Política na favela (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Sem resumo de edição
Sem resumo de edição
 
(2 revisões intermediárias por 2 usuários não estão sendo mostradas)
Linha 1: Linha 1:
 
Autor: Luiz Antonio Machado da Silva  
'''Autor: Luiz Antonio Machado da Silva'''  
Publicado originalmente em: Revista Cadernos Brasileiros, Ano IX, no 41, 1967, pp. 35-47<ref>À época da primeira publicação deste artigo, o autor era pesquisador da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) do Governo do Estado da Guanabara. Para mais informações sobre a biografia do autor, consultar a entrevista neste número, pp. 663-698.</ref>, republicado na [https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/viewFile/7275/5855 DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social] - Vol. 4 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2011 - pp. 699-716, e gentilmente cedido pelo autor para reprodução neste Dicionário. &nbsp;
 
'''Artigo originalmente publicado&nbsp;na revista Cadernos Brasileiros, Ano IX, no 41, 1967, pp. 35-47<ref>À época da primeira publicação deste artigo, o autor era pesquisador da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) do Governo do Estado da Guanabara. Para mais informações sobre a biografia do autor, consultar a entrevista neste número, pp. 663-698.</ref>, republicado na revista&nbsp;[https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/viewFile/7275/5855 DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social] - Vol. 4 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2011 - pp. 699-716, e gentilmente cedido pelo autor para reprodução neste Dicionário.''' &nbsp;


= '''A política na favela''' =
= '''A política na favela''' =
<p
<


&nbsp;
&nbsp;

Edição atual tal como às 17h57min de 14 de julho de 2023

Autor: Luiz Antonio Machado da Silva  

Publicado originalmente em: Revista Cadernos Brasileiros, Ano IX, no 41, 1967, pp. 35-47[1], republicado na DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 4 - no 4 - OUT/NOV/DEZ 2011 - pp. 699-716, e gentilmente cedido pelo autor para reprodução neste Dicionário.  

A política na favela[editar | editar código-fonte]

A questão das favelas costuma ser estudada com finalidades pragmáticas sob dois tipos de análise: a que pretende propor “soluções” para o “problema social das favelas” e a que pretende traçar linhas de ação político - ideológicas − esta em muito menor quantidade.

O primeiro tipo geralmente parte do pressuposto − explicito ou não − de que é preciso “integrar” as favelas e os favelados à “comunidade nacional”, o que implica, obviamente, afirmar que as favelas são autônomas, com uma vida própria e mais ou menos independente. Em geral, essa ideia de autonomia é expressa em termos de “marginalidade” sociopolítica e econômica.

Não há dúvida de que, em certo sentido, a favela é de fato marginal. Ela é marginal, por exemplo, pela dificuldade de acesso a certos serviços urbanos, a certos tipos de bens de consumo durável, a certas formas de comunicação de massa etc., embora sempre desfrute, em diversos graus, de tudo isso. Mas essa abordagem é perigosa. Em primeiro lugar, porque tende a ignorar ou reduzir a importância das íntimas vinculações entre a favela e o sistema global. A favela não é uma comunidade isolada: sua própria existência depende muito mais de determinadas condições estruturais da sociedade global do que dos mecanismos internos desenvolvidos para mantê-la. Em segundo, porque a noção de que a favela é uma “comunidade marginal” não passa de um julgamento de valor que, por um lado, dá origem a uma atitude paternalista e assistencialista e, por outro, fornece as bases “teóricas” para tentativas de imposição das normas e valores dos grupos de classe média que detêm o poder de escolha das “soluções” adotadas por eles (e não pelos próprios favelados), consideradas as mais adequadas para aquele “problema social das favelas”. Trata-se, assim, de uma visão deformada da realidade desses locais.

O segundo tipo de análise considera o favelado como um grupo particular dentro de uma camada social, de modo que a favela é encarada de um ponto de vista muito mais global, como parte do lumpenproletariat. Portanto, não há propriamente, nesse caso, uma análise específica das condições das favelas, a não ser um mínimo necessário para a descoberta de palavras de ordem que possam atingir e polarizar toda a camada social (favelada e não favelada). Mas também essa perspectiva apresenta sérias deformações. Primeiro porque, sem se constituir em um sistema autônomo, autossuficiente e independente, a favela apresenta um grau de especificidade que não deve ser menosprezado. Ela possui formas de organização que parecem ser exclusivas, recursos econômicos próprios (embora na maioria criados e mantidos por fatores externos), que inevitavelmente afetam as atitudes e o comportamento político de seus moradores. Segundo porque a favela não é, de forma alguma, um grupo dentro de um estrato social. Não obstante muitos de seus moradores poderem ser incluídos, não sem certa impropriedade, no que se poderia chamar de subproletariado, não se deve ignorar o fato de existirem aí em quantidade operários qualificados, funcionários públicos, bancários, comerciários, além de um bom número de proprietários − isso para falar apenas em características socioeconômicas.

