Prisões indevidas e inocentes encarcerados
Cotidianamente pessoas negras e moradoras de favelas são criminalizadas no Brasil. Em meio a diversas situações de racismo, a experiência prisional se torna uma preocupação iminente - principalmente para os homens negros - mesmo nas situações em que nenhum crime tenha sido cometido. Nos últimos anos, algumas tecnologias, como o reconhecimento facial, ou mesmo o reconhecimento fotográfico, contribuíram para que pessoas negras fossem presas de forma indevida. Este verbete pretende apresentar alguns desses casos.
Autoria: Kharine Gil
Relatório: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ)
A DPE-RJ produziu um relatório feito por meio de inquéritos de 2023, em que foram revisadas 109 investigações sobre roubos que ocorreram entre janeiro de 2022 e junho de 2023 e resultaram em prisões. A pesquisa foi realizada com o objetivo de verificar se a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estava sendo cumprida, e mostrou como resultado que pelo menos 81% dos reconhecimentos feitos na delegazia foram realizados apenas por fotos.[1]
No entanto, a resolução 484 do CNJ estabelece que o reconhecimento deve ser feito “preferencialmente pelo alinhamento presencial de pessoas e, em caso de impossibilidade devidamente justificada, pela apresentação de fotografias”. Além disso, é determinado que a testemunha ou a vítima descreva o autor do crime antes do momento de reconhecimento, porém, na prática, o estudo demonstra que estas regras não estão sendo cumpridas.[1]
O relatório demonstrou que pelo menos 83% dos erros de reconhecimento aconteciam com pessoas negras e estas pessoas ficavam em média 181 dias presas indevidamente.
Os pesquisadores também observaram que a média de tempo entre a data do crime e a data do reconhecimento em delegacia era de pelo menos 51 dias. Contudo, é possível verificar alguns casos ainda mais alarmantes que isso, como uma diferença de 416 dias (14 meses) entre o ocorrido e o reconhecimento.
Sabemos que estar em privação de liberdade no sistema prisional significa estar em isolamento, além do aprofundamento de vulnerabilidades, muitas vezes em situação de fome e insalubridade. Ninguém deve estar inserido em tal contexto de punição e precariedade, mas é importante ter um olhar atento e ativo para aqueles que sequer cometeram algum tipo de ação ilícita e tiveram a prisão decretada.
Casos de inocentes presos pela polícia
Preso enquanto comprava pão no Jacarezinho (Rio de Janeiro)
O entregador Yago Corrêa de Souza, de 21 anos, foi preso pela polícia após sair de uma padaria no Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Em fevereiro de 2022, Yago, que é um homem negro, foi abordado pela PMRJ ao sair de uma padaria, momento que caminharia de volta para o churrasco onde estava confraternizando. Além dele, outro adolescente também foi detido e ambos foram encaminhados para a delegacia.[2]
Os policiais que realizaram a abordagem encontraram com o adolescente uma bolsa que continha drogas e deduziram que os dois estavam juntos.
Apenas após a prisão, agentes da delegacia observaram que as drogas não estavam com Yago e ele não conhecia o adolescente. Mesmo assim, ele ficou detido por um período na Cadeia Pública José Frederico Marques, em Benfica, aguardando a audiência de custódia.[3]
Ainda que ele tenha sido liberado na audiência, tendo em vista que não havia provas o suficientes para comprovar o crime, Yago ainda responderá pelo processo.[3]
14 vezes acusado de roubo (Rio de Janeiro)
O motoboy Claudio Junior Rodrigues de Oliveira, de 24 anos e morador de São Gonçalo, criou o costume de tirar selfies todos os dias: no momento que acorda, quando chega no trabalho e ao retornar para casa. Esta estratégia de defesa foi elaborada por ele após ter sido acusado de roubo por 14 vezes, em razão de ter sido identificado por fotos em um álbum de suspeitos que está em delegacias.
Ele já foi absolvido por 13 vezes até o momento, pois quando as vítimas o encontraram pessoalmente, não o reconheceram como o autor dos crimes.
Em um destes casos, a vítima não o reconheceu, mas mesmo assim a juíza sentenciou Claudio a uma pena de 5 anos, que foi cumprida por2 anos em regime fechado, 2 anos no semiaberto e 1 ano e alguns meses na condicional.
Claudio relatou em entrevista como a prisão afetou sua vida e seus sonhos:
Eu fazia o terceiro ano [do ensino médio] e estávamos em período de prova, porque fiquei em recuperação. Nisso eu fui preso. Minha vida era normal, tinha planos e sonhos, trabalhava como frentista, saía com meus amigos. Era tranquilo. Pretendia realizar esse sonho que também era da minha avó. Agora, eu não posso prestar concurso público, porque tem uma pesquisa social em uma das etapas. Ter sido condenado me impede de seguir.[4]
Com as acusações injustas, sua família precisou vender quentinhas e fazer rifas de perfumes para suportar as custas processuais que surgiram por meio das acusações. Curiosamente, nas várias audiências que participou, Claudio tomou ciência que algumas vítimas diziam que a foto dele não tinha sequer sido mostrada na delegacia.[5]
Fotos do Facebook no álbum de suspeitos (Rio de Janeiro)
O jovem Danilo Félix, de 24 anos, ficou 55 dias preso por um crime que não cometeu. Em 2020 ele foi abordado na rua, em Niterói, Leste Fluminense, por policiais descaracterizados que o algemaram violentamente enquanto perguntavam seu nome.
