Chacina de Acari - 30 anos (matéria)
Este texto relata um ato simbólico em memória às vítimas da Chacina de Acari, que ocorreu há 30 anos, organizado pelo Coletivo Favela Akari. O evento reuniu familiares das vítimas e ativistas em uma caminhada pela favela de Acari para marcar as três décadas do crime. O texto destaca a importância das Mães de Acari, que lutam por justiça, memória e verdade em relação à violência policial, e como seu movimento inspirou outros grupos de familiares vítimas da violência do Estado no Brasil.
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Matéria originalmente publicada pelo portal de notícias Rio on Watch[1] sobre evento organizado pelo coletivo Fala Akari em memória às vítimas do episódio.
#ChacinaDeAcari30Anos: O Legado Das Mães de Acari e Suas Vozes Presentes, por Tatiana Lima[editar | editar código-fonte]
No último domingo, 26 de julho, um ato simbólico pelos 30 Anos da Chacina de Acari[2], organizado pelo Coletivo Favela Akari—com autorização das duas Mães de Acari ainda vivas—deu início a 5ª edição do Julho Negro, unindo as vozes de luto e luta de ontem e de hoje contra a violência de Estado. A caminhada #ChacinaDeAcari30Anos tomou as ruas e vielas da favela de Acari para marcar as três décadas do crime.
Diante da pandemia da Covid-19, não houve chamada pública para participação do ato para evitar aglomerações. Esta foi a única atividade presencial desta edição do Julho Negro, que está acontecendo através de debates online. A ação em memória dos 11 jovens assassinatos na Chacina de Acari teve início nas redes sociais com um Twittaço realizado no dia 24 de julho.
“Não é qualquer data. São 30 anos sem resposta. 30 anos de uma impunidade do Estado. As pessoas dizem que o Brasil é o país da impunidade, mas depende para quem, né? As cadeias estão lotadas dos nosso irmãos, pais, companheiros, mas tanto os executores quanto os mandantes intelectuais desta chacina e de outras mortes, nunca são presos ou respondem por seus crimes”, ressalta Buba Aguiar, integrante do Coletivo Fala Akari, de 28 anos, moradora da comunidade.
Favela de Acari, 26 de Julho de 2020[editar | editar código-fonte]
Sentado no meio fio da calçada ao lado da escultura de uma criança com cápsulas de fuzil na mão está José Luís Faria da Silva, de 59 anos. Ele perdeu o filho, de dois anos, por bala perdida. Uma mulher com cabelos longos fuma um cigarro, é Bruna Silva, de 38 anos, outra vítima de violência do Estado. Ela segura nas mãos uma camisa surrada, da Rede Municipal de Ensino, suja com o sangue do seu filho, Marcus Vinicius de 14 anos, que morreu alvejado por um blindado da Polícia Militar.
Bianca Costa, 23 anos, carrega a foto de uma menina sorridente vestida com uma camisa também da escola emoldurada em um quadro. A mãe da jovem da menina sorridente, Rosilene Costa, de 56 anos, amparada por seu filho, também carrega a mesma imagem do quadro, mas estampada em uma blusa no peito. Sua filha Maria Eduarda, de 13 anos, foi fuzilada dentro da escola. Ana Paula de Oliveira, de 43 anos, está encostada na grade do portão do Hospital Ronaldo Gazolla, ela teve a maternidade arrancada quando seu filho, Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos, levou um tiro nas costas por um policial militar.
Apesar dos nomes e sobrenomes diferentes (ou não) todas ali nasceram separadas, mas hoje são da mesma família. Vivem uma maternidade continuada através da transformação da dor do luto em luta. São mães e pais vítimas da violência de Estado. Perderam seus filhos assassinatos ou em desaparecimentos forçados como as Mães de Acari. “Nós somos uma só. Uma é todas e todos. A bala que matou meu filho foi a mesma que matou os 11 jovens de Acari!”, branda Ana Paula Oliveira, do movimento Mães de Manguinhos.
Neste cenário, as vozes de hoje do movimento de familiares de jovens assassinados por agentes do Estado se propõem não apenas serem as vozes vivas dos seus filhos mortos, mas também as vozes vivas dos mortos de ontem, de outras mães vítimas de violência, como as Mães de Acari. É um reconhecimento à luta pioneira delas em prol de justiça, memória e verdade frente à violência policial. “Não somos guerreiras. Não foi uma escolha. Como elas, não tivemos opção”, desabafa Ana Paula Oliveira.