Apesar das flagrantes diferenças entre os dois tipos de análise, inclusive em suas bases ideológicas, há um ponto comum entre elas, talvez o maior responsável por suas deficiências: considerar a existência de um tipo único de favelado. Na medida em que as favelas são categorizadas e definidas como entidades especiais pela sociedade global e, em consequência, pelos seus próprios moradores, essa noção é, pelo menos parcialmente, aceitável. Se se pode falar em termos de “caráter nacional brasileiro”, apesar das notórias diferenças entre grupos e classes internos e de suas semelhanças com grupos e classes de outros países, talvez se pudesse falar também em um “caráter do favelado”. Ou seja, se é possível definir e identificar um brasileiro típico, o mesmo talvez pudesse acontecer com um morador de favela.

Entretanto, apesar da validade que essa perspectiva possa ter para certos estudos, no mais das vezes − e especialmente naquelas de conteúdo político −, ela não faz senão deformar a análise, uma vez que, além da variedade de orientações que provêm dos estímulos e influências recebidos no desempenho de papéis definidos fora das favelas, não se pode ignorar que a organização desses espaços é de uma complexidade impressionante, proporcionando, assim, as bases internas para uma nítida diferenciação social. Qualquer análise do processo político nas favelas e das atitudes e comportamentos dos favelados que se pretenda objetiva deve partir da noção de que a favela é uma organização transversal[2], isto é, tem uma base geográfica em geral bastante definida que envolve uma extensa gama de atividades e situações e apresenta profundas conexões com outras organizações e atividades, em uma extensão territorial mais ampla. É necessário enfatizar as bases geográficas definidas das favelas, porque elas permitem uma organização com pequeno grau de burocratização e impessoalidade.

Essas características organizacionais − a transversalidade e as relações pessoais − parecem fazer com que as favelas funcionem como espécies de agentes refratores de certos fatores da sociedade global que influenciam as atividades e os comportamentos políticos de seus moradores. Não é ocioso explicitar que, quando me refiro a tais atitudes e comportamentos, não quero dizer que eles sejam exclusivos dos favelados, mesmo porque não conheço quaisquer estudos comparativos entre favelas e outras organizações. Refiro-me apenas aos que podem ser empiricamente identificados nos moradores da favela e que provavelmente são, pelo menos em parte, condicionados por sua forma de organização. Não é impossível, nem mesmo improvável, que atitudes e comportamentos semelhantes manifestem-se fora das favelas, provocados por outras formas de organização que influenciem seus membros de maneira semelhante.

Outro ponto a considerar em análises de conteúdo político é que a favela apresenta uma forma de organização tipicamente capitalista, com uma vitalidade econômica que chega a espantar aqueles que com ela se defrontam. As alternativas disponíveis na favela para investimento e acúmulo de capital – em uma palavra, os recursos internos − são as mais diversas, indo da criação de animais à especulação imobiliária e à produção de manufaturas.

Esses recursos internos são a base sobre a qual se cristaliza, a partir de sua exploração econômica, uma diferenciação social bastante definida, com uma burguesia favelada monopolizando o acesso, o controle e a manipulação dos recursos econômicos, além das decisões e dos contatos políticos. Raciocinar, pelo menos em uma análise política, em termos de um tipo único de favelado é, portanto, um verdadeiro absurdo, da mesma forma que o é imaginar que a favela possa assumir, em termos de atividades políticas nos âmbitos estadual ou federal[3], uma linha de ação homogênea (exceto em certos casos excepcionais, em condições de crise ou no que se refere a determinados assuntos).

Resta ainda salientar como de suma importância o fato de que os recursos internos da favela, e em consequência sua própria estratificação, dependem em grande parte de fatores externos, como veremos de forma resumida mais adiante. Desse modo, parece que o poder político da burguesia favelada no nível estadual e no federal − derivado fundamentalmente de sua potência eleitoral que, aliás, parece ser, de certo modo, supervalorizada − é canalizado e restrito a meras condições de barganha de votos por acréscimo ou manutenção dos recursos internos, isso é, de sua posição na estratificação da favela. Os recursos, por sua vez, parece que só podem ser considerados como tais na medida em que a favela permanecer uma organização com as características acima descritas, pois, do contrário, os empreendimentos internos seriam esmagados pelo volume e pela qualidade dos demais empreendimentos urbanos congêneres, ou por imposições de ordem jurídica e tributária.

De maneira geral, pode-se dizer que apenas os favelados do estrato superior – os que controlam os recursos internos − desenvolvem atividades políticas. Mesmo assim, muitos deles são inteiramente alheios a elas. Salvo raras exceções, os favelados dos estratos mais baixos representam apenas “massa de manobra”, padecendo de uma permanente exploração de impressionante intensidade, disfarçada por relações pessoais e mais ou menos íntimas. Tudo indica que estes favelados não tenham a menor consciência política, seja em termos “de classe”, seja mesmo sobre os problemas internos de suas próprias favelas. Mesmo nos raros casos em que se pode constatar uma certa atitude de inconformismo contra determinados fatos, ela dificilmente chega a dar origem a uma ação ou uma tomada de posição política. Via de regra, não passa de uma revolta difusa, e poucas vezes chega a cristalizar-se em um indivíduo (muito menos em um grupo). Nunca assume a forma de um projeto que oriente a ação, nem sequer o caráter de simples denúncia. O máximo a que parecem chegar os estratos inferiores é uma posição de passividade defensiva. Como exemplo, citamos o caso do representante da burguesia favelada que se queixou de que sua ideia de criar na favela uma espécie de cooperativa de crédito não teve a menor repercussão “porque sempre que eu falava nisso, eles pensavam logo que a gente ia roubá-los”. O sentimento de estarem sendo explorados é tão difuso nos estratos mais baixos, que a defesa não vai além da inação.

