Fórum Grita Baixada e a luta por justiça racial na Baixada Fluminense: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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  Autoria: Douglas Almeida
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O [[Fórum Grita Baixada]] constitui-se com um fórum de lideranças sociais, movimentos, pastorais e organizações que reivindicam políticas públicas para a Baixada Fluminense com foco na redução dos homicídios na região, além de construir caminhos para uma cultura de valorização da vida na região. O FGB busca a construção de uma narrativa de segurança pública com cidadania, defesa dos direitos humanos e direito à memória e justiça racial.
A Baixada Fluminense, historicamente, vive processos de violência, desde os grupos de extermínio à atuação de facções criminosas do tráfico de drogas e das milícias na região. Ao longo da história, a população conviveu com diversos problemas estruturais, para além da violência dada as escolhas do Estado na política de segurança pública e as desigualdades que marcam o território, sobretudo quando examinamos e comparamos a Baixada com a cidade do Rio de Janeiro. Diante disso, movimentos, coletivos e organizações constroem lutas urbanas nessa região em defesa dos direitos e no combate às desigualdades, em destaque o  [[Fórum Grita Baixada]].
 
O Fórum Grita Baixada , há 10 anos, constitui-se com um fórum de lideranças sociais, movimentos, pastorais e organizações que reivindicam políticas públicas para a Baixada Fluminense com foco na redução dos homicídios na região, além de construir caminhos para uma cultura de valorização da vida na região. O FGB busca a construção de uma narrativa de segurança pública com cidadania, defesa dos direitos humanos e direito à memória e justiça racial.
 
O fórum nasceu enquanto movimento social e ao longo dos anos passou por “metamorfoses”, com mudanças nos seus discursos e nas formas de atuação. O presente verbete busca identificar algumas das mudanças que ocorreram no modo de se debater a violência na região, tendo em vista as transformações nas dinâmicas da violência, na política e no perfil das organizações da sociedade civil da Baixada Fluminense no início do século XXI.


== A criação do movimento ==
== A criação do movimento ==
Nesse ambiente de organizações, movimentos, coletivos, ONGs e outros grupos que envolvem a participação social, o Fórum Grita Baixada nasce como um movimento social, com características que o colocam nesta categoria. Para Gohn (2004, p. 141), os movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas”. A autora afirma, ainda, que esses movimentos “possuem uma identidade, têm um opositor e articulam ou se fundamentam num projeto de vida e de sociedade” (GOHN, 2004, p. 145). Assim o FGB entra neste conceito pela identidade territorial, pela oposição à violência e por levantar uma bandeira da segurança pública com cidadania, mesmo que isso fosse algo a ser construído ao longo de sua trajetória de atuação.
Nesse ambiente de organizações, movimentos, coletivos, ONGs e outros grupos que envolvem a participação social, o Fórum Grita Baixada nasce como um movimento social, com características que o colocam nesta categoria. Para Gohn (2004, p. 141), os movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas”. A autora afirma, ainda, que esses movimentos “possuem uma identidade, têm um opositor e articulam ou se fundamentam num projeto de vida e de sociedade” (GOHN, 2004, p. 145). Assim o FGB entra neste conceito pela identidade territorial, pela oposição à violência e por levantar uma bandeira da segurança pública com cidadania, mesmo que isso fosse algo a ser construído ao longo de sua trajetória de atuação.



Edição das 09h18min de 28 de janeiro de 2023

Autoria: Douglas Almeida

A Baixada Fluminense, historicamente, vive processos de violência, desde os grupos de extermínio à atuação de facções criminosas do tráfico de drogas e das milícias na região. Ao longo da história, a população conviveu com diversos problemas estruturais, para além da violência dada as escolhas do Estado na política de segurança pública e as desigualdades que marcam o território, sobretudo quando examinamos e comparamos a Baixada com a cidade do Rio de Janeiro. Diante disso, movimentos, coletivos e organizações constroem lutas urbanas nessa região em defesa dos direitos e no combate às desigualdades, em destaque o Fórum Grita Baixada.