Em 26 de julho de 1990, um grupo de jovens, sendo sete menores, foi sequestrado por homens identificados como policiais militares. Começava ali a luta de 11 mães a procura de seus filhos que sumiram sem deixar pistas. Apenas uma kombi que levou o grupo até um sítio localizado em Magé, na Baixada Fluminense, foi encontrada. Surgia pela dor do luto o movimento das Mães de Acari, nome dado em alusão ao fato de que a maioria das vítimas morava na favela de Acari, na Zona Norte.
É uma experiência próxima a das Mães da Praça de Maio, que perderam seus filhos devido á ditadura militar da Argentina e que até hoje buscam pelos corpos dos seus filhos e até netos. A diferença é que no Brasil, a ditadura militar já havia terminado há cinco anos, mas parte das práticas policiais usadas não. Entre elas, a prática de policiais em grupos de extermínio como os Cavalos Corredores, atuante na década de 1990, também responsáveis por outros assassinatos como a Chacina da Candelária.
O movimento Mães de Acari tem uma importância sem precedente no combate a violência policial, fruto da ditadura militar, mas principalmente do racismo estrutural brasileiro que produz o genocídio da população negra. Especialmente, da população que vive em favelas e periferias do Brasil.
Três décadas após o crime, apenas duas mães estão vivas, exauridas da luta, mas não da busca por respostas. Ambas se preservam e não participam mais de atos. “Elas estão doentes. Têm sequelas físicas e psicológicas dessa dor. Todo dia é difícil, mas a data marca. Aumenta a dor. Agora, é nossa vez de levar esse legado e lutar por justiça”, afirma Buba Aguiar. Uma das Mães de Acari foi tão procurada pela mídia nesta última semana que, segundo relato da ativista, precisou desligar o telefone.
Sem Justiça Não Há Paz![editar | editar código-fonte]
O ato teve concentração em frente ao Hospital de Acari, com uma enorme faixa, como um memorial pelos 30 anos da Chacina de Acari. Familiares vítimas de violência que perderam seus filhos assassinados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro ao longo de três décadas e ativistas de favelas, caminharam da rua principal que dá acesso a comunidade, em direção às ruas e vielas de Acari gritando: “Sem justiça, não há paz!” até o Centro Cultural do Coletivo Fala Akari.
“O ato é para marcar que pode passar 100 anos que a gente não vai esquecer. A gente vai continuar cobrando, por mais que o processo caduque na justiça. Na nossa memória não vai caducar jamais. Nosso ato é para marcar os 30 anos de chacina para a sociedade, mas também para dentro da comunidade. Essa é a importância do próprio coletivo Fala Akari e do Movimento Favelas na Luta”, ressalta Buba Aguiar.
Os manifestantes também seguravam placas com nomes das 11 vítimas da chacina. Tanto a faixa do ato quanto as placas fazem alusão ao movimento: “Quem mandou matar Marielle Franco? E por quê?”, que reivindica respostas ao assassinato da vereadora. Cria da Maré, ela e seu motorista Anderson Gomes, morador do Complexo do Alemão, foram executados em 14 de março de 2018. Na última segunda-feira, 27 de julho, a vereadora completaria 41 anos. As placas com estética iguais a placas que nomeiam ruas da cidade se transformaram em uma política de memória ao genocídio da população negra de favelas e periferias.
As placas com os nomes dos 11 jovens da Chacina de Acari irão para uma exposição permanente no Espaço Cultural do Coletivo Fala Akari, onde será construído um memorial para os 11 jovens e a homenagem as Mães de Acari. Os familiares receberam rosas e juntas cantaram o funk do Mano Teko que, segundo elas, tornou-se o hino da sua luta: “Hoje o quilombo vem dizer, a favela vem dizer, que é nós por nós!”.
Histórico[editar | editar código-fonte]
Pioneiras do movimento dentro do Brasil, as Mães de Acari não apenas reivindicam uma resposta da sociedade como denunciam o crime para dentro e fora do Brasil. É uma luta que inspira até os dias de hoje outros movimentos e organizações de familiares vítimas de violência de Estado.
As onze mães de Acari são as sementes deste tipo de movimento no Brasil. Elas são as precursoras de movimento de familiares vítimas do estado como as Mães de Maio, Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense, Mães em Luto da Zona Leste (SP), Mães de Curió, Mães de Manguinhos, Mães de Maio do Cerrado, Mães do Xingu, Mães Mogianas, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo, dentre outras, num país de tantas chacinas cometidas por agentes de segurança pública.
