Amar na Maré: A revolta de uma multidão

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Estudo relacionado ao curso Clássicos e contemporâneos sobre favelas, realizado no âmbito do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O curso teve objetivo de debater o lugar das favelas no Rio de Janeiro, estabelecendo diálogos entre estudos clássicos e contemporâneos. Este verbete registra a aula aberta sobre o tema "Amar na Maré: a revolta de uma multidão".

Autoria: Mariana Vieira e Isabela Maia
WALLACE LINO

Aula aberta com participação de Wallace Lino

Resumo[editar | editar código-fonte]

Memorando da aula aberta “Amar na Maré, a revolta de uma multidão” promovida pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia do IESP-UERJ, inserida no programa da disciplina “Clássicos contemporâneos sobre favelas” e ministrada pelo Wallace Lino.

No dia 21 de março de 2024, o Coletivo de pesquisa sobre violências, sociabilidades e mobilidades urbanas (BONDE), em parceria com o Dicionário de Favelas Marielle Franco, promoveu a aula aberta "Amar na Maré, a revolta de uma multidão", ministrada pelo docente convidado Wallace Lino (PPRER-CEFET/RJ). Oferecida na Sala Olavo Brasil, na sede do Instituto, atividade fez parte do programa da disciplina "Clássicos e contemporâneos sobre favelas", lecionada pela Prof. Palloma Valle Menezes no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IESP-UERJ.

Sobre Wallace Lino[editar | editar código-fonte]

Wallace Lino, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Relações Étnico Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.

Pesquisador, ator, diretor, dramaturgo e educador. Formado em licenciatura do teatro pela Escola de Teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é integrante da cia marginal, companhia reconhecida na cena artística contemporânea carioca, com uma trajetória marcada pelo compromisso político de levar a arte da favela para o resto da cidade, do país e até do mundo, desde 2005.

É ainda cofundador do Grupo Atiro, braço pedagógico da cia marginal que oferece aulas de teatro a moradores da Maré, e cocriador do projeto Entidade Maré, fundado em 2020 com objetivo de apresentar a memória cultural LGBTQIA+ na inscrição deste território e da cidade, no qual toda pesquisa se transforma ou resulta em um produto artístico.

Cria da Maré, bairro localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e formado por um conglomerado de 16 comunidades, teve seu território delimitado pelo Decreto nº 7.980/88. Atualmente é considerado um dos maiores conjuntos de favela do Brasil.

Trajetória de trabalhos de Wallace Lino[editar | editar código-fonte]

2021 e 2022[editar | editar código-fonte]

O trabalho “Amar na Maré” e “Noite das Estrelas: uma explosão de amor das grafias cosmopoéticas negras LGBT+ faveladas”, foram publicados nos anos de 2021 e 2022 respectivamente, pós pandemia do coronavírus que assolou o Brasil e o mundo, período em que o Brasil foi fortemente afetado pelos seus efeitos, em especial a cultura e territórios de favela.

2023[editar | editar código-fonte]

Em março de 2023 ministrou a aula “Amar na Maré, a revolta de uma multidão” para alunos e convidados do Programa de Pós-graduação em Sociologia do IESP-UERJ, inserida no programa da disciplina “Clássicos contemporâneos sobre favelas”, lecionada pela Prof. Palloma Valle Menezes

Objetivos dos textos[editar | editar código-fonte]

Ambos os textos produzidos por Wallace Lino, versam sobre a ocupação-espetáculo.

No caso de “Noite das Estrelas” , possui como objetivo compartilhar a memória coletiva sobre a população LGBTQIA+ da Maré e assim transpor abismos territoriais e de gênero.

Argumentos utilizados pelo autor[editar | editar código-fonte]

Lino argumenta que o fato de ser morador da Maré faz com que a pesquisa sobre as narrativas LGBT não seja algo pontual em algum momento específico da vida, mas que o atravessa.

Deste modo, almeja-se apresentar o conceito de favela para além do paradigma da ausência, da falta, com ênfase nas expressões da questão social mas apresentar e trabalhar a potência deste território (Fernandes et al, 2018) e o seu processo de resistência.

Durante a palestra, Lino ressalta que a morte existe como uma imagem de uma brincadeira íntima que vivem as pessoas pretas, periféricas e faveladas. Nesse sentido, quis fugir da temática comum e estigmatizada para fazer menção às travestis como a relação com o HIV, ou da violência e mortalidade, e optou, através da ocupação “Noite das Estrelas”, por falar de amor.