Isso não significa, entretanto, que não haja verdadeiras tempestades na política interna da favela. De fato, são raras as favelas em que não haja sucessivas crises políticas. Mas elas parecem ser sempre fomentadas e resolvidas na cúpula, e dificilmente mobilizam os demais estratos. Desse modo, a possibilidade de mudança dos quadros políticos é quase inexistente. Não obstante, muitas candidaturas apoiam-se em slogans que enfatizam a renovação: são, porém, indivíduos ou grupos que se encontram na oposição, mas que também pertencem ao estrato dominante.

A falta de participação pode ser facilmente comprovada, na grande maioria das favelas, pela baixa percentagem de sócios das associações de moradores (que funcionam como uma espécie de centro de decisões políticas, tanto de natureza interna quanto externa), cujas diretorias em geral são eleitas com votações ridículas se comparadas com o número do corpo eleitoral potencial. A ausência de renovação torna-se evidente se consideradas, entre outras formas, as eleições com chapa única, bastante comuns; a apresentação de chapas em que há apenas um mero rodízio de cargos, já que todos ou quase todos os candidatos exerciam mandatos no período anterior; os diversos casos em que o presidente é reeleito indefinidamente.

Ainda que encaremos o problema da participação política dos favelados em um nível supralocal[4](estadual e/ou federal), o panorama permanece inalterado. Mesmo em épocas de eleições, em que há uma verdadeira invasão de candidatos, os contatos e as campanhas são feitos por intermédio da burguesia favelada, que monopoliza quase todas as relações dos candidatos com a população local, por meio de um impressionante volume de “conchavos” entre seus representantes e candidatos. Estes, entretanto, não atuam de uma maneira homogênea e compacta. As relações entre candidatos e favelados são em geral duais. Por vezes o mesmo candidato tem mais de um cabo eleitoral ou “poleiro” em uma mesma favela.

Tal situação, por um lado, torna impossível que as promessas do período eleitoral sejam cobradas aos candidatos eleitos pela favela como um todo, o que lhes facilita a saída demagógica; por outro, faz com que os políticos favelados se integrem em diferentes “panelinhas” supralocais − que muito pouco têm a ver com as favelas −, uma vez que as camadas inferiores não exercem a menor pressão contra esses acordos políticos “espúrios” ou pelo menos “inautênticos”. Assim, a própria “tirania” exercida pela burguesia favelada, isso é, a ausência de feedback, de qualquer controle das camadas inferiores sobre os acordos com os grupos políticos supralocais, contribuiu de maneira decisiva para a dominação da própria camada social superior da favela pelos grupos e políticos supralocais.

Os acordos são, via de regra, limitados e/ou de caráter pessoal, e sua enorme diversidade pulveriza a capacidade dos grupos dominantes da favela de pressionar, no sentido de fazer os políticos supralocais cumprirem os compromissos assumidos (comparem-se essas afirmativas com as referências, feitas no final do presente artigo, à contraposição entre os “políticos favelados” e os “políticos de nível supralocal”). Figurativamente, poder-se-ia dizer que as relações de dominação-subordinação apresentam o aspecto de um verdadeiro funil de intensidade crescente.

Por outro lado, não se deve ignorar que, apesar de tudo, há um aspecto positivo nesse estado de coisas, pelo menos nas condições atuais. É que, se os políticos da burguesia favelada não tivessem o controle quase total das camadas inferiores, por intermédio do qual funcionam como mediadores quase inevitáveis das relações entre os grupos políticos estaduais e/ ou federais e a grande massa dos favelados, a situação seria ainda pior. Isso porque os acordos políticos estariam em um nível ainda mais primitivo. Muito provavelmente, os candidatos de nível supralocal constituiriam o respectivo eleitorado por uma mera compra de votos, em espécie ou por intermédio de pequenos favores pessoais. Um presidente de associação, com grande expressão política − segundo ele próprio, “possui” 2 mil votos −, disse, por exemplo, em um desabafo, que só apoiaria o candidato que lhe ofertasse um Impala. Outro político, de expressão bem menor, procurou um candidato que lhe resolvesse um caso de bigamia na Justiça para “despejar” “seus” trinta e tantos votos. Da forma como presentemente a política interna se articula com a supralocal, os acordos, embora extremamente desvantajosos para os favelados e quase sempre muito limitados e personalistas, assumem um caráter muito mais amplo e permanente do que os dois exemplos citados acima. Como será visto mais adiante, não é à toa que se multiplicam os órgãos “administrativos” que atuam em favelas e que funcionam como prolongamentos da política partidária nas “entressafras” eleitorais.