Nove das Mães de Acari morreram buscando por justiça muito doentes com sequelas do trauma, não apenas da morte dos filhos, mas de uma das mães. Mãe de Luiz Henrique e líder do movimento, Edméia Euzébio, e Sheila Conceição, sua cunhada, sofreram uma emboscada e foram assassinadas no estacionamento do metrô Praça XI em 1993, após visitarem um detento no Presídio Hélio Gomes. Neste dia, ela teria descoberto uma pista do crime.
“As Mães de Acari são uma força e inspiração para todas nós que como elas perdemos nossos filhos. São as pioneiras da nossa luta. Estamos aqui para dar força e dizer que como elas, não apenas não vamos deixar que nossos filhos sejam esquecidos, como seguimos seus exemplos transformando luto em luta. Sabe… essa palavra… faz com que eu tenha força e que eu esteja de pé”, garante Rosilene Costa, de 56 anos.
As Vozes de Hoje Presentes[editar | editar código-fonte]
Maicon Faria da Silva foi morto por bala perdida em Acari. Ele faz parte da estatística de homicídio por intervenção do Estado: na prática, o policial não responde processo nestes casos devido ao argumento da legítima defesa ou circunstâncias de risco (0 antigo auto de resistência). Ele tinha apenas dois anos de idade e foi morto enquanto brincava com uma pistola de água nas mãos. Seu pai luta há 25 anos por justiça. Ele faz parte da estatística de mortes por “autos de resistência” como eram conhecidos assassinatos cometidos por policiais, supostamente em defesa da própria vida.
“Estou aqui neste ano dos 30 anos da Chacina de Acari pela memória dos 11 de jovens de Acari, pelas Mães de Acari, mas também porque sou a voz do meu filho e de todos que são vítimas do Estado. Somos a denúncia viva em corpo presente e vivo do Estado genocida e terrorista que, no cotidiano da favela, não dá educação, saneamento, saúde, mas tira vidas’, afirma o pai de Maicon, José Luis Faria da Silva.
E completa: “O mais difícil é lutar por justiça para nossos filhos. Por ser pobre e da favela, [precisamos] ter que ficar o tempo todo provando quem é a gente, que não somos bandidos, mostrar currículo para ser respeitado. Sou analfabeto, não sei falar direito, mas sigo no objetivo de ser voz do meu filho e limpar seu nome. E a culpa não é só da polícia que mata. Mas, também do Ministério Público que não prende”. Desde 2010, em todas as manifestações, ele carrega uma escultura feita pelo artista Vandinho, que representa a imagem do seu filho.
Ana Paula Oliveira, moradora de Manguinhos, é a voz de Jonathan Oliveira, de 19 anos, assassinado em 2014. “Meu filho foi morto por um policial que já respondia por triplo homicídio e duas tentativas de homicídios. Esse mesmo policial já tinha sido preso um ano antes de assassinar meu filho, mas depois foi solto. Eu fui obrigada a lutar porque quando assassinam nossos filhos não é somente o corpo que eles matam, mas a dignidade das vítimas e a nossa maternidade. Só nos resta buscar por verdade, memória, justiça”.
Rosilene Costa é a mãe de Maria Eduarda Costa, jovem de 13 anos, morta dentro de uma escola municipal em 2017. “Minha filha estava no lugar certo e na hora certa. Chegou a Polícia e mesmo vendo uma escola na frente, atirou! Passaram três anos, perdi minha vista e fiquei cega de um olho, não enxergo, mas não tenho medo porque eu vim falar a verdade”. Bianca Costa, outra voz viva de Maria Eduarda, sua irmã do meio, afirma: “Não é porque somos negros que podemos ser vítimas de balas perdidas. Maria Eduarda não vai ser esquecida. A família foi destroçada”.
Ela tem crise de pânico recorrente, especialmente, quando há operações policiais na comunidade em que vive. “Eu sinto medo o tempo todo. Não temos segurança. Começa o tiro, vai pra onde? Para o banheiro? Atrás da cama? O tiro entra, fura a parede, mata a gente. Minha irmã está morta para provar. Não é porque moramos em comunidade que a polícia pode agir assim”, protesta.
Bruna da Silva é a voz de Marcos Vinícius, jovem de 14 anos, executado com um tiro nas costas pela polícia, na Maré, em 2018. “Meu filho estava a caminho da escola. Estou aqui para dizer que ele e os 11 jovens de Acari não serão esquecidos, independente dos anos que passem. A gente está cansado desse genocídio. Nossas crianças são mortas por quem deveria protegê-las. Venho para a rua para tentar mudar este país, por um Brasil melhor no qual todas as vidas importem: inclusive, as vidas negras e faveladas”.
A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). No Rio de Janeiro, mesmo diante da pandemia, entre janeiro e abril deste ano, houve aumento de operações policiais e mortes.