Metodologia da pesquisa[editar | editar código-fonte]

Para a realização da pesquisa foi adotada a história oral para a produção de dados, privilegiando a narrativa da população LGBTQIA+ da Maré, sua memória e história, somada a análise de fotografias e observação das performances. No que tange ao método da história oral, Portelli (2010) nos ensina que a proposta é recolher a voz de um determinado grupo e amplificá-la à medida que a levamos para o espaço público, uma vez que até então essa voz estava restrita a um espaço limitado. Ressaltamos se tratar de uma metodologia muito utilizada para se trabalhar a memória, por permitir que grupos muitas vezes invisibilizados sejam ouvidos, humanizando histórias e preservando a memória coletiva de uma determinada comunidade.

Obstáculos[editar | editar código-fonte]

Dito isto, enfatizamos que Lino percebeu que diversos espaços de memória da Maré não tinham ou não queriam compartilhar os registros da época da Noite das Estrelas dos anos 80 e 90, sob a justificativa de que era uma época muito violenta para a comunidade LGBT. Pantera (uma das atrizes) e vizinhos, contudo, possuíam diversos registros em vídeo e foto, aos quais Lino teve acesso. Lino argumenta que “Noite das Estrelas” está ligada à história do Rio de Janeiro: “quando a gente fala de Rio de Janeiro e não fala de algo que durou 20 anos e arrastou multidões, a gente não sabe nada da história do Rio de Janeiro”, afirma o autor. Conforme destacou em sua fala, “a proposta é resgatar o protagonismo, o discurso deste grupo”, produzindo um espetáculo para conservação da memória, compartilhamento e preservação da cultura. Há, nesse sentido, uma perspectiva do sonho na Noite das Estrelas: como o sonho é matéria, e material de um vida que é infinita: “os nossos que se foram continuam vivos na gente”, diz Lino.

Conceitos utilizados[editar | editar código-fonte]

Por fim, para além do conceito de favela outros conceitos importantes também foram utilizados na produção dos textos. Entre eles, é possível mencionar o debate proposto sobre memória, englobando o conceito de memória coletiva para reconhecimento e construção de identidade; lugar de memória ao enfatizar como os diferentes processos de ocupação na Maré geraram obstáculos à constituição do bairro Maré enquanto lugar de memória, onde as diferentes identidades e as inúmeras memórias dos moradores pudessem encontrar ancoradouro; a interseccionalidade que embora seja uma discussão recente é extremamente necessária e parte das novas demandas que estão sendo apresentadas pela sociedade; e o esvaziamento da resistência, expressão usada por Lino para criticar a ideia de resistência que desconsidera o papel do desejo do grupo/pessoa que “resiste”.

A criação da Maré está, para o autor, neste lugar, de um povo que quer ser livre, não que apenas “resiste”, mas que possui desejos e vontades legítimos.

Wallace Lino narra experiências e inspirações que deram origem ao filme "Noite das estrelas"[editar | editar código-fonte]

(Trecho transcrito)

Pelas palavras de Wallace Lino (...)

Uma das coisas que já começamos a refletir durante a construção do filme é que a maioria das pessoas que retratamos são racializadas, ou seja, negras. Portanto, a "Noite das Estrelas" que contamos é uma história negra. Quem abre essa "Noite das Estrelas" é Exu, um Exu urbano LGBT, uma pessoa não-binária. No início do projeto, essa pessoa se identificava como gay, mas, ao longo da ocupação, já se reconhecia como não-binária. Acho isso incrível, pois o discurso de Milu durante os ensaios refletia exatamente essa transformação: "Eu sou Exu porque sou a mudança." Ela, nova em seu primeiro trabalho, disse: "Eu sou Exu e trabalho com a matéria da transformação, inclusive sobre a minha própria identidade."

Também estamos discutindo as definições acadêmicas sobre arte e cultura, questionando o que é arte, quem é o artista, o que constitui uma obra de arte. Qualquer expressão que venha da favela já perfura essas noções convencionais. Por exemplo, quando analisamos a história do negro no teatro, a visão predominante aponta papéis de subserviência e submissão. No entanto, essa é uma perspectiva branca sobre o teatro. Se olharmos para o carnaval, veremos um teatro popular, mas que não é reconhecido como tal, justamente por não se encaixar nos moldes tradicionais. Não estou romantizando nem simplificando, mas o teatro negro se faz nas ruas, ele é essa própria estrutura.

