Especial Hip Hop e Educação

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 07h00min de 20 de dezembro de 2022 por Nsmiranda (discussão | contribs) (edt)
Verbete produzido pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco a partir de trabalhos disponibilizados nas redes.
Família Lanatanpa organiza, dentre outras coisas, uma roda de rap no bairro do Pantanal em Duque de Caxias.

"Naquele momento, o rap passou a ser visto como algo positivo. Acabou se tornando a solução para um problema educacional."

Parte 1

Por Fabio Leon • 29/11/2022

Comprovada a sua eficácia do ponto de vista pedagógico-educacional, o Movimento Hip Hop vem sofrendo uma metamorfose lenta e gradual no que diz respeito a como essa cultura tem sido observada fora das suas comunidades de origem. Antes identificado como música “de bandido”, hoje ele é reconhecido como uma legítima manifestação artística, em geral, e ainda com protagonismo da luta de classes. É importante reconhecer que, como arma de resistência social, esse movimento cultural movimenta a economia com poesias que enfatizam vivências pessoais.

Através de três projetos com metodologias próprias—o RapLab, do Instituto Enraizados, sediado em Comendador Soares, bairro periférico de Nova Iguaçu; e Família Lanatanpa e Cypher Kids, ambos de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense—iremos vasculhar parte das origens do Movimento Hip Hop, cujo percurso se iniciou como um processo coletivo de resposta ao preconceito. É possível propor mudanças na estrutura de ensino e no cotidiano das unidades educacionais através do hip hop como ferramenta, mas também identificar resistências a essas possibilidades.

Motivações e Narrativas para se Fazer Ouvir

De acordo com a psicóloga e pesquisadora Mariane Lemos Lourenço, O termo “Hip (quadril) e Hop (balançar) é uma gíria, conhecida pelos jovens do Hip Hop, como “balançar o quadril”. Em tradução livre, “designa um conjunto cultural amplo que inclui música (rap), pintura (grafite) e dança (break). O rap, sigla derivada de ‘rhythm and poetry’ (ritmo e poesia), é a música do Movimento e constitui o seu elemento de maior destaque”. No Brasil, despontou nas periferias ao longo dos anos 1980, se popularizando somente na década seguinte, com o surgimento de nomes de grandes referências do rap nacional, como: Racionais MC’s, Thaíde e DJ Hum e RZO.

Chamados de narradores urbanos, os rappers desejam influenciar os outros com aquilo que acreditam ser positivo. Cobram uns dos outros as posições e princípios expressos nas suas letras. Muito mais do que se percebe, os rappers são agentes educacionais e moralizantes.

Aconselhar e influenciar os outros pode não ter sido o objetivo essencial da guia de turismo Juliana Maia, idealizadora, junto com o marido, o técnico eletricista Anderson Maia, da Família Lanatanpa. No entanto, é inegável o quanto agregar pessoas é um atributo natural do rap e do hip hop. O nome do coletivo fundado por Juliana e Anderson é um anagrama para Pantanal, bairro em Duque de Caxias onde essa iniciativa foi criada e onde o casal mora.

Juliana e Anderson Maia são idealizadores e fundadores da Família Lanatanpa, que leva a cultura hip hop para o bairro do Pantanal na Baixada Fluminense.

“O objetivo era ampliar o conceito de cultura e aliar aos interesses da juventude local. Depois que fizemos a primeira edição, em 2018, juntou cerca de 400 pessoas na praça do Morro do Sossego (território vizinho ao Pantanal) e quando se concretizou a aceitação [dos moradores] da localidade, começamos a funcionar como batalha a cada 15 dias. Fomos ganhando forma e conteúdo e nos modelando de acordo com as necessidades do local. A ideia era apenas ser uma batalha de rimas e uma roda cultural, mas a coisa ganhou outras dimensões” — Juliana Maia

Ela diz ainda que a inspiração para se fundar a Lanatanpa foi a Batalha do Conhecimento, projeto criado pelo rapper MC Marechal, que se contrapõe às tradicionais disputas de MCs. Nas batalhas de rap, em geral, o vencedor é aquele que dispara os melhores versos de ataque, versados em bases musicais pré-gravadas chamadas de beats, como modo de se testar o freestyle, o poder de improviso, sempre em menosprezo ao adversário. Na Batalha do Conhecimento, no entanto, há, além das rimas e do freestyle, uma reflexão conjunta dos participantes ao abordarem temas complexos e cotidianos como direitos humanos, violência, racismo, educação e machismo, por exemplo.

