Covid-19 em favelas cariocas: no limiar entre os direitos humanos e as desigualdades sociais (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Luana Almeida de Carvalho Fernandes[1], Caíque Azael Ferreira da Silva[2], Cristiane Dameda[3] e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho[4].

Artigo originalmente publicado em: METAXY.

Introdução[editar | editar código-fonte]

Escrevemos esse manuscrito dois meses após a confirmação da transmissão comunitária no Rio de Janeiro e da primeira morte em decorrência da pandemia do coronavírus. São sessenta dias de orientações de quarentena e isolamento social e estamos próximos do início das medidas de fechamento completo (também conhecidas como lockdown, ou "tranca-rua") na maioria das cidades da Região Metropolitana. Para nós, brasileiras e brasileiros, tudo começa no final de janeiro de 2020: recorrentemente chegam notícias sobre o surto da doença causada pelo novo coronavírus, a Covid-19, que constituiu uma Emergência de Saúde em nível internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, assim, é afirmada como pandemia. A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em áreas sociais como a saúde, sofremos com a intensificação do sucateamento dos sistemas de saúde, fechamento de leitos e hospitais em todo o país. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais medidas de restrição, principalmente diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana María Galindo (2020): na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do mundo. "Aqui a sentença de morte estava escrita antes da covid chegar em avião de turismo" (p. 124). Não atingimos o pico da pandemia por aqui, embora há quem diga por aí que o pior já passou para as classes alta e média. Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução social da vida imprime na sociedade. Neste sentido, o presente ensaio visa problematizar a relação entre direitos humanos e desigualdades sociais nas favelas cariocas, a partir dos cenários que emergem com a pandemia do novo coronavírus.

O nosso inimigo invisível – o coronavírus – "faz ver e falar" (DELEUZE, 1990; HUR, 2016) sobre essas desigualdades. Especialmente no caso do Rio de Janeiro, o terceiro lugar em contágios e mortes no país, gostaríamos de discutir sobre um tema que consideramos de suma importância: a chegada do coronavírus às favelas cariocas expõe uma forma de relação entre poder público e populações mais pobres que é ubuesca: adjetivo aqui utilizado sob  inspiração de Foucault (2002), em que o autor aponta o cruzamento entre os enunciados científicos e jurídicos usados para legitimar como estatuto de verdade a produção desses discursos que estão alheios às próprias regras científicas e jurídicas. Por isso são:

Textos grotescos – e quando digo ‘grotesco’ gostaria de empregar a palavra num sentido, se não absolutamente estrito, pelo menos um pouco rígido ou sério. Chamarei de ‘grotesco’ o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o ‘ubuesco’ (FOUCAULT, 2002, p. 15).      

Invisível e excepcional o coronavírus foi tido inicialmente como “um vírus democrático” – expressão que compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que evaporou a segurança da nobreza e, o medo da sua contaminação, extrapolou as fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada. "Este vírus é democrático e não distingue entre pobre e ricos ou entre estadista e cidadão comum" (ZIZEK, 2020, p. 25).

Como um vírus pode ser "democrático" (ZIZEK, 2020) em um país tão desigual? A realidade das periferias e favelas mostra-se outra comparada às zonas nobres; as orientações de epidemiologistas, sanitaristas e de outros conhecedores científicos mostram-se incompatíveis com a estrutura material, financeira e social que aqueles possuem, sem condições básicas para seguirem prescrições alimentares, de isolamento, de higiene, sem contar que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e desmoralizam a gravidade da doença, tratando-a como uma “gripezinha” (LÖWY, 2020). Controlar a contaminação nos países ditos democráticos poderia ser um desafio, aponta Boaventura de Sousa Santos (2020), uma vez que, cada pessoa é “livre” para decidir sobre sua circulação e outros aspectos de operacionalização da vida. Assim como, para os brasileiros, o acesso à informação e aos serviços públicos de saúde por exemplo, também são para todos. Uma utopia, sabemos. “De-mo-cra-ci-a”: cinco sílabas e uma fonética elaborada, mas que, às vezes, não articula e é ineficiente para representar o direito à igualdade e ao exercício livre e participativo da vida nas mais diferentes classes sociais (BICALHO, 2013). O Brasil apresenta um dos maiores índices no que concerne a desigualdade social (estando na 10ª posição em comparação com outros países do mundo, verificando-se no ano de 2019 ampliação da desigualdade entre os extremos da distribuição da renda do trabalho, de acordo com IPEA).  Para a manutenção da ordem capitalista, o darwinismo social ainda permeia como ideologia explicativa a esse fenômeno e atinge maciçamente os pobres, os negros e a classe trabalhadora, historicamente explorados pelo colonialismo (BOLSANELLO, 1996). Sobreviverão aqueles mais fortes, capazes de adaptar-se ao ambiente (e, aqui, sobreviver à pandemia).