O Fórum Grita Baixada , há 10 anos, constitui-se com um fórum de lideranças sociais, movimentos, pastorais e organizações que reivindicam políticas públicas para a Baixada Fluminense com foco na redução dos homicídios na região, além de construir caminhos para uma cultura de valorização da vida na região. O FGB busca a construção de uma narrativa de segurança pública com cidadania, defesa dos direitos humanos e direito à memória e justiça racial.

O fórum nasceu enquanto movimento social e ao longo dos anos passou por “metamorfoses”, com mudanças nos seus discursos e nas formas de atuação. O presente verbete busca identificar algumas das mudanças que ocorreram no modo de se debater a violência na região, tendo em vista as transformações nas dinâmicas da violência, na política e no perfil das organizações da sociedade civil da Baixada Fluminense no início do século XXI.

A criação do movimento

Nesse ambiente de organizações, movimentos, coletivos, ONGs e outros grupos que envolvem a participação social, o Fórum Grita Baixada nasce como um movimento social, com características que o colocam nesta categoria. Para Gohn (2004, p. 141), os movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas”. A autora afirma, ainda, que esses movimentos “possuem uma identidade, têm um opositor e articulam ou se fundamentam num projeto de vida e de sociedade” (GOHN, 2004, p. 145). Assim o FGB entra neste conceito pela identidade territorial, pela oposição à violência e por levantar uma bandeira da segurança pública com cidadania, mesmo que isso fosse algo a ser construído ao longo de sua trajetória de atuação.

Sobre a história da fundação do Fórum Grita Baixada, dois momentos históricos são colocados como marcos desse processo: a Chacina da Baixada, em 2005 e a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em 2008. O contexto de (in)segurança na Baixada, é o ponto de partida para compreender como um grupo de organizações e pessoas lideradas por pastorais da Igreja Católica, igrejas evangélicas e o Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu decidiram em 2012 realizar alguns encontros para pensar alternativas para a superação da violência urbana na região. Naquele momento, tal reação surgiu porque uma parcela da população estava muito assustada com uma “onda de violência” na Baixada que era sentida a partir do alto índice de homicídios, o grande número de desaparecimentos forçados e o crescimento do número de roubos e furtos. Tal onda ganhava ainda mais força com rumores sobre a suposta migração da capital para Baixada de pessoas ligadas às facções criminosas a partir da expansão das UPPs (RODRIGUES, 2018).

No primeiro momento, o grupo se reuniu para ouvir as demandas de pessoas indignadas com esse crescente contexto de violência. Em 2012 houve um encontro com diversas instituições e movimentos da Baixada com o vice-governador na época, Luiz Fernando Pezão, e depois a elaboração de um documento às autoridades. No entanto, a “onda de violência” continuou com as chacinas da Chatuba e Japeri ainda naquele ano. O grupo continuou atuando e solicitou uma audiência pública com a presença do secretário de segurança. Mariano Beltrame, secretário na época, que foi até Nova Iguaçu. Ao ouvir as demandas da população ele e uma de suas intervenções disse que era “a primeira vez que a Baixada grita tão forte. O movimento era batizado: Fórum Grita Baixada” (FÓRUM GRITA BAIXADA, 2016).

O Fórum Grita Baixada já teve várias composições respeitando a estrutura base do movimento previamente acordada no estatuto. Originalmente, em documento elaborado em 2013, a composição do FGB tem quatro espaços de participação: a plenária, a coordenação, a executiva e as comissões temáticas. O estatuto foi elaborado também no período em que se buscava financiamento para o FGB, sendo assim é contemplada na estrutura também uma secretaria, uma tesouraria, uma assessoria jurídica e uma assessoria de comunicação.