A "Noite das Estrelas" é uma resposta a essas narrativas tradicionais. Alguém perguntou como seria essa experiência, e eu respondo: nós vivemos isso hoje. Quando ganhamos o Prêmio Paulo Gustavo, fizemos uma ocupação, indicada ao Prêmio Shell, em que o espetáculo começava na Teixeira Ribeiro, na entrada da Maré, e avançava por dentro da comunidade. Conduzimos o público por um espaço que não era um "safári" ou turismo de favela; era uma vivência. Queríamos que a "Noite das Estrelas" desconstruísse as percepções das pessoas sobre o que aquele lugar e aqueles corpos representam.

Foi um impacto enorme. Hoje mesmo, quando fui comprar pão, uma garota me perguntou: "Quando a 'Noite das Estrelas' vai voltar?" A coreografia que ficou marcada na ocupação é a mesma que emocionou os espectadores nos anos 1980. Quando Gilmara trouxe de volta a "Noite das Estrelas" em 2020, ela queria homenagear esses espetáculos que a impactaram. Esse é um conceito que não está descrito em livros ou mediado por teorias — é um conceito que nasce da vivência. Não existe teoria sem prática, sem experiência real.

Sempre há uma tentativa de separar o conhecimento da experiência. Mas o que é conhecimento, afinal? Quando voltamos à prática, vemos que, no passado, as pessoas conseguiam criar com o pouco que tinham, sem depender de editais como fazemos hoje. Elas desafiavam a narrativa oficial sobre o que é história, memória e cultura LGBT no Rio e no Brasil. Falamos de eventos que foram poderosos, ainda que menores em escala.

Recentemente, produzi um filme sobre a Galeria Alaska, que existiu de 1950 a 1990. Quando se menciona a galeria, é como se fosse um único espaço, mas, na realidade, havia divisões sociais claras. A galeria mais comentada era frequentada pelas "bichas ricas", enquanto as travestis não podiam entrar, e a polícia não invadia. Essa seletividade sobre o que é a memória cultural do Rio de Janeiro continua. A "Noite das Estrelas" surge como um manifesto: "Vocês não sabem nada sobre a verdadeira história do Rio de Janeiro." Se algo que durou 20 anos e arrastou multidões é ignorado, não se pode dizer que se conhece essa cidade.

Eu e Paulo sentimos que fomos abençoados por Exu, pelo universo. Ao falarmos de experiências negras e ancestralidade, às vezes parece que estamos aqui para protagonizar a ancestralidade negra na Maré. Mas a verdade é que a ancestralidade vai além de nós. Ela não depende do nosso protagonismo — vai continuar depois que nos formos. Quando pensamos em fim do mundo, estamos falando do fim da nossa existência, não da ancestralidade.

Existe uma ancestralidade invisível, porém presente, que está sempre perfurando as narrativas e negociando seu espaço. Quando falamos da Maré, lembro-me da primeira vez que fui convidada para a MIT (Mostra Internacional de Teatro) em São Paulo e contei a história das palafitas. Alguém mencionou que, em uma época sem planejamento urbano, pessoas decidiram construir suas casas sobre as águas. Se isso não é invenção, não sei o que é. Quando falamos da resistência da favela, é essencial reconhecer a intelectualidade que está inserida nisso. Não resistimos apenas por resistir; resistimos porque desejamos algo maior.

Se eu olhar para a história da minha família, tanto minha avó paterna quanto minha avó materna vieram em busca de uma vida melhor, uma do Recife e outra de Minas Gerais. Mas que vida melhor era essa? Essa busca é semelhante a uma fuga para os quilombos: não sabemos exatamente o que encontraremos, mas o corpo pede liberdade.

A criação da Maré surge desse sonho de liberdade. Hoje, a Maré é um bairro com 140 mil habitantes, mas a ousadia da época era imensa. Não era apenas construir casas sobre as águas, mas evitar a polícia, que derrubava os barracos. Isso gerou um senso de coletividade — ninguém fazia isso sozinho.

Hoje, quando falamos de moradia para a população negra, é importante lembrar que a política pública sempre foi a remoção. A política habitacional para a população negra sempre esteve associada a processos de remoção, nunca à criação de um lar.

Clique aqui e assista a aula na íntegra![editar | editar código-fonte]

Bibliografia[editar | editar código-fonte]


Fontes:

Entidade Maré

Sobre a Entidade Maré

Observatório de favelas

Filme “Noite das Panteras”

Antes da Noite Pesquisa

Redes da Maré

Ver também[editar | editar código-fonte]