Segundo o mesmo artigo de Mariane Lemos Lourenço, o hip hop é “uma arte que nasce da exclusão, da falta de acesso a outros meios de diversão como clubes, cinemas, teatros. É uma arte que diverte e que também informa, traz conhecimento. A arte do Movimento Hip Hop funciona como uma instância de mobilização, talvez a única a que esses jovens tenham acesso”. Essa percepção acaba dialogando com as motivações para a fundação da Família Lanatanpa.

Batalha do Conhecimento fundada por MC Marechal no Museu de Arte do Rio

“Nós percebemos que os amigos e parentes daqui tinham interesse em ir, mas não tinham condições financeiras para comparecer a uma batalha que se passava no Museu de Arte do Rio (MAR). Levávamos até alguns adolescentes, mas [a maioria dos] pais não autorizaram. E sem contar que o acesso daqui do Pantanal até a Central do Brasil é complicado porque ou você pega dois transportes ou pega um ônibus que custa sete reais. Sabíamos pouco sobre batalhas na Baixada, considerando que são 13 cidades e algumas muito distantes umas das outras, o que daria no mesmo em termos de dificuldade de deslocamento. Acabamos nos tornando, para esses jovens, inspiração e modelo, que eles aceitam e escutam. Eles aceitam o Movimento Hip Hop no seu cotidiano. Eles até tentaram fazer uma batalha aqui perto de casa, mas eles não tinham credibilidade por serem adolescentes. Os moradores não respeitavam o que eles estavam tentando fazer, por mais que a gente estivesse por trás ali, incentivando. Por causa desses conflitos internos e territoriais, nós decidimos tirar a Lanatanpa do papel.” — Juliana Maia

No Chão do Pátio da Escola: Africanidade no Flow e nas Pick Ups

Família Lanatanpa engaja alunos em escola pública

Juliana destaca que o ambiente em sala de aula de uma escola pública não é propício a resultados de aprendizagem em longo prazo, porque o sistema educacional destinado a alunos da periferia se esquece das subjetividades que invadem o cotidiano dessas crianças e adolescentes. Não é o momento, segundo ela, de se criar novas regras e, sim, de despertar outras potencialidades emocionais neles para que, enfim, tenham o desempenho almejado.    

“Essa relação com a escola, acredito que conseguimos trazer o aluno de volta. Se ele tem senso crítico muito ácido, a gente vai trabalhar empatia. Se ele gosta de frequentar as aulas, mas é introvertido, vamos trabalhar as expressões artísticas. Se ele tem problemas com depressão, vamos formar uma rede de apoio. Ele precisa sentir que aquilo é para ele. O problema é que os alunos poderiam ter tudo na escola, mas o Estado sucateia a escola pública. As pessoas estão cansadas, tentando sobreviver. Quando a escola propõe algo para o aluno, ele não quer, nem dialoga. Ele está de saco cheio, vê aquela professora desde a quinta série, já tem ranço da diretora dele. Então, quando um projeto adentra a escola com uma proposta pedagógica diferente, muitos vão querer participar. A Lanatanpa cativa porque eles se veem.” — Juliana Maia

Levi de Oliveira, mais conhecido como DJ Levas, contou sobre o quanto foi importante o hip hop na escola para ele, enquanto aluno


Em 2018, veio o que seria a estreia da Lanatanpa em ambiente escolar. O CIEP Clementina de Jesus estava para desenvolver uma série de atividades relacionadas à Semana da Consciência Negra, com quatro meninos da Lanatanpa, entre MCs e b-boys estudavam no local. Um deles, Levi de Oliveira, mais conhecido como DJ Levas, contou sobre o quanto foi importante o hip hop na escola para ele, enquanto aluno.

