Coletivos de favelas e a produção de conhecimentos, dados e memórias
Nos últimos anos, inúmeros coletivos e organizações de favelas e periferias têm se dedicado a produzir dados que contemplem as particularidades de suas experiências enquanto moradores desses territórios. Por meio de diferentes metodologias, tais grupos protagonizam a produção de dados e promovem a preservação de suas próprias memórias. Este verbete apresenta um quadro com algumas organizações e grupos que atuam com a produção de dados sobre seus territórios, no estado do Rio de Janeiro, e produtos/resultados gerados por estes atores sociais, tendo como fonte de informação relatos apresentados no Ciclo de debates sobre produção de conhecimentos e memórias em favelas e periferias, realizado por um conjunto de organizações, projetos e núcleos de pesquisa, em 2023.
Autoria: Kharine Gil
Contando nossa própria história[editar | editar código-fonte]
A produção e coleta de dados demográficos acontece historicamente no Rio de Janeiro. Desde o século XX foram promovidos recenseamentos e relatórios oficiais sobre a população, documentos que informam sobre educação, saúde, trabalho e habitação, e foram por muitos anos a fonte principal de informações sobre a situação de brasileiros que residem em diferentes áreas do país.
No entanto, tais dados não conseguem dar conta de algumas especificidades populacionais, como as que atravessam moradores de favelas, mesmo que eses territórios possuam particularidades relevantes que deveriam ser consideradas nas estatísticas. Por esse motivo, no final dos anos 1990, foi mobilizada uma nova forma de quantificar: o autorrecenseamento.
Em 1999 foi realizada a primeira iniciativa de autorrecenseamento, no Complexo da Maré, pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM. Posteriormente, tal iniciativa foi reproduzida também por outras instituições, como a Redes da Maré e o Observatório de Favelas (Cruz, 2022)[1]. Esta produção de dados tem como objetivo analisar as particularidades que estes territórios possuem e que dados oficiais, como o censo produzido pelo IBGE, não conseguem contemplar. Vale ressaltar que o propósito não é contestar os dados oficiais, mas dialogar e complementar, considerando as especificidades das favelas.
O primeiro autorrecenseamento teve seu início em 1999, tendo sido publicado no ano seguinte. Trata-se do "Quem somos, quantos somos, o que fazemos" elaborado pelo entro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. De modo geral, as iniciativas de auto contagem surgem a partir de duas principais justificativas que se retroalimentam: a defasagem dos dados e a permanência de representações negativas das favelas. (Cruz, 2022, p. 16)[1].
Na linha do tempo abaixo é possível observar a produção de dados sobre as favelas cariocas historicamente:
Nos últimos anos, diversos coletivos e organizações de favelas e periferias têm dedicado suas pesquisas e estudos sobre a produção de dados dos territórios que atuam e residem. É interessante ressaltar que os produtos que resultam destes trabalhos não são necessariamente dados quantificáveis, tendo em vista que transitam também entre outros tipos de conhecimentos, como expressões artísticas, planos de incidência política e cartografia.
A partir de informações retiradas dos relatos apresentados no Ciclo de debates sobre produção de conhecimentos e memórias em favelas e periferias, realizado em 2023, por meio do diálogo com atores e lideranças de favelas, foi possível construir um quadro com alguns dos participantes e apresentar brevemente os produtos/resultados de suas produções de conhecimento e memórias. Saliento que as organizações e grupos representados aqui possuem diversas outras atuações e produções, mas devido aos limites de espaço do verbete, o foco será nas ações que foram relatadas no ciclo de debates.
Direito à memória e Justiça Racial - IDMJRacial[editar | editar código-fonte]
Território | Temas | Metodologia | Produção e resultados |
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Baixada Fluminense | Violência estatal | Canal de comunicação institucional pelo WhatsApp com os moradores para o recebimento de denúncias | Memoriais em grafite; Boletins sobre diversos temas, como desaparecimentos forçados e perícias policiais |
Como forma de recontar o legado da população negra da Baixada Fluminense, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial - IDMJR lançou o memorial "Hidra do Iguassú", de forma a representar o complexo de quilombos liderado por mulheres que fundaram a região da Baixada Fluminense. O memorial está localizado no Parque Centenário em Duque de Caxias - RJ. Infelizmente, vinte dias após o lançamento do memorial, o espaço foi vandalizado.