O controle político da burguesia favelada sobre as camadas inferiores é percebido de maneira mais ou menos difusa pelos próprios candidatos a postos estaduais e federais. Aparentemente, eles não demonstram grande preocupação (o que é, aliás, muito sintomático desse controle) com o fato de que, mesmo nos contatos mais amplos com os favelados, as reuniões, inclusive nas grandes favelas, raramente apresentam mais de 50 ou 60 pessoas, número que não é grandemente aumentado mesmo naquelas a que são convocados todos os moradores. Além dessa aparente despreocupação, é visível que os comícios dentro das favelas são quase inexistentes, como se a propaganda eleitoral por esse meio fosse desnecessária, improdutiva ou mesmo perigosa em se tratando de favelas. Sobre os possíveis riscos de reuniões públicas como veículos de propaganda eleitoral, é sintomática a observação de um amigo: “Atualmente, nas reuniões com os candidatos, não ficamos mais só ouvindo. Fazemos que eles respondam a uma porção de perguntas e, muitas vezes, eles se atrapalham.” Fica claro que, nessas condições, os acordos de cúpula ou “conchavos” são muito mais tranquilos para o candidato.

Sobre esse assunto, é interessante notar que as formas de controle político eleitoral vigentes fora das favelas − o personalismo carismático, as palavras de ordem demagógicas etc.− são substituídas, ou pelo menos reforçadas internamente, pela influência e pelo prestígio derivados de relações pessoais de caráter mais ou menos íntimo (que também têm influência fora das favelas, mas de modo muitíssimo menos intenso, ao que parece). Assim, a violenta exploração econômica e política é temperada por uma série de atividades e relações paralelas, desde o ensino das etapas burocráticas necessárias para conseguir documentos até conselhos sobre os mais variados assuntos, que representam, até certo ponto, uma espécie de recompensa ou contrapartida pela exploração sofrida.

Tal fato apresenta pelo menos duas consequências contrastantes. Em primeiro lugar, embora esses pequenos favores se constituam em um dos pilares do controle político da burguesia, favelada, eles perdem o caráter de mera recompensa pelo voto do favorecido (como certamente aconteceria se fossem prestados diretamente pelos políticos supralocais), uma vez que estão baseados ou decorrem de relações de amizade. Sua capitalização política é, ao mesmo tempo, muito mais sutil e envolvente, e não caracteriza o provável mercenarismo dos favores prestados. Em segundo lugar, não há dúvida de que esse mesmo fato é um importantíssimo fator de resistência à conscientização. É difícil percebermos que nosso vizinho, com quem tomamos uma ou outra cachaça e a quem pedimos instruções e mesmo conselhos, nos explora política e economicamente até a exaustão. Assim, uma tomada de consciência mais ampla é ainda mais difícil, uma vez que esse vizinho e muitas vezes amigo monopoliza contatos, informações e atividades cotidianas que talvez nos despertassem de nosso desinteresse e até nos abrissem os olhos, ampliando e aprofundando nossa visão da realidade.

Na camada dominante, no entanto, o problema da consciência e da participação política apresenta-se de forma sensivelmente diversa. Antes de mais nada, é preciso dizer que parece existir uma relação muito íntima entre a posição do indivíduo na estratificação da favela e a na sociedade global ou, em outras palavras, a hierarquia das posições na sociedade global não é alterada nem interrompida pela organização da favela. Tudo indica que a burguesia favelada seja formada pelos indivíduos que, na estratificação da sociedade global, ocupam as mais altas posições, considerada a população da favela. É grande, por exemplo, o número de militares subalternos, funcionários públicos, operários qualificados etc. entre os diretores das associações de moradores, e quase inexistentes os biscateiros ou desempregados. Tal situação se explica na medida em que a base de diferenciação − a exploração dos recursos internos − depende, por um lado, do poder de poupança, que, por sua vez, parte da remuneração do trabalho na maioria dos casos e, por outro, dos conhecimentos, do discernimento, do desembaraço − em uma palavra, do know-how em seu sentido mais amplo − para a aplicação do dinheiro acumulado. E tanto a capacidade de poupança quanto o know-how diminui à medida que se desce na escala social. Por sua vez, a carreira política tem como prerrequisitos o acesso às fontes de informação, contatos etc., que estão profundamente vinculados à própria posição socioeconômica do indivíduo, tanto do ponto de vista interno quanto do externo. Ora, nessas condições, não deve parecer estranho nem inexplicável que a burguesia favelada adote uma série de atitudes e um estilo de comportamento − não apenas nos aspectos políticos, diga-se de passagem − bastante próximos da pequena burguesia “comum”, não favelada. Pelo menos a burguesia favelada não se identifica com os estratos inferiores, como se depreende dos qualificativos e da própria maneira como se referem aos moradores que não pertencem ao grupo dominante: “apáticos”, “desinteressados”, “ignorantes”, “não querem nada”, “não se esforçam”, etc. Além disso, alguns representantes do grupo dominante têm planos de se mudar (geralmente “porque os filhos estão em idade de se casar” ou porque ficam com vergonha de convidar os amigos para visitá-los), não obstante tudo indique que a maioria não tenha projetos definidos de abandonar suas favelas, contentando-se em considerá-las como bairros.