Quadro 1 - Fases e formas de atuação do Fórum Grita Baixada

FGB ORIGEM TRANSIÇÃO NOVOS PROJETOS
2012-2014 2015-2016 2017 2018-2019 2020
           
Debate sobre segurança pública Segurança Pública com Cidadania Segurança Pública com cidadania Segurança Pública com cidadania Segurança Pública com cidadania
           
O que é segurança pública? Formação, Incidência e Mobilização Formação, Incidência e Mobilização Formação, Incidência e Mobilização Formação, Incidência e Mobilização
           
Reunir diversos atores / audiências públicas Produção de documentos Produção de documentos Produção de documentos Produção de documentos
           
    Ênfase na defesa dos direitos humanos Ênfase na defesa dos direitos humanos Ênfase na defesa dos direitos humanos
       
    Trabalho nos territórios Trabalho nos territórios Trabalho nos territórios
       
    Articulação com a rede de mães Articulação com a rede de mães
       
    Combate ao racismo Combate ao racismo
       
    Combate ao Covid-19 e suas consequências

O quadro acima mostra algumas fases e a forma de atuação do Fórum Grita Baixada. Primeiro, a atuação do fórum é pautada numa diversidade de atores e na possibilidade da definição interna do que é segurança pública, podendo assim ter visões distintas sobre as soluções para o tema na Baixada. É considerada uma fase de transição o período em que o movimento passa a pautar uma definição de segurança com cidadania, dialogando principalmente com o direito à vida. Mesmo com a presença do Centro dos Direitos Humanos de Nova Iguaçu na coordenação do Fórum. A partir de 2016, sobretudo em 2017, a defesa dos direitos humanos precisou ser incorporada com ênfase na narrativa, para evitar os crescentes discursos de que bandido bom é bandido morto que inflama a sociedade como um todo. Após o lançamento do filme Nossos mortos têm voz, o FGB incorporou na sua discussão o acompanhamento da rede de mães e também a pauta racial, sobretudo com o projeto direito à memória e a justiça racial. Por fim, o ano de 2020 traz a peculiaridade da pandemia e olhar para outras violações que a baixada sofre principalmente em relação à segurança alimentar, além de retornar a estrutura anterior de 2017 com a saída do projeto direito à memória e a justiça racial da alçada do Fórum.

Quadro 2 - Histórico da “equipe liberada” do Fórum Grita Baixada

FGB ORIGEM TRANSIÇÃO NOVOS PROJETOS
2012 - 2014 2015-2016 2017 2018/2019 2020
               
SECRETARIA SECRETARIA MANUTENÇÃO SITE COORDENADOR

ARTICULADOR DE TERRITÓRIO

COMUNICADOR

COORDENADOR

ARTICULADOR DE TERRITÓRIO

COMUNICADOR

EQUIPE DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL COORDENADOR

ARTICULADOR DE TERRITÓRIO

COMUNICADOR

   
ASSESSORIA DE IMPRENSA

O quadro acima retrata as modificações na “equipe liberada” do Fórum Grita Baixada ao longo dos anos desde a sua fundação. A partir de 2017 a equipe ganhou uma estrutura maior já a partir da concepção do novo projeto aprovado pela financiadora alemã. O projeto aprovado pela Misereor tinha três objetivos específicos, o primeiro relacionado aos núcleos, o segundo sobre a elucidação de casos de homicídio na Baixada e o terceiro sobre o impacto na incidência nas políticas públicas de segurança na região. A descrição do primeiro, segundo pesquisa em materiais recebidos por correio eletrônico durante minha participação ativa no Fórum Grita Baixada, continha a organização dos moradores de Imbariê, em Duque de Caxias, e Gogó da Ema, em Belford Roxo, em núcleos de direitos humanos. O segundo objetivo descrevia o aumento no número de investigações de homicídios na Baixada Fluminense, e a necessidade de investir nos processos de responsabilização dos culpados, em parceria com órgãos do Poder Judiciário e entidades que atuam no campo do atendimento psicológico e de defesa dos direitos humanos. Por último, o terceiro apontava para o aumento no número de incidências do Fórum Grita Baixada nos processos de construção das políticas públicas de direitos humanos e segurança da população, a partir da articulação do mesmo com entidades nacionais e internacionais.