As especificidades das favelas e periferias não são algo novo. Há locais onde o abastecimento de água é irregular e a coleta de lixo é praticamente inexistente. Conforme descrito no blog Maré Online: na realidade das favelas, onde muitas casas são pequenas com poucos cômodos e muitas pessoas, sem circulação de ar, é quase impossível o respeito às medidas de prevenção propostas pelos órgãos nacionais e internacionais de saúde. No começo da quarentena, já se alertava sobre o risco de convulsão social das favelas, com a perspectiva de empobrecimento muito forte: 7 em cada 10 famílias das favelas teriam suas rendas comprometidas numa primeira análise. São muitos motivos para isso, mas destacamos os que mais nos chamam a atenção: as relações de trabalho são completamente precárias, tendo muitos trabalhadores em relações informais de trabalho, autônomos, terceirizados ou prestando serviços por meio de plataformas. Na verdade, há toda uma economia baseada na prestação de serviços que sustenta muitas das famílias desses locais: manicures, pedreiros, padeiros, empregadas domésticas. Imediatamente, um obstáculo para o atendimento às orientações de quarentena e isolamento social, já que "o pão de cada dia" depende do trabalho, também de cada dia. Toda essa realidade, escancarada pelo coronavírus, existe desde sempre nesses locais. Como ressalta Dornelles (2017):

O que se verifica, principalmente em tempo de capitalismo de barbárie, como o adotado pela ordem neoliberal, é que os contingentes humanos que se encontram em situação de vulnerabilidade, de exclusão social, são cada vez maiores, em todo o mundo. Compõem uma multidão de seres humanos que passam a ser identificados como inimigos da ordem e perigosos, cuja existência e condições de vida não são tratadas como resultado deste modelo de acumulação de capital, mas sim como segmentos a serem criminalizados e punidos (p. 123).

As favelas surgem em função de uma realidade desigual que se impõe aos trabalhadores, de limitação do acesso ao direito à moradia digna. E não foram poucas as tentativas pela história das favelas que os moradores fizeram de responsabilizar o poder público pelas melhorias, mas também não foram poucas as vezes em que o poder público atuou incansavelmente na destruição de favelas, na demolição de casas e no rompimento de diálogos democráticos com a população. Assim, a lógica do “nós por nós” é imperante em muitos desses territórios.

O novo coronavírus além de causar mudanças sanitárias e econômicas, visibiliza o que vem sendo posto como prioridade e desafia a humanidade na construção de uma nova realidade; neste sentido a pandemia pode ser considerada como um acontecimento, na visão foucaultiana, e a ameaça de contágio pelo SARS-CoV-2 como um poderoso dispositivo. Foucault (2008) afirma o acontecimento como aquilo que ao irromper provoca descontinuidades no âmbito do saber-poder, tornando certo discurso possível ao fazer mudar a épistème de uma época. E, quanto aos dispositivos, são máquinas, redes, sempre parciais, momentâneas (nunca universais e eternas) que respondem por certos efeitos na medida em que se encontram em processo contínuo de produção de objetos (BARROS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Dispositivo, portanto, que questiona o direito à vida, o direito à dignidade (DUDH, 1948), questiona a função do Estado, nossa capacidade empática e os nossos processos de escolha diante da ameaça de morte. O coronavírus dá visibilidade às distintas realidades marcadas pela desigualdade social, como no caso do Brasil. Como ressalta o filósofo português José Gil (2020), a pandemia não é sobre o medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.