As áreas comandadas pela Hidra de Iguassu fundaram a região da baixada fluminense, que desde sua origem é um território marcado pela resistência e por lutas contra as violações do Estado, durante seus quase 100 anos de existência a Hidra foi configurada como o principal problema de segurança pública para o governo brasileiro devido a dificuldade de captura e subjugação deste aquilombamento.
Por isso, torna-se muito importante recontar a história da resistência por meio dos quilombos, sobretudo a resistência das mulheres negras que defendem cotidianamente a vida dentro dos seus territórios periféricos. Ressalta-se que a fundação do território da Baixada Fluminense foi protagonizada pela intensa luta de resistência dos quilombos que cotidianamente enfrentam o braço armado do Estado e conquistaram sucessivas vitórias.
Alguns dados são importantíssimos para compreendermos a atuação da presença negro-africana, e posteriormente, afro brasileira. Por exemplo, segundo registros populacionais entre 1779 e 1789 a população da região era de 13054 habitantes, dos quais 7122 eram escravos, cerca de 55% da população da região, que posteriormente ficaria conhecida como Baixada Fluminense, era composta por escravizados.[2]
Outros exemplos de produção de conhecimento feito pela organização são seus boletins, artigos e dossiês. Em 2023 a IDJMR publicou o Boletim sobre Desaparecimentos Forçados na Baixada Fluminense – Violações, Genocídio e Tortura.
LabJaca[editar | editar código-fonte]
Território | Temas | Metodologia | Produção/resultados |
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Jacarezinho | Geração cidadã de dados | Produção de comunicação com a população | Curso de políticas públicas e podcast |
Um exemplo de resultado da metodologia utilizada pelo LabJaca é o podcast "A Favela que Queremos", produzido em conjunto com moradores das favelas Jacarezinho e Manguinhos, e promoveu o debate sobre temas políticos e sociais de impacto. O primeiro episódio, por exemplo, foi sobre meio ambiente e justiça climática.
“Seguimos a metodologia de geração cidadã de dados, que significa que a gente comunica esses dados de forma acessível. Para não tratar a favela como a Academia ou os grandes institutos de pesquisa tratam: apenas um objeto de estudo. Pesquisadores chegam aqui, coletam dados, defendem suas monografias, doutorados, mas não voltam com esse dado para a gente, que mora aqui”, fala Mariana.[3] O Laboratório também já produziu pesquisas, cursos formativos e outros materiais
O Laboratório já criou outros documentos, como cursos formativos, relatórios e pesquisas, que tratam sobre temas como: insegurança energética, custo das operações policiais e dengue no Jacarezinho.
Em entrevista fornecida ao portal Hability, a gestora do grupo informou que no momento o LabJaca está trabalhando com a pesquisa de censo do Jacarezinho, a fim de desenvolver dados socioeconômicos e indicadores populacionais da região.[3]
data_labe[editar | editar código-fonte]
Território | Temas | Metodologia | Produção/resultados |
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Complexo da Maré | Saneamento básico e justiça climática | Incidência e participação cidadã | Cocôzap |
O Cocôzap é um projeto construído pelo data_labe 2018, que visa mapear, incidir e contribuir para a participação cidadã no que se refere a saneamento básico em favelas.
O projeto funciona por meio de um número de WhatsApp que serve como um canal para denúncias, debates e proposições relacionadas a saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de água no Complexo da Maré. Os moradores enviam fotos do local e a localização exata da queixa, para que assim seja feito o georreferenciamento e analisada a frequência da queixa. A expectativa é de que o debate impulsionado pelo CocôZap possa gerar pressão por políticas e soluções mais legítimas, baseadas em evidências fornecidas por quem vive os dados mais extremos no dia-a-dia do próprio território.
Além da base de dados, são articuladas reuniões mensais com moradores, escolas, postos de saúde e associações de moradores, a fim de difundir o canal de denúncia e construir um debate permanente em torno das questões sanitárias do bairro. [4] Outras produções do Cocôzap são a carta-manifesto, o plano de monitoramento e reportagens feitas por jovens moradores do território que são engajados nas questões socioambienais.
- ↑ 1,0 1,1 CRUZ, Thaís Gonçalves (2022). Quando os crias (se) contam: a produção de dados alternativos nas favelas cariocas. Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado - Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
- ↑ QUILOMBO HIDRA DE IGUASSÚ: MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS NA LUTA CONTRA AS VIOLAÇÕES DO ESTADO
- ↑ 3,0 3,1 LabJaca: dados em favor das favelas. E dos direitos humanos.[1]
- ↑ Sobre o Cocôzap