As atividades do Fórum

De 2012 a 2020, o FGB realizou ou participou de centenas de atividades, desde ações promovidas na carteira de projetos ou estimuladas pelos participantes ativos do fórum. No quadro vemos um perfil parecido de ações entre 2012 e 2015, tendo os anos de 2015 e 2016 como transição para um novo momento do movimento social. Em 2012, 2013 e 2014, o fórum se dedicou em promover encontros, caminhadas, ser um espaço de discussão, é definido originalmente como um movimento social, que possuía disputas internas sobre o discurso a ser feito sobre a segurança pública. Mesmo majoritariamente composto por pessoas progressistas, existiam disputas mais à esquerda, como a criação de espaços de denúncia, e mais à direita, como a defesa de invasões e confrontos como método eficaz de enfrentamento ao tráfico. Nesses anos, os principais parceiros do fórum eram internos à Diocese de Nova Iguaçu, com poucas exceções como o Viva Rio e os conselhos comunitário e de segurança de Nova Iguaçu. Neste período, também foi oficializado o primeiro projeto da Misereor.

Em 2015 e 2016, é possível observar um processo de transição para uma fase de mais reconhecimento, o que posteriormente possibilitou ao fórum aprofundar o debate sobre violência na Baixada. Mas, nesse período, houve um misto de atividades que focaram na violência e que falavam sobre outros assuntos. O curso de segurança pública com cidadania marcou a entrada de vez do termo segurança cidadã no vocabulário do fórum, demarcando um primeiro posicionamento sobre a postura do grupo frente às discussões da violência. A Carta da Baixada trouxe propostas construídas por várias mãos, o que não possibilitou uma identidade mais marcante. Em 2016, o relatório “Um Brasil dentro do Brasil pede socorro”, mesmo trazendo a desigualdade e os problemas da Baixada para além da violência, demarcou a defesa dos direitos humanos como algo central. Neste mesmo ano, as ações contra o impeachment e o revezamento da tocha da vergonha mostraram o fórum ainda preocupado em debater temas para além da segurança, dedicando inclusive boa parte do tempo para isso.

Ao considerar o período entre 2017 e 2019, nestes anos houve a renovação do projeto Misereor, com um foco maior no debate direto de violações de direitos humanos na Baixada. Inicialmente, os núcleos que eram para ser "de direitos humanos" para encaminhar denúncias, se tornaram espaços de diálogo sobre a violência com outras ações como pré-vestibular, debate sobre mobilidade urbana, ações pró melhoramento no bairro, dentre outras coisas. Resumindo, a primeira iniciativa ainda enfrentava o medo de discutir a violência na Baixada, as ações dos núcleos não caminhavam para o debate sobre a violência na região. Além do fator medo, falar sobre outros temas também sempre foi uma estratégia de mobilização do Fórum Grita Baixada. É muito mais fácil mobilizar pessoas em um pré-vestibular do que em uma roda sobre as invasões no Gogó da Ema; ou para falar da qualidade do trem em Imbariê do que do histórico dos grupos de extermínio em Duque de Caxias. A metodologia das cartografias sociais ajudou a discutir esses problemas, incluindo a violência. A dificuldade neste processo é que ao focar em outras ações, a tendência era perder a identidade do grupo local com o FGB.

