americanos diante de suas especificidades históricas pela experiência do processo colonialista e pela crítica à exaltação da história hegemônica da nação.
Em 1972 a Mesa Redonda de Santiago no Chile se configurou como um marco na história da Museologia. O evento teve a finalidade de debater o desenvolvimento e o papel dos museus no mundo contemporâneo, afirmando o museu como uma instituição pública tem o papel fundamental na resolução dos problemas no meio urbano e rural que contribui para o desenvolvimento científico e para a educação permanente, tomando consciência dos seus aspectos técnicos, sociais, econômicos e políticos para pensar o futuro da sociedade. A Declaração de Santiago atribuiu ao museu o papel de agente participativo juntamente com a comunidade na identificação e resolução das demandas locais e o comprometimento com o desenvolvimento social e cultural, definindo assim alguns dos princípios básicos da ideia de “museu integral” que opera à serviço da sociedade:
“Que o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais.” (Declaração de Santiago, 1972)
Ao analisarmos o contexto que levou o campo dos museus à uma autoavaliação, vimos que as definições de museu foram sendo modificadas de acordo com os diferentes cenários da contemporaneidade, permitindo novos formatos do fazer museal. A partir da década de 50 o movimento crítico da museologia latino-americana passou a questionar a função social dos museus. Entre os eventos ligados ao Conselho Internacional de Museus (ICOM), as contribuições vindas da América Latina se destacaram no fomento das rupturas com as práticas do museu tradicional da modernidade. No caso do Museu da Maré, a narração das histórias da favela e de seus habitantes dá protagonismo aos moradores na realização de suas memórias, contrapondo assim os apagamentos históricos dos museus nacionais.
A colonialidade dos museus tradicionais da modernidade
Ao traçar a perspectiva histórica dos museus brasileiros, Myrian Santos (2004) no artigo “Museus Brasileiros e Políticas Culturais” assinala autores como John Gillis, Jessica Evans e David Boswell que apontam para a relação entre os museus e a formação dos Estados nacionais. Santos nos diz que alguns desses autores se influenciaram pelos trabalhos de Michel Foucault ao considerarem os museus como instituições abertas ao público capazes de ordenar, civilizar e disciplinar grandes setores da população. No entanto, Santos (2004) ressalta que diferente de outros países, os museus nacionais no Brasil não poderiam estar associados às práticas disciplinares sobre grandes setores populacionais, considerando que a desigualdade de renda e educacional no histórico do país levou apenas as classes mais altas a frequentarem os primeiros museus nacionais.
A pesquisadora mexicana Brenda Cocotle (2019) identifica duas tendências que operam na tentativa de desmontar o arcabouço colonial no museu. A primeira se refere à política de identidade e representatividade estabelecida com os processos de multiculturalismo e da hibridização cultural que ocorreu em paralelo à crise do tradicionalismo do Estado-nação. A segunda tendência diz respeito à introdução dos conceitos das teorias decoloniais com reflexões sobre as narrativas e representações vindas dos discursos coloniais. Podemos considerar que nessa perspectiva o Museu da Maré se orienta pelas duas tendências, tanto pela valorização da identidade coletiva dos moradores e da diversidade cultural mareense, quanto por viabilizar as narrativas produzidas localmente, deslocando o olhar do viés histórico nacionalista.
Sob a perspectiva da teoria crítica do grupo de estudos decoloniais latino-americano, o museu tradicional se configurou como uma das instituições da modernidade responsáveis por exercer a colonialidade do poder/saber. O sociólogo peruano Aníbal Quijano introduziu na década de 90 o termo colonialidade para ressignificar o processo colonialista como uma das faces do projeto político da modernidade europeia. O grupo de estudos “Modernidade/Colonialidade” defende que a abertura da modernidade na Europa com a construção dos estados nacionais culminou com o projeto imperialista de colonização das Américas.