“Tudo aconteceu de forma muito orgânica, nada foi muito esperado. Eu não tinha em mente que eu ia fazer aquilo. A professora de sociologia da época queria que cada turma do terceiro ano desenvolvesse um trabalho sobre o tema. Até a última semana de prazo para entregar o trabalho, não tínhamos ideia do que fazer. Aí eu pensei: eu participo de um coletivo de hip hop. Nada melhor do que falar dessa cultura, que tem todo um contexto histórico, sociológico. Só faltava articular essa ideia. Procurei a Juliana, expliquei toda a história do projeto e a Lanatanpa estava lá. A turma se organizou muito rápido. Teve coreografia em grupo, dança freestyle (em que cada um se apresenta em performances individuais). Botamos a caixa de som, as pick ups (mesa onde os vinis são colocados e o DJ emite os efeitos sonoros que acompanham as batidas). Foi muito importante para mim, tá ligado? Porque minha casa sempre foi muito musical e nos unimos dentro de um ambiente escolar através da música.” — DJ Levas

Na semana seguinte, a Família Lanatanpa foi também para o CIEP Graciliano Ramos, em Duque de Caxias, desenvolver outra ação educacional. Desde então não pararam mais.

Wallace Oliveira, pesquisador e professor do CIEP Carlos Drummond de Andrade, em Comendador Soares, bairro de Nova Iguaçu, avalia que projetos como o Família Lanatanpa contribuem positivamente para o que ele chama de “mudanças de cenário internalizadas”. Ele diz que “ações como as que são produzidas pela Lanatanpa acabam por propiciar ao aluno um contexto de proximidade onde ele consegue interagir, debater, se expressar e construir coletivamente. Muitas vezes, é na rima, na poesia e no desenho (grafite) que o aluno consegue externar aquilo que sente e não encontra lugar para dizer. Naquele contexto consegue ser construído um lugar seguro onde a arte se coloca como um grande megafone que possibilitará que ouçam suas angústias e anseios”.

O Rapper que Está Virando Doutor

É fácil entender por que o hip hop não faz parte de um planejamento estratégico robusto e nem da grade curricular de escolas periféricas, pois há pouco espaço para se trabalhar nas escolas públicas fenômenos psíquicos que provocam diversos tipos de adoecimentos decorrentes do cotidiano de quem vive em comunidades de baixa renda.

Flávio Eduardo Assis, doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mais conhecido como Dudu de Morro Agudo, é o idealizador do RapLAB, desenvolvido para produzir conhecimento em rede, auxiliar no desenvolvimento cognitivo dos jovens usando o rap como um campo educacional que permite trabalhar a subjetividade estética, o trabalho em grupo, a leitura de mundo, a cidadania, a democracia, o conceito de valores, dentre outras premissas.

“Desejava desenvolver algo que fosse capaz de fazer com que uma pessoa que nunca teve contato com o rap fosse capaz de experimentar o processo de composição, em um período curto, para não ser cansativo, para que os participantes não perdessem o foco e para que a atividade pudesse ser realizada nos turnos escolares.” — Dudu de Morro Agudo

Ao lado da foto de Milton Santos, está o doutorando em educação Dudu de Morro Agudo, idealizador do RapLAB

Segundo o educador, a ideia é, além de trabalhar os aspectos intelectuais, processar informações de forma ágil e desenvolver o raciocínio, a autorreflexão e introspecção, além de também trabalhar com aspectos sociais, o trabalho coletivo e o respeito à diferença. Dudu nos conta como trabalha o RapLAB na prática:

“Ele acontece em quatro etapas. Um grupo de 20 pessoas conversa sobre qualquer tema e a partir dessa roda de conversa entramos numa espécie de jogo, um método que a gente cria, escolhendo as dez palavras que mais chamaram a atenção durante a conversa. Por exemplo: pode ser sobre racismo estrutural, revolução comunista e até sobre o Naruto (personagem de desenho japonês). Eles vão trazendo as experiências e vivências deles em relação a essa palavra. Ao escolher essas dez palavras que chamamos de palavras orientadoras, para ajudar no processo de escrita, promove-se um resgate dessa conversa. Um dos participantes vai pegar uma dessas palavras e construir uma frase que tenha a ver com o que foi discutido. Esse participante não pode rimar. Dessa forma, outra palavra é escolhida por outro aluno, monta-se uma outra frase que faça sentido com a primeira palavra norteadora e que rime na sequência. No final, com a construção de oito rimas com 16 linhas, essa etapa chega ao fim. Logo após vem a etapa de musicalização e ritmo e, por último, depois de tudo muito bem ensaiado, vem a etapa de gravação, dividida em duas fases: um coral, para que todos participem, inclusive os mais tímidos, e depois, quem quiser gravar individualmente suas vozes, vai paro estúdio. A minha equipe cuida da mixagem, pré-remasterização. Tudo é gravado num pen drive.” — Dudu de Morro Agudo

Invadir para Não Evadir

Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que a taxa de evasão escolar no ensino médio da rede pública de ensino mais que dobrou no ano passado. Em 2020, o percentual de estudantes que abandonaram instituições foi de 2,3%, enquanto que, em 2021, a taxa foi de 5,6%. Em outra pesquisa, dessa vez realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o abandono escolar foi maior entre os estudantes do início do ensino fundamental, que, durante o isolamento social, estiveram mais afastados dos estudos. O grande problema estava nas metodologias adotadas para manter o vínculo entre escola e alunos de forma remota, em meio à falta de acesso adequado à tecnologia pelos estudantes.

A evasão escolar é assustadora nas escolas públicas das favelas e periferias há muito tempo, mas a pandemia acentuou ainda mais o problema. O professor de Geografia e Sociologia, Cleber Pacheco, amigo de Dudu de Morro, do CIEP Nelson Rodrigues, em Comendador Soares, ficou assustado com as altas taxas de evasão da própria escola. Para socorrer o amigo, Dudu se apressou em explicar como funcionava a metodologia do RapLAB e a aceitação foi imediata:

“Então, naquele momento, o rap passou a ser visto como algo positivo. Acabou se tornando a solução para um problema educacional. O nosso diferencial é que a gente dialoga com a juventude preta do bairro, tá ligado? Quem está saindo da escola? Cerca de 70% das evasões escolares são de alunas e alunos pretos.”

Arquivo:Cleber Pacheco é professor de geografia e sociologia no CIEP Nelson Rodrigues e ficou assustado com as altas taxas de evasão na escola em que trabalha e decidiu agir com ajuda do RapLAB e de Dudu de Morro Agudo.png
Cleber Pacheco é professor de geografia e sociologia no CIEP Nelson Rodrigues e ficou assustado com as altas taxas de evasão na escola em que trabalha e decidiu agir com ajuda do RapLAB e de Dudu de Morro Agudo.

Convencionou-se a chamar de “irrecuperáveis” ou “indisciplinados” os alunos que convivem com professores como Cleber. Para Dudu, isso é uma meia verdade. Reflete a soma de duas incongruências: a falta de uma nova visão sobre determinados comportamentos de alunos, misturada a diretrizes escolares consideradas ultrapassadas e engessadas para o entendimento de uma complexidade sobre a decisão de alunos periféricos abandonarem a escola.

“Ainda existe muita resistência dentro da escola. Tem resistência da direção da escola. Se há mudança na direção, todos os projetos caem. Os próprios alunos desconfiam: ‘pô, eu nunca recebo nada de ninguém, por que você quer me dar uma parada maneira?’ A juventude tem essa necessidade de ser ouvida, ela quer falar. O professor tem que aprender a ouvir. Eu chego, falo, levo uma zoada, depois eu zoo também, mas depois, num determinado momento, está todo mundo calado, pensando, com a cabeça pegando fogo para fazer a rima. O silêncio é a vitória, mano. Isso não tem preço.” — Dudu de Morro Agudo

Ele reforça essa ideia dizendo que muitos alunos tinham dificuldade de ler e escrever, mas que, através da música, se revelaram verdadeiras potências. Dudu conta que uma vez esqueceu em casa a letra de um rap que usaria em sala de aula mas que, em sala, havia um “menino que [lembrou e] reproduziu todo o exercício, que era um rap sobre um sapo que morava numa lagoa”.