#COVID19NasFavelas[editar | editar código-fonte]

A cidade do Rio de Janeiro é a que possui a maior quantidade de pessoas morando em favelas no país, representando 22,03% da população do estado. Comparando o Censo de 2010 com o Censo 2000, ocorreu um crescimento de 27,5%. Logo, considerando as proporcionalidades, é possível que tenhamos atualmente mais de 30% de pessoas habitando as favelas na capital do estado. Desde o início da pandemia na cidade do Rio de Janeiro, datada de 12 de março de 2020, a partir do início da transmissão comunitária, até a finalização deste manuscrito (17 de maio), dois meses depois, não há um plano de contingência específico por parte do governo federal, estadual e nem municipal para contenção da contaminação pelo vírus nas favelas, ainda que haja importantes proposições legislativas nesse sentido, como o PL 1000/2020 na Câmara Federal; 1755/2020 na Câmara dos Vereadores do Rio; 2200/2020 e 2568/2020 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Todos os PLs versam sobre planos de atenção emergencial às favelas, na compreensão da importância de que, diante da pandemia, o Estado assuma a responsabilidade por garantir o mínimo para uma quarentena com dignidade. Isso passa por questões contempladas nos três PLs citados inicialmente, como acesso a água, comida e renda mínima, mas também por questões como a que é apresentada no último PL, apresentado à ALERJ, que prevê a proibição de operações policiais nas favelas enquanto durar a pandemia e o lockdown. Em maio, grandes operações voltaram a acontecer, com saldos de letalidade absurdamente assustadores. No Complexo do Alemão, em uma única operação, foram 12 pessoas assassinadas pela polícia, por exemplo.

Enquanto isso, na ausência de ações efetivas dos governantes e com o aumento progressivo de casos e mortes, outro setor das favelas também tem apresentado medidas de “combate” ao coronavírus. O tráfico de drogas, em vários locais, fez recomendações fortes pelo isolamento social, proibindo a ocupação de vias públicas dentro de favelas e aglomerações. Em Acari, o tráfico de drogas estaria usando carro de som, chamado de Carro da Lapada, para avisar aos moradores que não é tempo de férias, mas de proteção, definindo os parâmetros para o toque de recolher e indicando quem está habilitado a sair nas ruas. Esse carro também estaria monitorando aglomerações e fazendo ameaças - as lapadas, gíria local para falar de espancamentos - no caso de descumprimento das recomendações, visto que “se você não abraçar o papo, o papo te abraça”.

Compreender a realidade reticular e multidimensional nos ajuda a avançar numa postura mais propositiva sobre a realidade das favelas, que são territórios heterogêneos, onde muitas realidades e marcadores sociais coabitam. É importante entender também que problematizar a realidade das favelas não significa abordar somente questões relativas à precariedade e à pobreza. Os moradores das favelas brasileiras reúnem um poder de consumo de R$ 119,8 bilhões por ano, massa de rendimento que supera países como o Uruguai, segundo a pesquisa “Economia das favelas” realizada pelo Instituto Locomotiva e DataFavela. Diante desse cenário, cabe ressaltar a potência da favela no que tange ao poder de resistência, articulação comunitária, solidariedade e engajamento social. Acompanhando o percurso de ações tomadas em relação ao coronavírus são notórias as articulações realizadas nesses territórios a ponto do reconhecimento em 31 de março de um dos ministros da saúde do período, Luiz Henrique Mandetta:

Parabéns as comunidades do Rio de Janeiro. Parabéns as favelas, as comunidades e eu as conheço. Estudei aí. Estudei aí. Fiz ação voluntária tanto ali no Vidigal, quanto na Rocinha quando eu era acadêmico de medicina. Outro dia, fui lançar o programa de doenças sexualmente transmissíveis lá na Rocinha com jovens de comunidade. Parabéns Maré, parabéns pelo trabalho que vocês estão fazendo e o exemplo de dignidade, de comportamento, de inteligência. Da aula de sabedoria que vocês estão dando. Na dinâmica, Heliópolis em São Paulo, todas elas. Paraisópolis. Todas elas. Eu falo do Rio de Janeiro porque fiquei 10 anos naquela cidade.

