Nota técnica: Desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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A presente Nota Técnica versa sobre a ocorrência cada vez mais visível, em especial, nos territórios mais proletarizados, demarcado pela população negra, que é o Desaparecimento Forçado. Trata-se de uma ocorrência que não se instaura no período contemporâneo, mas guarda uma permanência histórica do processo colonial, passando pelo período da ditadura empresarial-militar, cuja prática de desaparecimentos forçados torna-se institucionalizada e chegando ao presente. Compreender o cenário atual de uma capilarização da necropolítica é recuperar esse passado nunca lido a contrapelo e que insiste em marcar as trajetórias dos corpos negros com violência tanto física, quanto simbólica. É essa a perspectiva apontada na presente Nota Técnica que busca realizar um diagnóstico histórico para o desafio dos desaparecimentos, sem perder de vista o quão essa prática vem tendo ampliação no atual cenário de fascistização social global.

Autoria: Fórum Grita Baixada
Grupo de trabalho interinstitucional de Defesa da Cidadania


Este material foi originalmente publicado no site oficial do Fórum Grita Baixada, em 16 de novembro de 2020, sendo assinado por: Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro, Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, Fórum Grita Baixada, Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro, Maré 0800 – Movimento de Favelas do Rio de Janeiro, Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial/Baixada-Fluminense-RJ.

Introdução[editar | editar código-fonte]

Desde 2019, Fórum Grita Baixada, é integrante do Grupo de Trabalho Interinstitucional de Defesa da Cidadania do Ministério Público Federal (MPF), em parceria com outras organizações, instituições, coletivos e movimentos que militam na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Baixada Fluminense e na cidade do Rio de Janeiro. O GT foi criado pela Câmara De Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do MPF (7CCCR/MPF) e conta com representantes do próprio MPF e de Defensorias Públicas.

Raízes do problema: os desaparecidos de ontem e de hoje[editar | editar código-fonte]

O aprisionamento e a retirada forçosa de corpos de seus territórios perpassa toda a formação social e econômica brasileira desde o tempo de colonização até o atual período dito democrático. O sistema colonial deixou um rastro de extermínio dos povos originários: escravização, pilhagem, expulsões, expropriações, doutrinação cristã, violência e espoliação por onde passou as expedições ‘civilizatórias’.

Foram 12,5 milhões de africanos e africanas transportados para as Américas entre os séculos XVI ao XIX em quase 20 mil viagens, sendo 64,6% formados por homens e 35,4% por mulheres. Ademais, 2,5 milhões de pessoas morreram durante o translado. Sendo que 5,8 milhões de escravos foram enviados para o Brasil através de embarcações portuguesas, o Brasil foi o maior destino de escravos do tráfico negreiro nas Américas durante três séculos, 1560 a 1850[1].

Ademais, o grau de violência na captura de negras e negros do continente africano e o processo de desumanização e, em seguida, as suas transformações em simples mercadorias dispostas no comércio ultramarino, sendo reféns dos anseios do capital, portanto, o violento nascimento do capitalismo está totalmente associado à escravidão do povo negro servindo como alavanca do processo de acumulação originária[2].

Nesse sentido, há que se reconhecer que a expansão socioeconômica do capitalismo se efetivou a partir de um processo de escravidão, seja dos negros africanos, seja dos índios das Américas, com um caráter violento na captura do povo africano, viabilizado através de mecanismo de tortura, sequestro e dominação de corpos negros, como nos lembra Eric Willians (2012) “O chicote, diziam os fazendeiros, era necessário para manter a disciplina. Abolido, ‘adieu a toda paz e conforto nas fazendas’” (p. 271).

Logo, a realização de desaparecimentos forçados não se origina apenas no período da ditadura empresarial-militar na América Latina, e sim, ao longo de todo brutal processo de colonização do continente, marcado pelo extermínio dos povos originários, subjugação dos povos africanos, pilhagem, espoliação e destruição de recursos naturais, entre outros processos dramáticos de humilhação e subordinação das colônias para inserção subordinada dos países latino-americanos na fase industrial do capitalismo mundial.

No Brasil, as marcas desse processo não foram passadas a limpo. Uma recriação permanente da sua história, que nos legou no plano do pensamento social brasileiro a noção ainda presente de uma democracia racial, uma história construída a partir do “homem cordial”. Sueli Almeida (2001) analisa tal perspectiva e coloca como um desafio refletir sobre o presente marcado por uma constante de violência, inclusive institucional, que impõe

“evitar o ‘presenteísmo constante’ de que nos fala Hobsbawm (1995), (...), que constitui um traço histórico contemporâneo e que hipertrofia o presente, destruindo os seus nexos com o passado, o que, no limite, significa a própria destruição da história. A tentativa, então, é de fazer uma primeira aproximação que indique possibilidades de reconstruir os nexos históricos de diferentes modalidades de violência, plasmadas em uma cultura particular”. (p. 2)[3]

Nesse sentido, os métodos de desaparecimentos forçados de corpos foram utilizados constantemente como forma de terror do Estado em diferentes tempos históricos e sob distintas condições. Entretanto, ressalta-se que nos dramáticos anos da ditadura empresarial-militar na América Latina, o desaparecimento forçado de pessoas foi empregado como instrumento político de amplo cerceamento de liberdade e cassação de direitos políticos.

