Origem da polícia no Brasil

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 22h51min de 9 de julho de 2024 por MatheusdeMoura (discussão | contribs)

A modernidade funda o Brasil enquanto nação, funda a raça enquanto mecanismo de controle e diferenciação social hierárquica e funda a escravidão mercantilista. A chibata, a tortura a céu aberto e todas as formas de violência contra escravizados que conhecemos eram mecanismos de controle explícitos e desavergonhados — inclusive discursivamente contra os negros escravizados no Brasil, pois a escravidão era tida como um direito, assujeitando os negros africanos e descendentes destes ao local sub-humano de propriedade doutrem. Se a escravidão é fundante da nossa modernidade, a tortura é a mão que empurra nossa histórica enquanto nação em permanente processo de manutenção do genocídio negro. A dominação do colonizado, na colônia, segundo Frantz Fanon[1], se dá pelo uso da violência, uma vez que este deve ser escravizado para fins econômicos mercantis: “Como se vê, o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não mitiga a opressão, não oculta a dominação… O intermediário leva a violência às casas e às cabeças do colonizado.”

Autoria: Matheus de Moura

SOBRE

O policiamento no Brasil surgiu no século XIX, quando as revoltas de escravizados se tornavam cada vez mais comum, numa ebulição social que culminou, em 1888, na mais tardia abolição da escravatura negra nas Américas. O medo da disrupção do sistema de dominação calcado no subjugamento do outro enquanto objeto e não-humano fez com que os senhores donos de escravizados exigissem ações coesas por parte do estado colonial, querendo deste o avanço de um aparato de segurança para, justamente, assegurar suas propriedades. Em outras palavras, o estado deveria gerir mais e mais o “direito” do senhor de conter e deter pessoas negras enquanto escravizadas e também suas propriedades materiais inanimadas (fazenda, objetos etc). O medo desses senhores não era apenas por uma possível erupção de revoltas pela libertação negra, mas também de todos os trabalhadores pobres não-escravizados (negros alforriados, brancos, indígenas e pessoas fruto das diferentes miscigenações que ocorriam já na época). Existia, segundo explica o historiador Thomas H. Holloway[2], recorrentes afinidades entre os escravizados e os despossuídos livres, o que gerava possibilidades de conspiração contra os latifundiários e burgueses.

ANTES DA POLÍCIA, O CALABOUÇO

Em 1693, foi decretada a construção do Forte de São Tiago da Misericórdia[3], ao pé do Morro do Castelo, no Centro da capital carioca. O local, que serviu de base para inúmeras outras construções de função similar, tinha por objetivo rogar punições físicas severas contra escravizados fugidos ou àqueles que o senhor de escravos considerasse merecedor de punição — inicialmente sem precisar de grandes justificativas.

A tradutora de Machado de Assis para o inglês, Flora Thomson-DeVeaux, em um ensaio para a revista Piauí, explica: “O alvará proibia que os senhores de escravos usassem instrumentos de ferro nos castigos e que condenassem os escravos a cárcere privado. Debret, referindo-se à aplicação de tais castigos pelo poder público, informa que todos os dias, pela manhã, numerosas filas de negros escravizados eram conduzidas ao Calabouço. Por 100 chibatadas o chicoteador recebia ‘o direito da pataca’. Havia duas motivações para isso, ao que parece. Primeiro, era tecnicamente ilegal os senhores açoitarem seus escravos. Consigo antever o ceticismo dos leitores, mas, de fato, não faltaram medidas que tentassem limitar a violência de cidadãos comuns a seus cativos. “Que muitos senhores não obedeciam à lei fica óbvio a partir dos registros policiais”, escreveu Karasch, “mas outros se ajustavam e pagavam à cidade para castigar seus escravos.” Há registros de que muitos escravizados já chegavam à prisão cobertos de feridas.

Além da ilegalidade da tortura doméstica, havia outro motivo para que os senhores delegassem os castigos à máquina do Estado. O barulho. Os vizinhos reclamavam aos montes do insuportável som dos escravizados sendo torturados em plena noite e madrugada. Regular a punição era também, de certa forma, uma instituição do controle de relações cíveis. O estado, que construiu um país com base na escravidão, era máquina de tortura terceirizada do capital escravocrata: “Só muito mais tarde, por volta de 1832, foi instituída a norma de que os senhores deveriam especificar qual delito o escravo teria cometido: não precisavam fornecer provas do crime, bastava relatar a suposta infração. Os senhores tinham que pagar pelo serviço – não apenas pelos açoites e pelo tratamento médico subsequente, mas também por acomodação e alimentação”, explica a tradutora de Machado.