Mesmo assim, o Movimento Hip Hop permanece subutilizado enquanto metodologia em sala de aula. Aos poucos, uma cultura nascida de favelas e periferias vem ganhando cada vez mais credibilidade para além de fonte de lazer. Mesmo reconhecida como uma ferramenta escolar, que desenvolve subjetividades e novas formas de sociabilidades entre alunos e professores através de rimas, grafite e dança, o hip hop não é presença comum na sala de aula.

De modo geral, as escolas públicas ainda são espaços de produção de conhecimento que, infelizmente, não refletem cultural e metodologicamente a realidade da comunidade em que se inserem. A baixa representatividade no ambiente escolar perpetua altas taxas de evasão escolar e apatia com relação aos conteúdos. É preciso que o aluno se veja na forma e no conteúdo das aulas. Sentir-se cultural e socialmente acolhido é a chave para revolucionar o aprendizado.

Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.

Parte 2

Por Fabio Leon • 30/11/2022

Cypher Kids com Zulu TecNykko - Foto - Beatriz Dias

"A dança é uma redução de danos."

Esta é a segunda e última parte de uma matéria especial cuja pauta foi selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação) em parceria com o Itaú Social.

A primeira parte desta matéria discorreu acerca das origens do Movimento Hip Hop, e sobre a possibilidade de mudanças na estrutura de ensino e no cotidiano das unidades educacionais através do hip hop como ferramenta. A primeira parte trouxe à luz a atuação do hip hop, no âmbito educativo, dos projetos RapLab, do Instituto Enraizados, sediado em Comendador Soares, bairro periférico de Nova Iguaçu; e do Família Lanatanpa de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Nesta segunda parte, conheceremos o caso do Cypher Kids, também de Duque de Caxias.

O projeto Cypher Kids utiliza a dança para combater o preconceito racial e desenvolver o sentimento de pertencimento em sociedade. Segundo Diego Fábio dos Santos de Jesus, mais conhecido como Zulu TecNykko, rapper, DJ, professor de dança, presidente da Federação de Breaking do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Cypher Kids, a cultura de rua pode ser vista como uma “usina de redução de danos”. Ele explica que a dança, em particular o breaking e outros tipos de dança de rua, carrega uma expressão muito forte da estética, identidade e da filosofia da periferia. As artes urbanas debatem, em última instância, o lugar da cultura negra na sociedade e na escola. “A dança acaba sendo uma orientação para um processo de reencontro com a sua identidade afro-brasileira e adotamos diferentes perspectivas e estratégias que colaboram nessa reflexão”, explica Zulu.

Zulu TecNykko ensinando passos de hip hop para alunos de escola pública estadual. Foto - Beatriz Dias.

Na linguagem do hip hop, Cypher é a roda de amigos que se forma nas batalhas de MCs e Kids refere-se à faixa etária de alunas e alunos (5 a 12 anos) atendidos pelo projeto desde 2015. Quem entra na sala de aula no galpão da Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro, um histórico bloco de carnaval, fundado em 1957, no Centro de Duque de Caxias, nem imagina que o grupo de crianças alegres e bagunceiras ali reunidas está em recuperação escolar. Mas não se tratam só de notas ruins a serem recuperadas no boletim escolar. Este é um processo pedagógico-terapêutico em curso, que visa desconstruir um histórico de violências.

Zulu explica a redução de danos causada pelo hip hop através da história de Lua, filha da artesã Fátima Oliveira. A menina é de pele branca com cabelo crespo, sua mãe é branca e o pai negro. Essa mistura étnica fez com que Lua sofresse bullying nas duas escolas que frequentou. “’Chegaram a pegar uma tesoura, dizendo que iam cortar o ‘cabelo ruim’ dela. Como crianças já são cruéis desse jeito?’, indigna-se Fátima”.