Além disso, é preciso notar que grande parte da organização social da favela baseia-se, como foi dito, nos recursos internos de que dispõe. Acontece, porém, que muitos deles existem em função de fatores externos, embora qualquer generalização nesse sentido tenha que ser muito cuidadosa devido às grandes diferenças de natureza, proveniência e intensidade de exploração de recursos de favela para favela. Não obstante essa ressalva, alguns deles parecem ser encontrados em quase todas as favelas, e sua exploração econômica é altamente rentável: é o caso, por exemplo, das redes de água e luz e do comércio interno. Esses, além de muitos outros menos generalizados, só podem funcionar como recursos na medida em que se mantiver o status quo, isto é, em que a organização da favela não sofra mudanças muito profundas, que a transformariam em um bairro. Caso isso acontecesse, cessaria a possibilidade, por exemplo, de as biroscas continuarem funcionando com alvarás a título precário, ou mesmo sem nenhum. Desapareceriam, também, os proprietários de relógios de luz (ao assumir o controle da luz nas favelas por intermédio das Comissões de Luz formadas por moradores responsáveis por ela, a atuação da Comissão Estadual de Energia[5] vem destruindo um dos recursos internos mais rentáveis e generalizados desses locais). Isso para não falar nos recursos que a favela, nas atuais condições, consegue carrear dos órgãos governamentais e privados que nelas atuam, e das contribuições em espécie, material ou de outro tipo, que, especialmente em época de eleições, provêm dos políticos de nível supralocal. Para resumir, pode-se afirmar que uma boa parte dos recursos internos, sobre os quais se baseia a organização da favela, depende de fatores externos e da própria continuidade de certas características de sua organização.

Os dois fatores acima considerados − certas semelhanças de estilos de comportamento e atitudes entre a burguesia favelada e a pequena-burguesia não favelada, e a necessidade de preservar uma organização que proteja a viabilidade da exploração econômica dos recursos internos – indicam que a camada dominante da favela está inevitavelmente comprometida com o status quo, tanto internamente quanto do ponto de vista das próprias relações com a sociedade global. Mesmo quando se consideram os projetos de urbanização elaborados pelos favelados, essa afirmativa só é desmentida aparentemente.

1) Os favelados são pessoas realistas. Eles veem que quase todos os recursos destinados a solucionar o “problema da favela” estão sob a forma de empréstimos, assistência técnica, materiais, etc. para executar projetos de urbanização. Naturalmente, eles elaboram um plano de urbanização a fim de canalizar alguns desses recursos para sua própria favela.
2) Os favelados querem a urbanização especialmente quando é colocada a escolha entre urbanização e remoção.
3) As associações de favela que desenvolvem esses planos serão fortalecidas e perpetuadas se executarem um plano de urbanização. Os diretores de tal plano lidarão com grandes somas de dinheiro e podem incrementar seu prestigio político dentro e fora da favela.[6]

Assim, os próprios planos globais de urbanização reafirmam o comprometimento do grupo dominante com o status quo, pois tudo indica que não passam de procedimentos altamente refinados cuja finalidade é manter a organização da favela e/ou sua disponibilidade de recursos e o prestígio político dos moradores envolvidos.  Por outro lado, a citação aponta para o fato de que esse comportamento é reforçado pela atuação dos órgãos supralocais, tanto os públicos quanto os privados. Não é preciso dizer que a influência de órgãos públicos é muito maior, não só por abranger quase todas as favelas, como também por dispor de muito mais recursos. Sua influência manifesta-se, inclusive, sobre as próprias instituições privadas. Por exemplo, uma instituição religiosa que atua em determinado morro conta com serviço médico e odontológico mantido por um órgão governamental[7]. Desde a criação das associações de moradores, o Estado procurou controlá-las, limitando-as a atividades de natureza administrativa e pretendendo torná-las meros colaboradores executivos dos planos e projetos traçados pelos órgãos oficiais. Assim, em documento elaborado pela antiga Coordenação de Serviços Sociais[8], lê-se:

As associações de favelas do Estado da Guanabara não terão caráter político-partidário, não admitindo manifestações idênticas, e ainda racial ou religiosas, considerando contrários aos seus interesses quaisquer compromissos ou acordos que visem, direta ou indiretamente, proselitismo político-eleitoral ou de fundo sectário.

Sobre suas finalidades, quase todos os artigos falam em “colaborar”, “contribuir”, “cooperar” com os poderes públicos, “quando autorizado”. 

De sua organização − A Associação fixará as contribuições dos moradores, aplicando a receita, especialmente em melhorias para o local, responsabilizando-se por sua destinação e submetendo-se ao visto do Estado.[9]
De sua dissolução − A Associação poderá ser dissolvida: (...) Quando deixar de cumprir determinações do Estado.