Policiamento

Divisão Militar da Guarda Real de Polícia

O policiamento oficial do Brasil começa com em Lisboa, em 1801, criada pelo príncipe regente português lá em Portugal[4]. A inspiração foi o modelo francês pós revolucionário. Quando a família real se estabelece no Brasil em 1808, trazem consigo uma versão da polícia de Lisboa a ser aplicada no novo território nacional. Chamava-se a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. Com o intuito de perseguir escravizados fugidos, impedir conspirações entre trabalhadores pobres e escravizados e controlar crimes urbanos e rurais, a primeira experiência propriamente policial brasileira foi um desastre por se basear no recrutamento forçado e num sistema salarial de baixíssima remuneração. De origem humilde e obrigados a exercer aquela função, embora sem infraestrutura mínima para suporte, os policiais muitas vezes conspiravam contra a Coroa e se aproximavam dos escravizados e despossuídos, pois, no fim, tinham mais em comum com estes do que com a elite que lhes impuseram aquela função. “Um desses momentos de reconhecimento] para com aqueles a quem deveriam reprimir ocorreu em julho de 1831. No conturbado contexto da abdicação de d. Pedro I, onde as ruas da Corte tornaram-se palco de diversos motins e distúrbios populares, soldados do 26º Batalhão de Infantaria do Exército amotinaram-se e, após controlada a rebelião, o governo da Regência decidiu por transferi-los para longe da capital. Em 14 de julho, enquanto os rebeldes do 26º Batalhão eram transportados para longe do Rio de Janeiro, os soldados da Guarda Real, contrariando seus superiores, deixaram os quartéis e tomaram as ruas de assalto, saqueando lojas, atacando os passantes e matando diversas pessoas, marchando, em seguida, para o Campo de Santana, acompanhados de diversos civis defensores do liberalismo radical e do nativismo antilusitano… Formando uma multidão de cerca de 4 mil pessoas, desafiavam as autoridades constituídas e exigiam a volta do 26º Batalhão para a Corte e o fim dos castigos físicos para os militares.”[5]

Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte

Com o fiasco de 1831, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia[6] foi dissolvida, sendo substituída pelo Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte. Desta vez, o trabalho vinha da vontade própria de homens livres, entre 18 e 40 anos, sendo eles relativamente bem remunerados em grande maioria. Além disso, as faltas disciplinares pararam de ser punidas com açoites, como ocorria na formação anterior. “O patrulhamento da cidade se iniciou em novembro de 1831, sendo realizado pela Infantaria nas ruas da cidade, e nos subúrbios pela Cavalaria.” Nesse período, negros escravizados e libertos eram perseguidos por qualquer forma de manifestação cultural e política. Candomblé? Perseguição. Capoeira? Perseguição. Reunião em tabernas? Perseguição? Religião pode servir para conspiração, luta pode servir para ataques em rebeliões, confraternização pode também servir para conspiração. Ou seja, para a polícia, qualquer forma de convívio e diversão de negros e até mesmo pobres próximos destes poderia ser visto como motivo para uma contra-ação violenta por parte do estado. Isso sempre na lógica do trabalho de policiamento de ronda e de ação de repressão quando acionados. A partir do Segundo Reinado (1840-1889), essa polícia se tornou também um braço armado forte o suficiente para domar rebeliões em outras províncias, como SP e MG. Parte da tropa policial até participou da Guerra do Paraguai. O Corpo de Guardas Municipais mudou de nome para Corpo Policial da Corte em 1858, sem mudar quase nada na estrutura. Em 1866, é criada a Guarda Real, com objetivo de auxiliar o Corpo Policial da Corte com rondas diárias, porém com um foco maior em prevenção, trabalhando com aviso a cidadãos para que evitassem situações que pudessem propiciar crimes. “O regulamento para o serviço da Guarda Urbana recomendava, entre outras medidas preventivas, que seus patrulheiros cuidariam para que a cidade fosse iluminada na hora então determinada, advertiriam os proprietários dos botequins quanto ao horário de fechamento dos seus estabelecimentos, dispersariam o ajuntamento de escravos nas tabernas, preveniriam os moradores que por ventura esquecessem portas ou janelas térreas de suas casas abertas. Além disso, podiam interrogar os indivíduos que estivessem em atitudes suspeitas, isto é, parados em frente a portas, muros ou cercas e efetuar a prisão dos presumíveis suspeitos que estivessem portando objetos ou volumes.”

Corpo Militar da Polícia da Corte

1866 também foi a virada do Corpo Policial da Corte para o Corpo Militar de Polícia da Corte. A Guarda Urbana, que serviria de suporte para o agrupamento militar da polícia, atuava à paisana, dando a base para o surgimento da Polícia Civil. O alistamento passou para homens entre 16 e 50 anos de idade. “Na década de 1880, o novo regulamento para o Corpo Militar de Polícia da Corte, baixado pelo decreto n. 9.395 de 7 de março, previu que essa força seria composta por 1.008 homens e 182 cavalos, formada por oito companhias, sendo duas de cavalaria e seis de infantaria. Podiam assentar praça nessa corporação, os cidadãos brasileiros de boa conduta que possuíssem vigor físico para o serviço, com idade de 18 a 45 anos. Os estrangeiros poderiam se engajar desde que tivessem pelo menos dois anos de residência no Brasil.” Até o fim do período imperial, a exigência de idade para servir havia mudado, o número de praças aumentado para 1487, com 315 cavalos, e ser alfabetizado passou a ser exigência para integrar a corporação.

VER TAMBÉM

Chacinas em favelas no Rio de Janeiro

Linha do tempo das principais chacinas no Rio de Janeiro

A história sociojurídica das favelas cariocas