DJ Zulu Tecknykko, coordenador do Cypher Kids.


Lua ficou calada, arredia e engordou por causa da ansiedade provocada pelas agressões verbais. Entretanto, com as aulas de hip hop, a menina recuperou a desenvoltura e reconquistou a confiança em ser exatamente quem ela é.

“Nós a estimulamos a vencer obstáculos. Passei um movimento para ela, dei um prazo de uma semana para aprender a executar e dei o passo a passo de como ela faria. Se ela cumprisse aquilo, ela iria fazer outro movimento. Ela disse que não iria fazer, que era muito difícil. Aí eu falei com ela: ‘se você separar dez minutos do seu dia para ir treinando, você consegue. Em uma semana você é capaz’. Ela conseguiu, mas ao invés de dar os parabéns, eu só continuei a incentivar ela. Para dançar, é preciso ter uma vivência muito ampla de convívio social. Um dos princípios do hip hop é trazer a amizade entre os seres humanos, é você entender o próximo e respeitar a si mesmo. Quando tudo isso é levado desde muito cedo para as crianças, acaba-se com o problema e acabam virando grandes adultos.” — Zulu TecNykko

Zulu também contou como precisou fazer um trabalho de pedagogia com as mães e pais dos alunos do Cypher Kids para se livrarem de certos preconceitos que carregam sobre dançar e sobre a cultura de rua.

“Às vezes, os próprios pais enfrentaram todo um conjunto de limitações e opressões só porque eram pobres e periféricos. Aqui, por causa desses ensinamentos que transmito, às vezes, os pais acabam encontrando círculos de amizade, empatia e companheirismo que nunca conseguiram encontrar em outros círculos, como o do trabalho, por causa da competitividade e da questão racial. Embora isso não seja o eixo do projeto, temos uma pedagogia que incorpora o pensamento de que dançar é um ato político. O hip hop salva mais vidas do que muito projeto governamental por aí.” — Zulu TecNykko

Zulu TecNykko dançando com Cypher Kids em escola pública da Baixada Fluminense. Foto - Beatriz Dias.

Com as performances das crianças e adolescentes sendo cada vez mais conhecidas nos arredores de Duque de Caxias, os convites foram se acumulando para além do município. Zulu conta a história do dia em que foi convidado para dar uma aula de dança para 30 adolescentes no Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo (CAI-Baixada), uma unidade vinculada ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). Embora soubesse da responsabilidade do compromisso, ele sabia que teria de mudar a metodologia, pois viu naquele convite uma oportunidade única de conscientizá-los.

“Eu já sabia que eles não iam querer dançar comigo. O plano pedagógico para esses jovens era muito engessado, tinha que fazer uma cartilha e tal. Eu pensei: ‘isso não vai dar certo’. Então, falei com a coordenadora do projeto educacional do Degase, que havia me convidado, e disse que teria de dar uma aula completamente diferente do planejado. Pedi que ela me emprestasse 30 folhas de papel e algo que pudesse escrever. Quando eles apareceram, pedi que cada um olhasse a folha de papel e perguntei o que eles estavam vendo ali. E eles disseram: ‘tô vendo nada’.

Cypher Kids e Zulu TecNykko. Foto - Beatriz Dias.