O caráter de privação de liberdade através da captura, sequestro, tortura, mutilação e outros métodos torpes de desumanização e controle de corpos durante a vigência do período ditatorial brasileiro deixaram marcas latentes na memória social e na atuação política da sociedade até os dias atuais.

O que se observa na manutenção de tais práticas, é a permanência de ações por parte de frações da elite e organizações políticas (internas ou não ao Estado) que possuem o monopólio de poder econômico e político na sociedade, utilizando-se de formas de captura, torturas e execuções para eliminar seus opositores políticos.

Não é pouco significativo que pela primeira vez nos últimos 17 anos, o Brasil não ficou em 1° lugar no ranking dos países onde mais se assassinam defensoras e defensores de direitos humanos. Segundo, o relatório “Inimigos do Estado?” da Global Witness (2019)[4] , o Brasil encontra-se na 4° posição do ranking de execuções de ativistas de direitos humanos, ficando atrás de países como Filipinas, Colômbia e Índia.

O quadro no Estado do Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]

Ao longo dos anos 2000, quase 87 mil pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro. No gráfico abaixo, podemos observar que com a implementação e expansão da UPP na área metropolitana do Rio de Janeiro, os casos de pessoas desaparecidas registraram uma trajetória pujante de crescimento. Em 2003 foram 4.800 casos de desaparecimentos, um aumento de 32% em relação a 2015, um total de 6.348 pessoas desaparecidas. Apenas em 2019, o Instituto de Segurança Pública registrou 2.807 casos de desaparecimento em todo o estado.

A completa ausência da categorização sobre desaparecimentos forçados evidencia o nítido desinteresse político para investigações desses casos. Afinal, a maior parcela dos casos de desaparecimentos forçados envolvem agentes ou ex-agentes de segurança pública e/ ou pessoas da estrutura institucional do próprio Estado.

Os casos de autos de resistências são emblemáticos em como a execução e descarte de vidas ocorre de forma cotidiana e sistemática em áreas periféricas, sendo esses territórios os que mais sofrem com as intensas violações cometidas pelo Estado. Ao observar a trajetória de autos de resistência em todo o Rio de Janeiro, destaca-se o crescimento exponencial dos registros de assassinatos cometidos por intervenção policial a partir da UPP e da expansão das áreas de controle das milícias.

Em 2018, foram registrados 1534 vidas ceifadas devido aos autos de resistência, um aumento de 36% em relação ao ano anterior. O maior número de assassinatos cometidos por agentes do estado de toda a série histórica!

Entretanto, a maior parcela das violações cometidas pelo Estado não chegam a ser registradas. Além da problemática das subnotificações, as metodologias utilizadas pelos órgãos oficiais não são disponibilizadas para livre acesso e os procedimentos metodológicos são alterados de acordo com os interesses do Estado para esconder a ineficiência da política de segurança pública que não trata o enfrentamento do racismo institucional como uma questão estrutural.

O tratamento dado pelas autoridades do campo da segurança diante dos relatos familiares sobre desaparecidos é o demarcado pelo racismo estrutural: são famílias negras, cujos filhos jovens são vistos como vinculados à criminalidade, o que representa um comportamento leniente por parte dos agentes públicos.

Há que se reconhecer que no Brasil não há uma tipificação para os crimes de desaparecimentos forçados mesmo havendo inúmeras recomendações internacionais sobre a temática e principalmente sobre o grau de omissão do Estado diante dos incontáveis casos registrados nas dependências policiais de desaparecimentos de corpos que ocorrem em áreas periféricas e faveladas. Os casos que deveriam ser tipificados como desaparecimentos forçados impondo um outro procedimento investigatório, no entanto, são alocados de forma generalista na categoria de pessoas desaparecidas.

Tal perspectiva se evidencia se tomarmos como base os dados na Baixada fluminense, território marcadamente formado pela população negra. De 2010 a 2018, 3.725 pessoas foram executadas por intervenção de agentes do Estado na Baixada, esses dados ratificam o racismo estrutural e institucional no processo de extermínio do povo preto, pobre e periférico.

Nos últimos 5 (cinco) meses de 2019, 531 pessoas desapareceram, um aumento de 6,2% em relação ao mesmo período de 2018. Entretanto, os dados oficiais não representam a realidade brutal da Baixada, considerando a recorrente problemática da subnotificação nos casos de homicídios e desaparecimentos.

Aproximadamente 60% do total de pessoas desaparecidas no Estado ocorrem na Baixada Fluminense. A metodologia dos dados oficiais não engloba os casos de desaparecimentos forçados dificultando ainda mais a possibilidade de quantificar o real número de pessoas vítimas da violência urbana que são executadas pelo Estado.