Quadro 3 - Resumo das principais atividade, parcerias e financiamento do FGB

ANO PRINCIPAIS ATIVIDADES PRINCIPAIS PARCERIAS INSTITUCIONAIS FINANCIAMENTO
2012 1. Fundação CDH e Diocese de Nova Iguaçu Sem financiamento / apoio do CDH e da Diocese de Nova Iguaçu
2. Audiência Pública
2013 1. Formações CDH, Diocese de Nova Iguaçu, Viva Rio, Conselhos de Segurança e Defensoria Pública Sem financiamento / apoio do CDH e da Diocese de Nova Iguaçu
2. Reuniões
3. Estruturação da Coordenação
2014 1. Reuniões CDH, Diocese de Nova Iguaçu, movimentos e pastorais da Baixada Misereor
2. Caminhadas pela Paz
3. Eleições 2014
2015 1. Curso de Segurança Pública e Cidadã CDH, Casa Fluminense, movimentos e pastorais da Baixada Misereor, crowdfunding e Casa Fluminense
2. Carta da Baixada
3. Reuniões e atos públicos
4. Assembleia do FGB
2016 1. Ato contra o impeachment da Dilma CDH, movimentos e partidos de esquerda da Baixada Misereor, contribuição dos grupos envolvidos nas ações e CDH
2. Revezamento da Tocha da Vergonha
3. Relatório "Um Brasil dentro do Brasil..."
2017 1. Coordenação do projeto e assembleia CDH, movimentos da Baixada, Casa Fluminense Misereor
2. Criação dos núcleos
3. Semana da Baixada
4. FIVV
5. Seminários (Queimados, comunicação, etc.)
2018 1. Documentário Nossos Mortos têm voz CDH, Casa Fluminense, Quiprocó Filmes, Rede de Mães da Baixada, movimentos da Baixada e da capital Misereor, Fundo Brasil dos Direitos Humanos, Fundação Ford, Fundação Heinrich Böll e CDH
2. Projeto Direito à Memória e Justiça Racial
3. Reuniões e atos públicos
4. Encontros nos núcleos
2019 1. Materiais informativos (boletins, cartografias) Casa Fluminense, PROFEC, Rede de Mães, Quiprocó Filmes, movimentos da Baixada e da capital Misereor, Fundo Brasil dos Direitos Humanos e Fundação Ford
2. Exibições do documentário
3. Atividades com a Rede de Mães
4. Encontros nos núcleos
5. Separação da IDMJR
2020 1. Ação nas redes Viva Rio, movimentos da Baixada e da capital Misereor, Fundo Brasil dos Direitos Humanos, doações de cestas e cartões de alimentação de parceiros.
2. Ações de enfrentamento ao COVID-19

Enquanto isso, no eixo da incidência política, a Frente Intermunicipal de Valorização da Vida (FIVV) não decolava, pelo próprio perfil das prefeituras da Baixada. O grande diferencial neste período foi o documentário "Nossos mortos têm voz", a partir dele foi possível discutir a violência de Estado e o racismo através das histórias das mães vítimas da violência na Baixada Fluminense. Através do documentário, o FGB se aproximou de outros financiadores como o Fundo Brasil de Direitos Humanos e a Fundação Ford, ampliando através dos projetos a discussão sobre racismo na Baixada Fluminense. Vemos aqui a metamorfose acontecendo como consequência de uma ação / produto (documentário e exibições) e da conjuntura de violência no Rio de Janeiro, após assassinato da vereadora Marielle Franco.

Mesmo com a saída da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, o FGB continuou pautando o racismo em suas ações. Antes, além de não fazer essa discussão interna sobre o tema, o projeto Misereor não tinha essa discussão como eixo central. Sendo assim, nem o coletivo de organizações e movimentos antes de 2017 / 2018 fazia essa discussão do racismo, como observamos na ausência dessa pauta nas publicações e ações, nem o projeto Misereor tinha o tema como eixo central, passando o racismo a ser discutido com mais veemência no espaço com o documentário “Nossos mortos têm voz” e depois com o projeto financiado pela Fundação Ford.

As metamorfoses do movimento

As “metamorfoses” do Fórum Grita Baixada tiveram um papel mais central para o grupo na maneira em que se discute violência na Baixada do que as mudanças na conjuntura política e na segurança pública. Diante da lógica do medo e da aproximação da população com um discurso conservador, era mais fácil acreditar que o fórum recuaria em suas ações em 2018, mas não foi o que aconteceu, sobretudo a partir da execução dos projetos. No entanto, não podemos deixar de destacar as transformações na violência, o que gerou novos debates no fórum e a sua própria fundação. Além disso, a conjuntura política colocou a organização mais num lugar de enfrentamento às práticas governamentais do que de colaboração, o que inicialmente era buscado nos encontros e reuniões com autoridades. O FGB se mostrou, parafraseando Raul Seixas, uma “metamorfose ambulante”, não mantendo “a velha opinião formada sobre” a violência na Baixada.

Dada essa “metamorfose”, é possível dizer que de forma prática e teórica o Fórum Grita Baixada deixou de ser um movimento social e se tornou uma instituição não formalizada do terceiro setor. Ele não é mais o espaço onde apenas se discute a violência e possíveis soluções coletivas para superar os problemas; isso é até feito, mas no âmbito da execução de projetos, diferentemente do período pós-fundação onde as proposições saíam do grupo (pessoas, movimentos e organizações).