Além do domínio político dos territórios americanos e do genocídio étnico, o colonialismo foi responsável pela hierarquização cultural-epistemológica e pela criação de categorias raciais colocadas como subalternas em relação ao homem branco europeu. Estes fatores contribuíram para o início do capitalismo global ao perpetuar a estrutura da divisão do trabalho no estabelecimento de funções e papéis sociais determinados pela produção das diferenças de gênero e raciais, o que Quijano definiu como a colonialidade do poder:
“A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentai desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, consequentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. ” (QUIJANO, 2005)
Outro integrante do grupo “Modernidade/Colonialidade”, o argentino Walter Mignolo, nos diz que a ideia de colonialidade vem como o lado mais obscuro da modernidade. A matriz colonial do poder é construída por quatro domínios inter- relacionados: o controle da economia; da autoridade; do gênero e da sexualidade; do conhecimento e da subjetividade. Esses domínios se desdobram em duas direções, na luta entre os Estados imperiais europeus e nos sujeitos coloniais indígenas e africanos que foram explorados e escravizados (MIGNOLO, 2017). Mignolo diz que esses domínios são sustentados por dois pilares, o fundamento racial e patriarcal do conhecimento, onde seu fundamento histórico é pautado na teologia cristã. Ao enumerar os históricos de instituições que articulam o controle do domínio da diferença entre o colonial e o imperial, Mignolo aponta o museu como uma das instituições responsáveis pela hierarquização estética:
“Uma hierarquia estética (a arte, a literatura, o teatro, a ópera) que, através das suas respectivas instituições (os museus, as escolas das belas artes, as casas de ópera, as revistas lustrosas com reproduções esplêndidas de pinturas), administra os sentidos e molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do sublime, do que é arte e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será premiado e do que será ignorado (Kant, 1960; Mignolo e Tlostanova, 2012; Mignolo, 2012; Tlostanova, 2010a).” (MIGNOLO, 2017, p.11)
Mignolo (2017) nos diz ainda que as colônias europeias foram fontes de material bruto para a fundação dos museus de história natural e de antropologia na Europa:
“A partir do século XVII, as colônias europeias forneceram o material bruto para a fundação dos museus de curiosidades (Kunstkamera), que mais tarde separaram as peças do mundo não europeu (museus de história natural, de antropologia) dos museus de arte (principalmente europeia, a partir do Renascimento).” (MIGNOLO, 2017, p.12)
Estes estudos demonstram como as estruturas dos museus na modernidade foram configuradas conforme a lógica colonial de hierarquização e de exploração, e que as instituições na modernidade foram estruturadas de modo a sustentar a matriz colonial de poder. Com isto, Walter Mignolo aponta como a geopolítica e o corpo-político (entendidos como a configuração biográfica de gênero, religião, classe, etnia e língua) foram ocultados da composição do conhecimento e das questões epistemológicas. Ao considerarmos a lógica por trás do processo colonialista, vemos que a relação de alteridade estabelecida pelo homem europeu centralizado na história, dispõe, sobretudo para as mulheres negras, uma posição de subalternidade diante do contexto da modernidade.
Feminismos negros e decolonialidade
O feminismo negro se estabeleceu como um movimento que veio para abarcar as demandas raciais não contempladas pela teoria feminista universalista ao considerar o racismo histórico do sistema colonial. O movimento das mulheres negras se configura como um movimento político de combate ao racismo e às desigualdades de classe e gênero. A produção da alteridade é colocada como um debate central no pensamento feminista negro, considerando a invisibilização e o silenciamento das mulheres negras. A apropriação de suas narrativas apresenta as mulheres negras na posição de objetos de conhecimento cercados de estigmas e estereótipos que permeiam o imaginário social.
Segundo a pensadora Carla Akotirene (2020) a inter-relação entre classe, raça e gênero orientam o suporte analítico da interseccionalidade que confronta o sistema de opressões que atingem as mulheres negras:
“A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cishetetopatriarcado - produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.” (AKOTIRENE, 2020, p. 19)
Carla Akotirene (2020) nos diz que a interseccionalidade como instrumento teórico-metodológico dos grupos subalternizados, além de propiciar a análise pela ótica de raça, classe, nação e gênero, requer uma sensibilidade interpretativa dos efeitos identitários, admitindo a matriz colonial de poder conferida no sistema global como fonte dos múltiplos níveis de discriminação e dominação.
Ainda que o conceito de interseccionalidade tenha sido cunhado pela norte-americana Kimberlé Crenshaw em 1989 ao identificar a interseção identitária na reprodução do racismo no feminismo universalista e do machismo dentro do movimento negro, Akotirene (2020) ressalta o pioneirismo da análise interseccional de Lélia Gonzalez ao interpretar a formação cultural brasileira. No artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” de 1984, a antropóloga Lélia Gonzalez aponta para o lugar da mulher negra no processo de formação da cultura brasileira e os diferentes modos de rejeição e integração de seu papel. O racismo e o sexismo para Lélia é um duplo fenômeno que produz efeitos violentos sobre a mulher negra.
Pela ótica psicanalítica, Lélia Gonzalez indica que o racismo naturalizado na cultura brasileira relega às pessoas negras o lugar da incapacidade intelectual, da infantilização através da linguagem utilizada. Com isto, indaga “por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?”. Desse modo, Gonzalez trabalha com as noções de consciência e memória para demonstrar que no imaginário social as mulheres negras são taxadas como mulatas, domésticas e mãe pretas:
“Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética.” (GONZALEZ, 1984, p. 226)
Ao descrever as situações nas quais as mulheres negras são categorizadas e lembradas, Lélia Gonzalez evidenciou o mito da democracia racial forjado na cultura brasileira como campo da dialética entre a memória e a consciência para demonstrar os efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra no país. Podemos constatar a dinâmica racial descrita por Lélia Gonzalez na fala de Marilene Nunes que é atriz e arte educadora do Museu da Maré:
“Também tive desconforto quando na escola ou em algum ambiente era chamada de nega de cabelo duro, e por achar que as pessoas estavam certas, e que o meu cabelo era feio por ser duro, muitas das vezes usei e alisei com pente quente para que ficasse liso. Mas Graças a Deus com o passar do tempo fui conhecendo e convivendo com pessoas e lugares que me ajudaram muito a assumir minha verdadeira identidade.” (Marilene Nunes - Museu da Maré)
Diante das atividades empenhadas no Museu da Maré, a Marilene se posiciona diante de diferentes frentes e iniciativas políticas que compõem assim as facetas de sua subjetividade e que rompem com os estigmas relacionados a ela ao longo de sua vida. Ela é coordenadora da Brinquedoteca e da Biblioteca, é contadora de histórias e pesquisadora no Projeto de História Oral do museu. Como uma das co-fundadoras do museu, Marilene diz que o Museu da Maré representa a vivência , a preservação viva da história e da memória da favela.