Entretanto, as cláusulas estatutárias impostas pelo Estado por si sós seriam provavelmente incapazes de limitar as atividades das associações. Os órgãos públicos não possuem recursos suficientes, o que lhes exige decisões sobre quais favelas devem ser beneficiadas. E, como tais decisões assumem quase sempre um caráter político, grande parte do esforço das associações é carreado para a política administrativa. Para que não seja supervalorizada a influência dos políticos favelados, é muito importante notar o nível de controle que podem ter as favelas sobre o montante e a alocação de dinheiro público. Eles não têm nenhum poder na determinação do volume dos recursos globais destinados às favelas − que variam em função de acordos até de âmbito internacional, como é o caso, por exemplo, dos convênios do governo estadual com a Usaid[10] para o desenvolvimento de comunidades, urbanização, etc. − nem nos objetivos gerais a serem atingidos. Só depois que as verbas são encaminhadas para os órgãos que tratam diretamente com as favelas e dos respectivos planos básicos estarem definidos é que a possibilidade de atuação dos políticos favelados começa a se manifestar.

Assim, de certa maneira, o Estado viu coroada de êxito sua tentativa de limitar e canalizar as atividades das associações de moradores para a política administrativa ou, mais precisamente, para as relações com órgãos administrativos que atuam diretamente nas favelas. Mas não se pode esquecer que esses órgãos se vinculam de duas maneiras à política partidária: em primeiro lugar, por estarem subordinados à linha de ação do governo, que é quase sempre traçada segundo critérios político-partidários − daí, por exemplo, as constantes reclamações contra a “descontinuidade administrativa”; em segundo lugar, essa vinculação existe na medida em que a política de ação governamental é utilizada – e, não raras vezes, distorcida − por políticos profissionais com finalidade eleitorais, e em que os cargos administrativos podem servir como canal de penetração nas atividades legislativas. Por exemplo, um “candidato a candidato” acenou a um político favelado com a possibilidade de construção de uma estrada em troca de apoio eleitoral, “tão logo fosse nomeado certo administrador” para a região administrativa onde se localiza a favela. Em outro caso, o ex-diretor de um dos órgãos estaduais que atuam em favelas foi “candidato a candidato” a deputado estadual.

O papel das associações de moradores e das agências supralocais no processo político é da maior importância. É claro que elas não monopolizam completamente as atividades políticas das favelas. Existe um número razoável de acordos e contatos desenvolvidos diretamente entre os políticos favelados e os de nível supralocal, especialmente em períodos pré-eleitorais. Mesmo do ponto de vista interno, esses entendimentos (ou desentendimentos) nem sempre giram em torno das associações. Entretanto, parece não haver dúvida de que elas são os pontos centrais do processo político interno, enquanto as agências supralocais representam o ponto central das relações políticas entre a favela e a sociedade global. Daí a necessidade de controlar as atividades das associações e o grande interesse dos partidos nos órgãos “administrativos”. 

Mas já deve ter ficado claro que apenas aparentemente o governo conseguiu seu intento, uma vez que, devido ao próprio caráter político de seus órgãos administrativos e do poder de barganha das favelas − derivado fundamentalmente de sua potência eleitoral −, as atividades das associações de moradores são sempre políticas. Entretanto, apesar de o governo não ter conseguido evitar que as associações se transformassem em agências políticas, pelo menos parte de seus objetivos foi atingida. Muitas das articulações políticas, tanto do ponto de vista interno quanto do externo, prendem-se a melhoramentos urbanos, em geral de pequena monta, não obstante existam alguns planos globais de urbanização elaborados pelos próprios favelados. É evidente que, para isso, muito contribui o fato de que quase todas as agências supralocais que atuam nessas áreas identificam, explicitamente ou não, “favelas” com “problema habitacional”, sendo seus recursos, portanto, canalizados a elas (as demais agências, em geral, preocupam-se com serviços assistenciais).

Ora, sé já existe, por parte da burguesia favelada, um comprometimento com o status quo − lembremos as já referidas semelhança entre algumas de suas atitudes e estilos de comportamento com os da pequena-burguesia não favelada e a necessidade de preservar uma organização que proteja a exploração econômica dos recursos internos −, as características da própria prática política acima descritas, bem como sua fundamentação “teórica”. (favela como reflexo do problema habitacional decorrente da urbanização acelerada), contribuem decisivamente para cristalizar no estrato dominante uma atividade política compartimentalizada e de estilo conservador.

Acresce-se a tudo isso a distância entre o processo político das favelas e a política sindical. Se existem relações entre os dois, elas não são mais do que espasmódicas, e mesmo assim se verificam por intermédio de políticos favelados que já transcenderam o nível local e que, portanto, estão mais orientados para a política diretamente partidária. Um amigo, por exemplo, procurou o apoio de um deputado estadual para anular as eleições para um sindicato, que, segundo ele, foram fraudadas. Entretanto, não apenas esse amigo há muito havia transcendido o nível local, como parece que suas relações com a chapa derrotada eram apenas de amizade, e os contatos políticos não assumiram caráter de permanência.

Na realidade, as relações entre a política das favelas e a sindical − ou pelo menos as conexões institucionais permanentes e mais ou menos formalizadas − são muito problemáticas: as associações de moradores são organizações horizontais de base geográfica, enquanto os sindicatos são organizações verticais de base funcional. De qualquer forma, não seria ligeiro e sem base empírica afirmar que a existência de vinculações entre o processo político nos sindicatos e nas favelas seria muito importante na “descompartimentalização” da prática política da burguesia favelada, e que a criação desses vínculos, embora complexa, não  é impossível. Portanto, a atividade dos políticos favelados não se orienta de acordo com a consideração de que a favela é resultado de certas condições estruturais do sistema global (com reflexos profundos, por exemplo, no mercado de trabalho) de que as condições habitacionais que costumam identificar as favelas parecem ser simples consequências. E, como foi dito acima, seu estilo de atuação se desenvolve segundo os moldes tradicionais: entendimentos “de
cúpula”, participação em “panelinhas”, em suma, a imersão plena no jogo político-partidário.