Em 19 de março, parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde, liderado pelo ministro acima citado, e pelos governantes brasileiros diante da pandemia que se aproximava do nosso país não incluíam as favelas. A primeira tentativa de organização das demandas desses territórios veio, não por acaso, da coalizão entre lideranças do Complexo do Alemão, da Cidade de Deus, do Complexo de Favelas da Maré, da Rocinha e do Santa Marta, com pesquisadores da UFRJ, PUC-Rio e UERJ, em diálogo com a FIOCRUZ. O plano reúne iniciativas na dimensão preventiva, indica necessidade de protocolos para atendimentos médicos, aponta parâmetros para a coordenação das ações territoriais e defende a construção de um Gabinete de Crise de Atenção às Favelas. Ainda que, quando o plano foi apresentado e entregue ao poder público, ações pontuais já estivessem sendo feitas por esse, a articulação de um plano que pensasse as favelas na sua amplitude e diversidade e propusesse saídas organizativas e políticas para o enfrentamento à pandemia só se deu no encontro de pesquisadores (majoritariamente de instituições públicas) com lideranças territoriais. O papel das universidades e institutos de pesquisa nesse momento passa pela reafirmação da sua função social e fortalecimento das políticas que estejam alinhadas com o interesse da sociedade brasileira, sem perder de vista a necessidade de tratar desigualmente os desiguais na medida de sua necessidade; ou seja, na atenção aos princípios de isonomia para o acesso aos direitos, assegurado pela nossa Constituição Federal de 1988.

Uma das principais medidas propostas no plano supracitado é referente à articulação de uma rede de apoio social. A partir da compreensão de que a pandemia traz consigo o empobrecimento para muitas famílias, torna-se essencial a defesa de medidas de solidariedade, como a distribuição de cestas básicas, água potável, máscaras e luvas para proteção individual, materiais de higiene e afins, mas também a luta por políticas públicas de acesso à renda, como a liberação do auxílio emergencial. Ainda em abril, a Câmara dos Deputados votou e aprovou a liberação do benefício, cujos valores variam entre R$ 600,00 e R$ 1200,00.  O início do pagamento da primeira parcela do auxílio emergencial deu-se em 09 de abril; dentre as burocracias estabelecidas para o acesso ao benefício, estavam o acesso à internet, por meio de site e aplicativo,  e o uso de conta bancária: dois pontos dificultadores considerando a realidade brasileira. O resultado foi a formação de imensas filas e aglomerações nas agências da Caixa Econômica Federal e Lotéricas, o que fez com que muitas famílias passassem semanas tentando receber seu benefício, sem sucesso.

As desigualdades sociais aqui discutidas possuem íntimas relações com processos políticos históricos e contemporâneos, que existem desde muito antes da pandemia e existirão ainda após seu fim. Dessa forma, é possível que a vivência da pandemia no Brasil potencialize uma crise sem precedentes. O Ministério da Economia divulgou em uma perspectiva tida como otimista, uma queda de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB) Instituições financeiras como o JP Morgan e BTG Pactual, projetam queda de 7% no PIB brasileiro. Evidencia-se que considerando a expectativa atual do Governo Federal, o país irá sofrer a maior queda do PIB na história, visto que valores próximos ocorreram somente no ano de 1981, com a diminuição de 4,39% no valor do PIB.

Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal, Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4%. Há uma série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado. Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia. Dados revelam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros com menos negros, em maioria absoluta. Ainda assim, o Ministério da Saúde responde que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número de testes a partir dos grupos raciais. Segundo dados da ONG Open Knowledge Brasil, apenas o Espírito Santo tem feito os boletins epidemiológicos divulgando os dados referentes ao marcador raça/cor. No Rio de Janeiro uma ação judicial foi protocolada para determinar que os marcadores de raça/cor de infectados e mortos fossem registrados, para que se possa produzir dados mais concisos sobre os grupos vulneráveis à pandemia. A decisão do Juiz Federal Dimitri Wanderley responsabiliza a União pela expedição de diretrizes para o preenchimento obrigatório dos dados em todo o país. A decisão ainda não surtiu efeito nos resultados que são divulgados. Sem orientação geral e supervisão, seguimos operando na lógica de ocultação de dados para a construção de realidades alternativas e falsas, onde marcadores de raça e classe não influenciam nos casos de morte e contágio. Isso se repete em várias outras regiões de favelas ou periferias, não só no Rio de Janeiro.

É importante marcar, nesse momento, que a subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no caso de favelas e periferias, dado que além da superlotação da rede de saúde pública, o acesso aos testes ainda é muito caro na esfera privada. Sem o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, expansão das testagens e aumento de vagas nos Centros de Tratamento públicos, é evidente que a população mais afetada será a mais pobre. Ao mesmo tempo em que os dados oficiais são divulgados, os moradores têm conduzido suas próprias pesquisas sobre contaminados e mortos, tal como medidas de combate às fake news. Em 11 de maio, a mídia comunitária, Voz da Comunidade, do Complexo do Alemão, lançou um aplicativo com informações sobre o novo coronavírus no intuito de viabilizar o acesso em tempo real a informações confiáveis e verificação de notícias, o aplicativo foi realizado com financiamento do Consulado Americano no Rio de Janeiro. No que concerne à confiabilidade das informações em relação aos contágios ocorridos na Rocinha e na Maré, há estudos que apontam que o número de mortes pode ser até três vezes maior que o que foi divulgado pelos órgãos oficiais. As mortes nesses territórios já superam os números de muitas cidades na região metropolitana do Rio de Janeiro, como Niterói ou São Gonçalo. A articulação de redes para a defesa e garantia de direitos da população periférica e favelada tem sido forte. No início de abril, moradores da favela do Santa Marta higienizaram ruas, a partir de articulação com o empresariado local, como afirma um morador: "Conversei com uns amigos meus, eles pagaram os equipamentos e eu comprei luva, materiais simples, e consegui algumas doações para materiais químicos, que vão acabar. A nossa favela é a primeira do Brasil sanitizada com os mesmos equipamentos da China, pelos moradores", e que outras favelas fizeram contato para aprenderem a usar os equipamentos. Outros atores, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público Estadual, também realizaram importantes ações; em 08 de maio, quase dois meses após o começo da pandemia, as entidades conseguiram na justiça uma liminar que obriga o poder público a regularizar o abastecimento de água nas favelas. São pequenas grandes vitórias como essa que caminham rumo a um horizonte onde a favela possa viver com dignidade.

Campanhas de arrecadação de alimentos têm sido mobilizadas por várias instituições, como a Central Única das Favelas (CUFA) e o Instituto Marielle Franco, este lançou um mapa para dar visibilidade às iniciativas de combate contra o coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. As mobilizações também têm ocorrido com frequência através das lives musicais em parceria com artistas e empresas privadas. No dia 02 de abril, foi lançada a campanha Mães de Favela, pela CUFA, construída a partir de pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva e Data Favela, que salienta que as favelas do Brasil têm 5,2 milhões de mães, na qual mais de 70% ficará sem renda durante o isolamento social. A pesquisa publicada na BBC News Brasil, ressalta o lugar de vulnerabilidade e o papel social das mulheres moradoras de favela no sustento e cuidado dos seus filhos e idosos, a partir de um olhar interseccional:

Os mais frágeis da sociedade são os moradores de favela. Os mais frágeis entre os favelados são as mulheres. E os mais frágeis entre as mulheres são as mães. Por que? Porque elas cuidam dos filhos, muitas vezes trabalham no emprego informal, costurando, fazendo unha, e ainda cuidam dos velhos. Porque todos os velhos, 90% dos idosos das favelas, são as mulheres que cuidam: sejam noras ou sejam filhas.