Ao analisar a natureza interligada das opressões que as mulheres negras vivenciam a autora estadunidense Patricia Hill Collins expõe alguns temas chaves da construção do pensamento feminista negro. Entre eles, Collins nos diz que as mulheres negras “defendem um ponto de vista ou uma perspectiva singular sobre suas experiências e que existirão certos elementos nestas perspectivas que serão compartilhados pelas mulheres negras como grupo” (COLLINS, 2016). No entanto, ainda que existam elementos em comuns que pertençam às pautas do movimento de mulheres negras a diversidade de classe, religião, idade e orientação sexual que constituem as identidades dessas mulheres resultarão em diferentes perspectivas da mesma temática, os “temas universais que são incluídos nos pontos de vista de mulheres negras podem ser experimentados e expressos de forma distinta por grupos diferentes de mulheres afro-americanas” (COLLINS, 2016). Podemos afirmar através do pensamento de Collins que o movimento feminista negro, embora seja composto por mulheres negras que reivindicam pautas de temas em comuns, as mulheres negras são diversas e suas identidades são construídas a partir de experiências subjetivas.
Como movimento social e grupo político, as mulheres negras reivindicam suas pautas de luta contra as desigualdades históricas a partir de uma perspectiva interseccional ao considerarem as violências de gênero e raça. No entanto, suas subjetividades moldam os diferentes campos de atuação de suas lutas, considerando a classe, a geração, a sexualidade, a religião, entre outros âmbitos de sociabilidade. Nesse sentido, a autodefinição e a autoavaliação das mulheres negras possibilitam a reapropriação de suas narrativas.
A Dona Vera que faz parte da gestão do Museu da Maré, nasceu em Minas mas veio morar no Morro do Timbau ainda criança junto com a sua tia Dona Orosina Vieira que foi uma das primeiras moradoras da Maré. Dona Vera carrega o legado dessa importante referência histórica da Maré, o simbolismo de sua presença no museu se coloca como memória viva, onde por meio da oralidade contribui com a passagem de suas memórias da infância às novas gerações, lembrando das lutas viabilizadas pelos moradores de lá em busca do desenvolvimento do território. Ressalta sempre que pode a importância da atuação e do legado de Marielle Franco enquanto mulher negra mareense. Ao falar sobre o que o Museu da Maré representa para ela, Dona Vera diz com muito orgulho de seu parentesco com a primeira mulher mareense:
“O Museu da Maré representa a memória da comunidade. E acho muito importante ter um arquivo com o nome de minha tia, pois sou sobrinha neta de uma das primeiras moradoras da Maré, Dona Orosina Vieira.” (Dona Vera - Museu da Maré)
Além de Dona Vera e Marilene, o museu conta com diversas mulheres na sua equipe. Podemos considerar que as mulheres negras que compõem o Museu da Maré, rompem através da oralidade e da narração sobre suas histórias de vida com as imagens de alteridade produzidas externamente, estabelecendo a amplitude de suas falas como estratégia discursiva decolonial diante dos apagamentos impostos pela história oficial dos museus tradicionais e pelas imposições da matriz colonial de poder. Desse modo, o Museu da Maré possibilita a visibilização e a autodefinição das mulheres negras a partir de suas agências e narrativas orais. O Museu da Maré busca resgatar a identidade coletiva local a partir de referências políticas e culturais em comuns, marcadas nas memórias e nas histórias dos moradores. Ao ressaltar a diversidade de narrativas de memórias a partir das histórias de vidas e do acervo participativo da favela, o Museu da Maré se alia às práticas da Museologia Social, se tornando um movimento social de luta pelo direito à memória. As referências de memória consolidam a identidade coletiva dos moradores mareenses, promovendo o sentimento de pertencimento, de valorização de si e de suas territorialidades.
Referências bibliográficas
COCOTLE, Brenda Caro. "Nós prometemos descolonizar o museu: uma revisão crítica da política museal contemporânea”. São Paulo: MASP, 2019.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado: 2016.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
MIGNOLO, W. D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco de Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol 32, n 94: 2017.
MIGNOLO, W. D. The darker side of western modernity: global futures, decolonial options. Duke University, Durham, NC, EUA: 2011.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina”. Buenos Aires: 2005.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. “Museus brasileiros e política cultural”. Rev. Bras. Ci. Soc. 19 (55). Jun 2004