Dois anos sem Emily e Rebecca (matéria)
Matéria publicada no portal Rede de Observatórios da Segurança, iniciativa de instituições acadêmicas e da sociedade civil da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, sobre as mortes de Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos. As crianças negras foram atingidas, juntas, por disparos de arma de fogo enquanto brincavam na porta de casa, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro. O texto foi escrito pela jornalista Nathália da Silva em 4 de dezembro de 2022, dois anos após o crime inaceitável que vitimou as meninas e dilacerou suas famílias.
Autoria: Nathália da Silva[1]
Matéria publicada no portal Rede de Observatórios da Segurança (ver Referências).
Matéria[editar | editar código-fonte]
No dia 4 de dezembro de 2020, duas crianças pretas foram mortas pela polícia em Duque de Caxias. Um único tiro de fuzil matou as primas Emily, de 4 anos, e Rebecca, de 7 anos, enquanto brincavam na porta de casa. Após dois anos, nenhum policial envolvido foi responsabilizado. Neste ano, dois traficantes foram presos pelo homicídio sem ter qualquer envolvimento com o crime.
As meninas formavam uma dupla dinâmica. Rebecca, por ser a mais velha, era conhecida por ser a líder do grupo dos primos. Era uma criança inteligente, solidária e sempre muito cuidadosa com os outros pequenos da família.
Já Emily, era a felicidade em forma de criança: uma menina levada, que adorava ir nas festas dos vizinhos e, claro, aprontava muitas travessuras.
Ambas eram as únicas filhas meninas de seus pais. Naquele mês de dezembro, Emily faria 5 anos e teria sua primeira festa de aniversário. A fantasia de princesa Moana que seria usada na comemoração foi a roupa com que a menina foi enterrada. Após sua morte, a mãe Ana Lúcia entrou em depressão e parou de andar por um tempo.
“A gente sobrevive. Minha irmã entrou em uma depressão profunda. Agora que ela voltou a andar. Ela entrou numa depressão tão grande que pensei que ela fosse morrer, de tão ruim que ela ficou. Eu tinha medo de ficar perto dela. Eu pensava: ‘Essa criatura vai morrer na minha frente’. Psicologicamente arrasaram com a vida da família inteira”, conta Lídia, avó de Rebecca e tia de Emily.
Naquela noite, Lídia estava chegando do trabalho quando ouviu os disparos. Ela afirma que viu o carro da polícia partindo do local e logo depois viu o corpo de Emily na calçada de casa. O tiro atingiu a cabeça de Emily e se alojou no fígado de Rebecca.
“Quando eu estava descendo do ônibus eu ouvi os tiros muito perto de mim. O ônibus saiu e eu vi carro da polícia. O tiro partiu de um único lugar. Não teve confronto. De onde eles estavam dava pra ver as crianças, tinha luz acesa. Quando eu atravessei vi a Emily sem a metade da cabeça. Nisso, a Renata [mãe da Rebecca] sai de casa dizendo que mataram a filha dela. Até então não tinha visto minha neta.” relembra Lídia.
Rebecca não morreu na hora. Lídia ainda presenciou seus últimos momentos de vida. No mesmo momento, pegou a menina no colo e a levou para o hospital. Os policiais, que atiraram de dentro do carro, não prestaram socorro. Já na UPA de Sarapuí, outros agentes debocharam e tiraram fotos da família.
“Eles [policiais] não deram assistência nenhuma. A única coisa que eles fizeram foi acusar a gente, perguntar se meu filho [pai da Rebecca] tinha passagem pela polícia, se tinha rixa com bandido ou se devia alguma coisa na boca de fumo. Essa era a única preocupação deles. As duas crianças mortas não chamavam atenção deles. Só não prenderam meu filho porque a gente estava perto”, conta Lídia.
Os cinco policiais envolvidos são sargentos. O laudo pericial feito a partir da reconstituição afirma que o tiro não partiu dos policiais. No entanto, Lídia conta que o próprio perito afirmou no dia da reprodução simulada que o tiro partiu sim da polícia, mas que o laudo seria feito por outra pessoa que passaria visão dela sobre o caso.
“Ele foi muito sincero comigo. Disse: ‘Dona Lídia, tudo que a senhora está me falando aqui e todo mundo está contando é verdade. O tiro partiu daquela direção e realmente a bala é da polícia. Isso é tudo que posso dizer para senhora. Agora quem vai fazer o inquérito do que eu estou vendo é o delegado. Ele quem vai dizer pra senhora o que aconteceu. É a análise dele sobre o caso quem vai definir. Eu sou só perito’. Ele era muito jovem. Eu até entendo que passaram por cima dele.” revela Lídia.
Em agosto de 2022, dois traficantes foram presos pela morte das meninas. Leandro Santos Sabino e Lázaro da Silva Alves foram acusados de abrir fogo contra policiais e, consequentemente, atingiram as meninas por engano. A acusação não é coerente com o acontecimento.
“A gente mora em comunidade sim. Eles não são certos sim. A gente sabe que eles são errados. Mas essa culpa eles não têm. Eles não têm culpa da morte das meninas. O que eu infelizmente sou obrigada a dizer sobre a polícia é: como um carro de polícia com cinco oficiais [do exército] está parado dentro de uma favela?”, desabafa Lídia.
Conjugar as vivências de Emily e Rebecca no passado é o ápice da violência. Elas não tiveram acesso ao futuro por conta violência do Estado. A certeza da impunidade dos agentes perpetua o sofrimento e adoecimento dos familiares das vítimas. As polícias sabem muito bem quem destrói. Seguiremos lutando por verdade, justiça e memória!
Ver também[editar | editar código-fonte]
- O futuro negro nas mãos de um Estado branco (artigo)
- Violência urbana, Segurança Pública e Favelas - O Caso do Rio de Janeiro Atual (resenha)
- Racismo, motor da violência (relatório)
Notas[editar | editar código-fonte]
- ↑ Nathália da Silva é jornalista antirracista e faz parte da equipe de comunicação da Rede de Observatórios.