Essa situação é um concreto exemplo do que expressa o conceito de necropolítica, formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018). No Rio de Janeiro, a expressão já vem sendo explorada pelos que discutem a questão da política de segurança pública, da guerra às drogas, do extermínio da juventude negra e de tantos outros assuntos que estão relacionados ao modo pelo qual o Estado se relaciona com os territórios de favela e periferia. Acontece que, aplicada ao momento de pandemia, podemos colocar em outro patamar analítico o conceito, expandindo a compreensão de um governo da vida que se faz presente nesses locais exterminando das maneiras mais convencionais (pelas operações policiais ou encarceramento em massa) mas também a partir de uma construção histórica marcada pelas ausências, pela desresponsabilização do Estado, pelos impedimentos ao desenvolvimento, pela falta de investimento e planejamento específico, pela ocultação dos dados sobre a realidade de um povo. Ganha um contorno especial, portanto, a compreensão de uma política de morte que se opera ativamente, ao passo que não se garante as condições dignas para o exercício do cuidado, que muitas vezes contradiz as orientações dos órgãos de saúde e especialistas; mas que também se apresenta numa dimensão mais ardilosa, no exercício da desresponsabilização sobre a vida dos mais vulneráveis, no desinvestimento que tem sido feito nos últimos anos nas medidas de proteção social, na desregulamentação do mundo do trabalho e no congelamento do investimento em áreas sociais como ciência e tecnologia e saúde pública, um dos mais duros efeitos dos tentáculos neoliberais na governamentalidade estatal.

Considerações finais[editar | editar código-fonte]

A pandemia tem sido um importante dispositivo para fazer ver e falar a dura realidade de desigualdade das favelas e periferias no nosso país. Mas, será que ela coloca mais uma vez no mapa essas favelas? A pandemia faz o Brazil descobrir que há gente que passa fome no Brasil? Vamos lá: a “redescoberta” das favelas que tem acontecido na grande mídia e em ações governamentais não acontece exatamente pela preocupação com a favela e seus moradores em si. Lá no começo da pandemia, algumas pessoas falavam que o grande problema do Brasil seria as favelas, em comentários puramente racistas, numa lógica que imaginava que as favelas contaminariam o restante do país. Essa “redescoberta” então tem se dado numa preocupação que é mais intensa com os que vivem fora desses espaços do que com os que vivem ali. Como se favelados e periféricos fossem o grande perigo para a expansão do coronavírus. Será que essas análises consideram que os rastros da primeira morte mostram que o caminho é o oposto, muitas vezes? Ou que os dados indicam que, ainda que "quem pague a conta" sejam os mais pobres, negros, favelados e periféricos, a culpa do contágio não está nessas pessoas, mas em governantes que resistem em lidar com sua responsabilidade e sequestraram nosso país para interesses privados, privatistas, de poucos (LÖWY, 2020). As favelas, na contramão, são o “setor social” que mais está organizado e ativo no combate ao coronavírus. A análise do mapeamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, revela dezenas de territórios organizados em ações territoriais. Ao mesmo tempo, a iniciativa de pensar políticas públicas para o enfrentamento ao caos que está posto também tem sido das favelas, articuladas em seus coletivos e lideranças. No começo de abril, por exemplo, lideranças da Rocinha entregaram ao governador Wilson Witzel (PSC-RJ) um plano com 17 medidas de combate à pandemia na favela. Além disso, há outros planos comunitários em curso. Em diversas favelas no Rio de Janeiro, como Chapéu Mangueira e Babilônia, há iniciativas de atendimentos psicológicos aos moradores, organizadas por lideranças comunitárias em diálogo com voluntários.

Em tempos de incertezas, o vírus exige de nós paciência, porém “quem tem fome, tem pressa” - essa sentença torna-se um exemplo crucial que demanda reflexões acerca do modo organizativo e, portanto, das desigualdades estampadas na sociedade brasileira.  O coronavírus faz ver as particularidades das favelas e periferias e a negligência do poder público diante das demandas dos mais pobres. Exclusões, habitações precárias, rendas comprometidas pelos trabalhos interrompidos e, pelo que se observa, não se trata apenas de medidas de isolamento dessas pessoas, mas também da suspensão de serviços para prestarem que os impedem de trabalhar. A pobreza se alastra.