Ele tomou ciência de estar sendo acusado de roubo apenas dois dias após ter sido detido, quando já estava acautelado no presídio José Frederico Marques, em Benfica, na Zona Norte do Rio. Nesse momento sua advogada informou que a vítima de um assalto a mão armada o teria reconhecido em uma fotografia no álbum de suspeitos da delegacia. No entanto, Danilo nunca teve passagem pela polícia e por isso não entendeu como uma imagem sua poderia ter parado por lá.
Posteriormente ele descobriu que a foto havia sido retirado de uma postagem do Facebook feita em 2017.
A polícia nunca esclareceu como uma foto oriunda da internet pode ter sido colocada no álbum de suspeitos, e nem mesmo o Ministério Público prestou um posicionamento sobre a situação.
O jovem ficou quase dois meses em privação de liberdade até que em uma audiência a pessoa que o reconheceu anteriormente disse que Danilo não tinha semelhanças com o assaltante. Quando conseguiu sair da prisão descobriu que estava sendo acusado injustamente nas mesmas circunstâncias, mas conseguiu o direito de responder em liberdade e a vítima voltou atrás, dizendo que não havia sido ele. Ocorreu o arquivamento do processo e ele não foi indiciado.[6]
Infelizmente ocorreu pela terceira vez uma acusação indevida para Danilo: o delegado da 76° Delegacia de Polícia (DP) de Niterói não realizou o reconhecimento presencial com as vítimas de um crime e o indiciou a partir de uma fotografia.
A advogada Juliana Sanches assumiu o caso de Danilo e relatou que duas vítimas alegaram não se lembrarem das características dos acusados e chegaram a informar aos policiais na ocasião. Entretanto, foram pressionadas ao reconhecimento, mas o policial envolvido alegou não se recordar do caso.[7]
Acusada por ter o “cabelo parecido" (São Paulo)
Bárbara Quirino, a dançarina também conhecida como Babiy, foi detida em 2018 e ficou em privação de liberdade por um ano e oito meses no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã, Zona Oeste de São Paulo. A jovem de apenas 21 anos foi detida por assalto a mão armada de um carro e jóias, e foi condenada a 5 anos e 4 meses de pena.
Babiy foi confundida com a assaltante supostamente porque a participante do crime seria negra como ela e também teria cabelos cacheados. Entretanto, no momento do crime a jovem estava participando da gravação de um videoclipe no litoral, enquanto o assalto ocorreu na capital de SP.
Sete meses após sua condenação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) absolveu Babiy, que foi definitivamente inocentada das acusações, pois o desembargador observou que não havia elementos suficientes para sustentar a condenação da jovem.
Durante o julgamento, a vítima hesitou. Ao ver Bárbara pessoalmente, apontou com “80% de certeza” que ela era uma das assaltantes, com base na altura, no cabelo e na cor da pele de Bárbara. A juíza considerou que a falta de certeza da vítima não permitiria a condenação da modelo.[8]
Preso por 15 anos (Ceará)
Cícero José de Melo foi preso devido a suspeita de tentativa de homicídio em novembro de 2005, mesmo alegando inocência. Apenas em 2021, 15 anos depois, seu alvará de soltura foi expedido. O jardineiro de 47 anos ficou todo esse período em privação de liberdade sem nem mesmo estar respondendo judicialmente por isso.
O advogado Roberto Duarte afirmou ter tomado conhecimento do caso por meio de outro cliente, que informou sobre um companheiro de cela que estaria preso há mais de uma década sem a existência de processos contra ele e sem ter passado por nenhum julgamento, até mesmo audiência de custódia.
A partir disso o advogado protocolou o requerimento de dados, como tempo de prisão, número de processos, comportamento, origem do interno e momento de eventual transferência para a penitenciária. A 2ª Vara Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte respondeu que não encontrou registros nos sistemas que justificassem a prisão, por isso determinou o relaxamento da prisão.
Após todo esse tempo encarcerado, Cícero está em busca de encontrar com familiares, porque durante todo o tempo em que esteve preso não recebeu visitas.
"Me considero como se eu tivesse sido sequestrado por um crime que eu não cometi nem contra o estado e nem contra a sociedade. Hoje eu fui colocado em liberdade. A doutora do presídio compreendeu o ato injusto que cometeram comigo me mantendo em cárcere. Passei 15 anos preso injustamente e a juíza se sensibilizou e me soltou", disse Cícero.[9]
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