Entretanto, distinguir se isso se deve a uma falta de visão ou a uma escolha consciente é um problema de extrema complexidade: em minha opinião − não mais do que opinião até o presente −, aos favelados dos estratos inferiores falta, realmente, perspectiva para compreender que seus problemas não se resolverão pela simples melhoria das condições habitacionais, e que a importância política das agências supralocais está muito além do que elas realmente podem fazer − e fazem − pelas favelas. Quanto à burguesia favelada, a situação parece-me muito diferente. Ela percebe muito claramente que o problema das favelas tem amplitude e profundidade muitíssimo maiores do que o mero problema habitacional, mas também compreende que sua capacidade de influência política está longe de lhe permitir influir eficazmente no nível estrutural. Ela percebe, além disso, que os acordos políticos trazem benefícios realmente muito pequenos e muitas vezes apenas pessoais. De qualquer maneira, pode conseguir algumas vantagens quase imediatamente. Em consequência, opta por uma ação política em curto prazo e imediatista[11].

Mesmo que essa opinião não seja válida, uma coisa é certa: a burguesia favelada não apresenta, em absoluto, a falta de compreensão da realidade que a maioria das pessoas − políticos, administradores, técnicos etc. − insiste em lhe imputar. Isso não passa de um estereótipo, e está profundamente ligado à deformação básica a que me referi quando, no início do artigo, falei das duas abordagens correntes na análise das favelas: a ideia de que existe um tipo único de favelado. É muito significativa a referência feita por um político favelado sobre um chamado que recebeu do diretor de uma agência supralocal:

O diretor disse que queria me avisar que eu estava sendo usado pelo deputado. (...) Eu respondi que não, que eu é que estava usando o deputado. Só que eu não disse que quem estava sendo usado pelo deputado era o diretor.

Outro político favelado só se refere aos políticos de nível supralocal por “esses políticos de favela, esses vira-latas”. De fato, parece-me que a percepção da existência permanente de interesses pessoais em jogo é muito mais presente no político favelado do que nos políticos de nível supralocal. A consciência da existência de grupos, subgrupos e “panelinhas” políticas e de suas rivalidades também é flagrante. Um amigo, por exemplo, disse-me:

Quando a gente entra lá [nas dependências de determinado órgão do governo], precisa tomar muito cuidado. Se eu apertar a mão de uma pessoa com mais força, fico logo queimado com o pessoal do outro grupo.

Outro aspecto da compartimentalização da ação política do favelado é sua característica local. Na verdade, até aqui − exceção feita à rápida menção das relações entre a política das favelas e a dos sindicatos − tenho sempre contraposto o “político de nível supralocal” ao “político favelado”. Isso pode parecer estranho porque, de um ponto de vista lógico, não há nenhum impedimento de que o político favelado exerça suas atividades no nível supralocal, pelo menos no estadual, e mais ainda se for considerada a existência de um órgão de cúpula como a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg)[12].

De fato, além de alguns políticos favelados (embora poucos) conseguirem atuar acima do nível meramente local, a atividade cotidiana do político tende sempre a ampliar-lhe a rede de relações e influências, fazendo-o transcender o nível anterior de atuação. Nesse sentido, todo e qualquer político favelado − tanto como o não favelado − teria potencialmente condições de superar sua referência local, o que realmente acontece com alguns. Entretanto, à medida que se amplia sua área de atuação, maior é a vinculação do político com grupos partidários, e também maior a dependência em relação a eles. Desse modo, quanto mais transcende o nível local, cada vez mais amplos e profundos são os compromissos com as “panelinhas” político-partidárias supralocais, de modo que as ações são cada vez menos orientadas e referidas especificamente às favelas. Na verdade, a atuação de um político favelado de nível supralocal tem pouca diferença em relação à de um político (seja candidato ou parlamentar) não favelado cuja base eleitoral sejam as favelas.