A própria estrutura do Fórum Grita Baixada, com a “equipe liberada” (quem recebe mensalmente para trabalhar no fórum) sendo financiada pelos projetos, fez com que boa parte da dedicação desta equipe (coordenação geral, articulação territorial e comunicação) fosse para as ações que foram acordadas com o financiador. Com isso, o espaço da “coordenação ampliada” tornou-se o momento em que outras ideias e ações poderiam surgir, desde que os membros assumissem a execução das tarefas, pois a equipe contratada tem um conjunto de ações para desenvolver, a partir da gestão dos projetos. No entanto, desde a chegada de novos projetos para além da Misereor, ficou mais difícil a “equipe liberada” assumir outras ações. Com a pandemia e o esvaziamento do espaço de coordenação ampliada pela ausência de encontros, o FGB passou a se dedicar mais à execução dos projetos. Não estou aqui questionando a efetividade dos projetos, nem a relevância, pelo contrário, o que muda nesse processo é a caracterização do fórum enquanto movimento social.

O Fórum enquanto movimento social encontrou dificuldades ao longo dos anos em discutir a violência na Baixada Fluminense, pois as pessoas esbarram no medo e num campo fluido de ideias, onde vários temas podem ser abordados para mobilizar e aconchegar pessoas e coletivos da região. Quando a equipe de coordenação liberada passa a se dedicar quase integralmente à execução dos projetos, fica mais evidente a pauta da segurança pública e com um perfil progressista que envolve discussões sobre o racismo e a defesa dos direitos humanos, mesmo numa conjuntura mais desfavorável do que no período da fundação do Fórum Grita Baixada.

Considerações finais

Como lição, para outros movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a discussão sobre violência na Baixada não é trivial e passa por estratégias de ação que garantam a segurança dos mobilizadores. É muito difícil juntar pessoas para falarem sobre temas mais diretos, como homicídios, milícias, violência política, ações que mexam com a economia das organizações criminosas, violência do Estado, dentre outras situações que envolvam atores locais. Mas, é possível não só fazer ações sobre temas distintos à segurança pública, mesmo relacionando a ausência de políticas públicas a má qualidade de vida da população, é possível falar de segurança abordando o tema do racismo, popularizando a ideia de "necropolítica" e ampliando o imaginário sobre os direitos humanos. Essas discussões foram possíveis no âmbito da execução de projetos financiados, principalmente nas exibições populares do documentário “Nossos mortos têm voz”, o que envolve uma equipe menor, uma tomada de decisão mais direta e a necessidade de prestar contas ao financiador. Esse caminho pode ser a curto prazo o mais rápido para garantir que esse tipo de assunto seja colocado em pauta na região.

No entanto, esse método enfrenta problemas. A descaracterização enquanto movimento social pode a longo prazo fazer com que o FGB deixe de existir caso não tenha mais financiamento. Ao contrário do início da trajetória, em que as ações eram na maioria voluntárias e a participação envolvia mais membros do que a “equipe liberada”, a comodidade da execução por parte dessa equipe e o resultado positivo da gestão de projetos, afastou boa parte da coordenação ampliada e de membros antigos do fórum do processo de execução, tornando-os na maioria “simpatizantes ou conselheiros”, dando este formato, mesmo que informal, de instituição da sociedade civil.

Referências

GOHN, Maria da Glória Marcondes. Sociedade civil no Brasil: movimentos sociais e ONGs. Nomadas (col), n. 20, p. 140-150, 2004.

FÓRUM GRITA BAIXADA. Um Brasil dentro do Brasil pede socorro. Nova Iguaçu, 2016.

RODRIGUES, André (org). Homicídios na Baixada Fluminense: Estado, Mercado, Criminalidade e Poder. Comunicações do ISER, n. 71, ano 37, 2018. Disponível em http://www.iser.org.br/site/wp-content/uploads/2013/12/2018-08-06-publicacao71-iser-WEB. pdf Acessado em 15 jun 2020.