Uma preocupação é compartilhada tanto pelos moradores e ativistas quanto pelo poder público. O empobrecimento e a diminuição da qualidade de vida dos moradores de favelas é um grande problema. A maior divergência é sobre as saídas a serem apresentadas: se, por um lado, defende-se a adoção de campanhas de conscientização, lockdown e manutenção do auxílio emergencial, por outro há acenos para saídas que podem provocar ainda mais violações de direitos. O exemplo mais extremo disso é a tentativa de militarização da questão social empreendida pelo Prefeito do Rio de Janeiro, que solicitou uma ação federal para fechar comércios das favelas, apontando, inclusive, que dificilmente conseguirá lidar com o local sem a mediação da Polícia Militar e seu armamento. A demanda de presença que se faz do poder público aqui não passa pelo pedido de mais truculência, mas pela construção de mecanismos que garantam ao mesmo tempo a proteção integral às famílias nesses territórios e seu direito à quarentena com dignidade (com distribuição de itens de alimento, higiene, sanitização das vias públicas, liberação de redes de internet, liberação de auxílio emergencial) e a construção de planos de acesso aos serviços de saúde por todos que demandarem, com testagem, orientação, internação e cuidados para todos. Uma vida saudável tem sido incompatível com a estrutura capitalista posta. Em condições de quarentena os sujeitos moradores de favelas e periferias padecem e mais do que nunca, apontam que a igualdade não existe, nem perante a lei.

Apesar de tanto descaso e violação de direitos, as favelas reconhecem suas necessidades e ainda mais sua força; mobilizam seu capital humano e desenvolvem ações de cunho preventivo e emergencial, assim como solicitam e, à sua maneira, convocam atores importantes para responsabilizar o poder público na garantia de direitos à vida, enquanto esse aparenta nada entender sobre equidade. Fica evidente o importante papel do associativismo comunitário, seja nas doações, seja na proposição de políticas públicas, constituindo-se um ponto de inflexão, um desvio no curso normal das subjetividades moduladas pelos princípios do neoliberalismo, com o indicativo de que as melhores apostas de saídas para a crise são organizadas no encontro com o coletivo. Boaventura Sousa Santos aponta que a reinvenção da democracia passa por uma expansão da democracia nessa dimensão comunitária, nos bairros, na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, no combate aos ideais tão fortes de empreendedorismo e competitividade que hoje imperam. As saídas encontradas pela população que sofre são as ações de solidariedade, de conscientização, de reivindicação específica, as quais são extremamente importantes, no entanto, só o Estado é o garantidor de direitos por meio da criação de políticas públicas localizadas.

Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e quem morre, não só no estado do Rio de Janeiro, apesar desse fazer parte do palco. Ressaltamos que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades distorcidas, sendo que tais marcadores  não têm sido levados em conta pelas estatísticas e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas  – o Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da desigualdade.

Referências[editar | editar código-fonte]

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ZIZEK, Slavoj. Coronavirus es un golpe al capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del comunismo. In: AMADEO, Pablo (Org.) Sopa de Wuhan. Buenos Aires: Aspo Editorial, 2020, p. 21-28.

  1. Luana Almeida de Carvalho Fernandes é Psicóloga, especialista em Responsabilidade Social e Gestão de Projetos Sociais, mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: luanaacfernandes@gmail.com
  2. Caíque Azael Ferreira da Silva é Bacharel em Psicologia e discente do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CAPES). Pesquisador no Dicionário de Favelas Marielle Franco (Fiocruz). E-mail: caiqueazael12@gmail.com
  3. Cristiane Dameda é Psicóloga, especialista em Proteção de Direitos e Trabalho em Rede, mestra em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CNPq). E-mail: crisdameda@gmail.com.
  4. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho é Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica, mestre e doutor em Psicologia. Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia e ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq). E-mail: ppbicalho@ufrj.br