Aí eu disse: ‘é isso mesmo. Esse é o nada, porque vocês não fizeram nada para mudar a vida de vocês, não construíram nada que os fizesse tirar vocês daqui’. Era para ser 40 minutos de aula, fiquei quase três horas conversando e aplicando algumas dinâmicas… Aí perguntei: ‘vocês querem aprender a dançar?’ A maioria respondeu que sim, porque eu trabalhei o foco deles. Eles não tinham nenhum foco. Era isso que deveria ser feito nas escolas públicas: os professores deveriam estudar a vivência dos alunos. Mas quem vai ter tempo de fazer isso, se os professores já adentram as salas de aula massacrados?” — Zulu TecNykko

Despreparo e Qualificação de Projetos

Eduardo Prates é professor da rede pública de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu.png


Eduardo Prates é professor do Colégio Estadual São Bento, na região de Sarapuí, em Duque de Caxias, e também leciona nas Escolas Municipais Agroecológica do Vale do Tinguá e Prof. Osires Neves, ambas em Nova Iguaçu. Ele faz parte do quadro de sócios beneméritos da Lira de Ouro desde 2005. A partir de 2010, começou a estreitar a amizade com Zulu, que já conduzia, através do hip hop, intervenções em espaços públicos. Entrou em contato com o Cypher Kids e o projeto logo chamou sua atenção por ser apaixonante e por ter impacto na vida das crianças. O grupo desenvolve atividades que envolvem música, dança, expressões visuais, comportamento e consciência sobre o lugar que os jovens da periferia ocupam na cidade.

Entretanto, passados doze anos desde que iniciou sua aproximação com a cultura hip hop, Eduardo afirmou que a educação pública parece ainda não ter percebido que ela precisa ser mais bem implementada no ensino público. Sua eficácia encontra-se em incorporar no cotidiano escolar aquilo que os alunos vivem em seu dia a dia.  

“Muitos educadores e gestores públicos de educação ainda têm uma caixinha retrógrada em suas cabeças que enxergam o modelo de cultura escolar nos moldes clássicos, esquecendo que os alunos vindos da periferia não vão ter condições de igualdade quando precisam enfrentar todos os dias, inúmeras manifestações de racismo e segregação. A unidade escolar deve ser viva e refletir a realidade [da comunidade escolar]. Não podemos ficar mais no meio do caminho entre projetos inacabados, falta de diálogo entre as burocracias educacionais e as escolas, projetos pedagógicos não realizados e as muitas cobranças feitas aos professores e alunos, e um processo de aprendizado realmente transformador da realidade. Percebo que as iniciativas ainda são tímidas e dispersas. Faltam nas redes de educação da Baixada Fluminense mais ações que incorporem processos culturais, espaços de manifestações artísticas que promovam o diálogo entre a escola e a vivência cotidiana dos alunos.” — Eduardo Prates.

Cleber Pacheco, professor do CIEP Nelson Rodrigues, em Nova Iguaçu, e um dos principais entusiastas e divulgadores do RapLab, concorda com Eduardo sobre a falta de representatividade na educação. Ambos Cleber e Eduardo apontam que falta às metodologias de ensino utilizadas atualmente nas escolas da rede pública lastro na cultura dos alunos.

“Acho que existe falta de vontade política. Precisamos de mais políticas públicas concretas e verdadeiras que reconheçam e valorizem os muitos movimentos realizados por professores que estão antenados com a cultura urbana, com as dinâmicas de produção cultural dos jovens negros da periferia.” — Cleber Pacheco

Com a Palavra, as Secretarias Municipais de Educação

A Secretária Municipal de Educação de Nova Iguaçu, Maria Virgínia Andrade Rocha, falou a essa reportagem, sobre a inclusão do hip hop nas escolas como política pública. Hoje, ela é responsável por uma rede que soma 144 unidades escolares e quase 67.000 alunos.

Perguntada se a secretaria costuma incentivar a inserção de projetos que trabalhem com o movimento hip hop nas escolas da rede pública da cidade, ela afirmou que, desde que os projetos tenham “cunho político-pedagógico”, podem ser incluídos na rotina da escola. Principalmente em algumas escolas que possam ter, como a secretária colocou, uma “especificidade diferenciada … suas particularidades dentro daquela comunidade escolar”.

“Vamos trabalhando de maneira lúdica, contextualizada, direcionada à especificidade da escola. Vamos ter esse olhar diferenciado. Às vezes, trabalhamos um projeto numa região e é um sucesso, mas em outra não é. Todos os projetos precisam ser trabalhados com a mesma intensidade em todas as escolas? Não. As pessoas são diferentes. Existem particularidades que precisam ser respeitadas, sendo elas culturais ou não”, explicou Maria Virgínia.