Parece-me que a característica fundamental do político favelado seja sua condição de membro periférico e mais ou menos independente dos grupos e subgrupos partidários (o que não significa, em absoluto, a ausência de relações e mesmo de vínculos ou acordos com eles, como se verá a seguir), além da orientação local de suas atividades. A necessidade de “união entre as favelas” para a “discussão e resolução de problemas comuns” é constantemente salientada pela burguesia favelada. Pode-se mesmo dizer que ela tem uma base concreta bastante sólida (composta pelo sentimento de que a favela não se define apenas pelas condições locais de habitação, mas também pelos laços de amizade e parentesco entre uma imensa quantidade de moradores de favelas diversas, a aquisição regular de mercadorias em uma favela para serem revendidas em outras, etc.). Mas daí à elaboração de um projeto concreto e viável de união política há uma distância muito grande que parece não ter sido transposta. Para isso, muito contribui a potência eleitoral das favelas, pois, se por um lado ela é um dos pilares de sua força política, por outro implica o interesse de um grande número de grupos políticos externos cuja ação na favela se reflete na divisão interna dos políticos favelados, que procuram se beneficiar daquele interesse, já que não existe pressão de massa −, ou seja, dos estratos inferiores da favela − sobre os acordos realizados. Isso dificulta não apenas uma ação homogênea de cada favela individualmente como também a unificação política de todas as favelas. Raras são as situações em que as favelas assumem uma posição unívoca, e tudo indica que, mesmo nessas exceções, não existe propriamente uma união, mas um compromisso transitório, devido à convergência de interesses específicos. Assim, por exemplo, em determinada favela, onde surgiu uma ameaça bastante concreta de a remoção, devido a problemas sobre a propriedade do terreno, a diretoria da associação constituiu uma “Comissão do Entendimento”, que incluía representantes de todos os grupos políticos da favela, para manter contatos com as autoridades a fim de evitar a remoção; porém, mesmo durante a crise, houve muitas reclamações de que a oposição estava se utilizando da “Comissão de Entendimentos” para projetar-se politicamente, interna e externamente.

Embora o presente artigo pretenda apenas descrever alguns aspectos do problema do processo político nas favelas e seus reflexos nas atitudes, no comportamento e na visão política do favelado, sem defender propriamente uma tese, algumas conclusões gerais podem ser tiradas:
1) Qualquer raciocínio sobre favelas, não importa quais as premissas que adote, tem necessariamente que levar na devida conta a diferenciação interna e as relações pessoais e mais ou menos intimas como pontos fundamentais.
2) O político favelado (de nível local ou supralocal) não é absolutamente ingênuo nem inábil − pelo contrário, é extremamente perspicaz − e adota uma atitude que poderia ser qualificada de “realista”, cuja principal característica é orientar-se para os resultados em curto prazo. Qualquer tentativa de ampliar sua percepção tem que partir da ampliação das perspectivas dá pratica política cotidiana (como, por exemplo, a introdução de relações políticas permanentes entre as favelas e destas com os sindicatos).
3) Qualquer tentativa da ação política nas favelas, para ser eficaz, tem necessariamente que abordar as múltiplas vinculações entre a política interna, as atividades partidárias e a política administrativa.
4) Qualquer tentativa de proposição de soluções “técnicas” para os problemas das favelas − seja em que nível for − tem necessariamente de levar em consideração que sua execução ficará, direta ou indiretamente, a cargo das agências supralocais, sobre as quais é profunda a influência político partidária.

 

  1. À época da primeira publicação deste artigo, o autor era pesquisador da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) do Governo do Estado da Guanabara. Para mais informações sobre a biografia do autor, consultar a entrevista neste número, pp. 663-698.
  2. Por organização transversal entenda-se a que envolve diversos setores de atividades, sem ênfase especial em nenhum. O termo é utilizado em oposição a “organização com objetivos”.
  3. O autor se refere a essas esferas de governo – o que se repetirá ao longo do texto – considerando um contexto anterior à fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara (ocorrida em 1975), o que transformou este último (criado poucos antes, com a ida da capital federal para Brasília) no município do Rio de Janeiro, inserindo, então, mais um nível institucional a esse debate. (N.T.)
  4. Entende-se por “supralocal”, neste artigo, todas as atividades, situações, objetivos, interesses etc. que excedam os limites da favela, sejam de âmbito nacional, regional ou da cidade como um todo. Assim, por exemplo, “político de nível supralocal” é aquele cujos compromissos e interesses não se restringem às favelas e aos favelados. São, portanto, o deputado estadual, o postulante a um mandato federal, um governador etc.
  5. A Comissão Estadual de Energia foi criada em 1962 pelo governo do estado da Guanabara, a partir da Coordenação dos Serviços de Energia Elétrica, que, no novo formato, passava a ter atribuição de fiscalização dos serviços. Em 1967, com a submissão das associações de moradores à Secretaria de Serviços Sociais, foram criadas as Comissões de Luz, subordinadas justamente à CEE. Esse desenho se manteria até 1975, com a fusão Rio-Guanabara, quando a CEE vira municipal, tornando-se CME, indo até 1990, com a criação da Companhia Municipal de Energia e Iluminação (Rioluz). (N.E.)
  6. O’NEIL, Charles (s/d). Some Problems of Urbanization and Removal of Rio Favelas, mimeo.
  7. Por esses motivos, e devido ao pouco conhecimento que tenho dos órgãos privados, só me referirei no presente artigo aos públicos.
  8. Órgão do governo do estado da Guanabara que coordenava as ações sociais do estado e que nascera da coordenação federal anteriormente em operação na cidade quando capital. (N.E.)
  9. Grifo do autor.
  10. United States Agency for International Development.
  11. Se nessa opção pelo curto prazo está contida uma certa ingenuidade ou não, isso é outro problema, cuja discussão não me parece caber neste artigo. O importante no momento é notar que é feita uma escolha pelo curto prazo.
  12. Criada em 1963, a Fafeg congregava as entidades representativas dos favelados em sua relação com o Estado

 

 

Ver também[editar | editar código-fonte]