Ressalta-se que a Convenção Interamericana de Desaparecimentos Forçados de Pessoas, da qual o Brasil é signatário desde de 1994, o desaparecimento forçado é:

ARTIGO II Para os efeitos da presente Convenção, considera-se desaparecimento forçado a privação da liberdade de uma ou mais pessoas, por qualquer forma, cometida por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com a autorização, com o apoio ou com a anuência do Estado, seguida da falta de informação ou da negativa de se reconhecer dita privação da liberdade ou de se informar o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.

Trata-se do reconhecimento dos impactos no campo de um estado democrático e de direito a permanência constante desse tipo de ilícito: o desaparecimento forçado. Não sem razão, a OEA ao aprovar a Convenção Interamericana de Desaparecimentos Forçados de Pessoas, e repisa-se, o Brasil é signatário, estabelece como um compromisso dos signatários:

ARTIGO I Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a: a) Não praticar, não permitir, nem tolerar o desaparecimento forçado de pessoas, mesmo em estado de emergência, alerta ou suspensão de garantias individuais; b) Sancionar, no âmbito da sua jurisdição, os autores, cúmplices e acobertadores do delito de desaparecimento forçado de pessoas, assim como a tentativa de cometer o mesmo; c) Cooperar entre si com vistas a contribuir para a prevenção, penalização e erradicação do desaparecimento forçado de pessoas; e d) Tomar as medidas de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de qualquer outra natureza necessárias ao cumprimento dos compromissos assumidos na presente Convenção.

É forçoso reconhecer que o perfil das vítimas, em geral, é o de jovens, pretos e pardos, com baixa escolaridade, do sexo masculino e moradores de favelas e periferias. O histórico de violência urbana na Baixada Fluminense é marcado pelo cotidiano desaparecimento de corpos, mortes que são ignoradas pelas estatísticas oficiais.

As Mães de vítimas da violência do Estado recebem informações diárias de jovens que sofreram esse tipo de violação. Na maioria dos casos, os desaparecimentos forçados ocorrem com o envolvimento da própria polícia militar, polícia civil e da milícia que atuam nos territórios.

Atualmente, as áreas com maior número de denúncias e depoimentos de desaparecimentos forçados são as áreas de controle de milícias que de forma arbitrária e violenta encarceram, assassinam e desaparecem com os corpos dessas pessoas. Os corpos são descartados em cemitérios clandestinos ou rios para impedir a identificação das vítimas.

Há um processo de acirramento da disputa territorial entre frações de milícias na Baixada nos últimos meses. Conforme informações sistematizadas pelo Fórum Grita Baixada, mais de 50 pessoas foram executadas e tiveram seus corpos torturados, mutilados e deixados à margem do Rio Guandu em Nova Iguaçu[5].

Ocorreu também uma chacina em Belford Roxo, no bairro Vila Dagmar, em que 4 pessoas foram assassinadas e 16 pessoas feridas em um bar da região. E após uma investigação sobre milícias em Itaboraí, um cemitério clandestino foi encontrado sendo utilizado para descartar corpos no município[6].

Apesar de nosso país ter assinado, em 1994, a Convenção Interamericana de Desaparecimentos Forçados de Pessoas, a prática persiste no Brasil, especialmente contra os mais pobres e negros. Em que pese a ausência de um marco legal no Brasil específico sobre o tema, dando a relevância e abrangência e, especialmente diante da constância que se verifica, torna-se necessário dentro do campo da segurança apontar protocolos que possibilitariam uma atuação mais incisiva dos agentes públicos.

Nesse sentido, é esta para recomendar:

a) A criação de um protocolo de investigação com o tema desaparecimentos forçados, permitindo uma atuação mais ágil por parte dos agentes públicos do campo da segurança;

b) Torna-se necessário garantir o primado da responsabilidade objetiva do Estado diante de tal violação, garantindo-se a reparação econômica e psicossocial para as vítimas e familiares;

c) O Instituto de Segurança Pública construir um indicador com a categoria Desaparecimentos Forçados com objetivo de qualificar a política de segurança pública.

Assinam: GRUPO DE TRABALHO INTERINSTITUCIONAL DE DEFESA DA CIDADANIA.

Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Fonte: Relatório da Voyages - The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Acessível em https://slavevoyages.org/.
  2. WILLIANS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
  3. Acessível em https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/violc3aancia-e-subjetividades-sueli-almeida.pdf.
  4. Acessível em https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/enemies-state/?utm_source=hootsuite&utm_medium=twitter_
  5. https://oglobo.globo.com/rio/tribunal-das-milicias-tem-morte-por-fogo-espada-esquartejamento-maes-de-vitimas-se-unem-por-justica-23919790?fbclid=IwAR2Q8ii3KTKXlqSjsQFvklGVLgbgF7wiJ_VltrWuhGeWoKsk1oytsIx2HhM
  6. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/07/5660716-policia-e-mp-encontram-cemiterio-clandestino-que-seria-da-milicia-de-itaborai.html