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Tendo em vista que os professores, como Cleber, veem no dia a dia a necessidade de incluir a cultura dos alunos na escola foi perguntada a Maria Virgínia se o órgão municipal tem se reunido com o sindicato dos professores ou outra instância de representação de classe, para consulta ou elaboração de alguma proposta de projeto pedagógico tendo como base a cultura hip hop na rede de Nova Iguaçu. Maria Virgínia afirmou que houve vários encontros, mas que o sindicato nunca fez uma proposta.

Maria Virgínia também foi perguntada sobre quantos projetos ou programas educacionais tendo o movimento hip hop como base pedagógica foram desenvolvidos na sua gestão. Ela afirmou não ter esses números e disse que “precisaria fazer um levantamento junto às diretorias das unidades escolares”.

Quatro dias depois da entrevista, apesar da promessa da secretária, não houve o envio de dados sobre os projetos. No entanto, apesar dela ter tomado posse em 2018, a Secretaria de Educação de Nova Iguaçu enviou uma nota, por meio de sua assessoria de comunicação, fornecendo informações que são de cinco anos antes do início da gestão de Maria Virgínia.

“Em 2013, a prefeitura recebeu, do governo federal, o programa Mais Educação. Com isso, foram realizadas diversas oficinas com foco na cultura local e valorização das artes das periferias. Entre as atividades, foi implementado o hip hop… A rede municipal de educação, então, organizou mostras culturais e apresentações entre as escolas, utilizando as letras do gênero para a conscientização social, ensinamento de valores e aproximação aos tipos de gêneros textuais, por meio da criação poética e crônicas das letras”, afirma a nota.

Vale ressaltar que o programa Mais Educação, decretado em 2010, foi uma estratégia do Ministério da Educação para construir uma agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino, visando ampliar a jornada escolar nas escolas públicas por meio de atividades opcionais como educação ambiental, esporte e lazer, cultura e artes.

O programa foi remodelado em 2016, passando a se chamar programa Novo Mais Educação. De acordo com as atividades escolhidas, as escolas beneficiárias também poderiam receber conjuntos de instrumentos musicais e equipamentos para bandas de fanfarra e formação de grupos de hip hop. Segundo informações do site do Ministério da Educação, o programa atendia cerca de 1,1 milhão de estudantes em 7.483 escolas em todo o Brasil. Em 2019, foi extinto pelo governo Jair Bolsonaro.

Além disso, a nota da Prefeitura de Nova Iguaçu reconheceu a importância do hip hop na escola, apesar de restringi-la às aulas de inglês—denotando, assim, a subutilização pedagógica do hip hop em sua rede municipal. “O hip hop também foi importante para a disciplina de Língua Inglesa nas escolas. Isso se deu uma vez que termos comuns no contexto do hip hop se popularizaram entre os alunos, provocando a curiosidade em traduzir as palavras”. Não informou, no entanto, em quais escolas e em que período isso teria acontecido.

Nota da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias

Depois de mais de duas semanas de negociação para uma entrevista presencial com a Secretária de Educação Roseli Duarte, a Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias optou por enviar para essa reportagem uma nota.

“Atualmente, alunos das escolas municipais: Vinte e Um de Abril, Professor Motta Sobrinho, Expedicionário Aquino de Araújo e Roberto Weguellin de Abreu têm aulas de dança, na modalidade hip hop. O projeto de dança Pequenos Passos e o programa Novo Mais Educação [estão] entre suas atividades”, afirma a nota.

Ainda que haja, em algum grau, o reconhecimento por parte das secretarias municipais de educação de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias de “processos de ensino-aprendizagem” ligados ao Movimento Hip Hop, ambas expressam preocupação de que projetos que envolvam a cultura hip hop precisem “atender interesses pedagógicos” antes de serem aceitos em sala de aula. A pergunta que se faz é: por que não atenderiam a essas expectativas?

Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.

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