Comércio varejista de drogas pós-UPP

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autora: Palloma Menezes

Trecho de artigo publicado originalmente em: http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/133202

Momento inicial das primeiras UPPs[editar | editar código-fonte]

Quando Sergio Cabral Filho assumiu o cargo de governador do Estado do Rio de Janeiro, em 2007, e nomeou José Mariano Beltrame como Secretário de Segurança, a “violência urbana” era considerada senão o principal, decerto um dos principais problemas e desafios a serem enfrentados no Estado e, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro. Aquele era um momento de crescimento econômico no país. Os governos federal, estadual e municipal, depois de décadas de disputas intensas, estavam trabalhando juntos para que a “cidade maravilhosa” se tornasse sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.

Apesar disso, os índices de criminalidade e, em especial, de homicídios eram, na cidade, tidos como um dos pontos críticos que precisavam ser melhorados para que se garantisse a recepção dos grandes eventos e de investimentos internacionais. Foi nesse contexto mais amplo que, em novembro de 2008, começou a ser testado, então, um novo projeto de “policiamento comunitário”. Projeto que, pouco tempo depois, receberia o nome Unidade de Polícia Pacificadora (upp). 

No momento em que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro ocupou a Cidade de Deus e o Santa Marta (primeiras favelas onde posteriormente foram inauguradas UPPs), em novembro de 2008, moradores e jovens que atuavam no comércio varejista de drogas ilegais nessas favelas pensaram estar diante de uma operação policial “normal”. A princípio, a ação policial parecia seguir o mesmo roteiro das incursões que há algumas décadas vinham ocorrendo nas favelas cariocas. 

Como de costume, policiais fortemente armados entraram nas favelas contando com o fator surpresa, trocaram tiros com traficantes – gerando mortes, no caso da Cidade de Deus –, efetuaram prisões em flagrante e apreenderam drogas e armas. Apenas o último elemento do roteiro “padrão” das operações policiais de praxe nas favelas não fez parte da ação realizada em novembro de 2008: dessa vez, a polícia não se retirou dos territórios alguns dias após o início da incursão. Ela neles permaneceu.  

Em um primeiro momento, ninguém entendeu muito bem o sentido de a polícia continuar na favela. Os repertórios habituais de que dispunham os moradores dessas localidades não auxiliavam nesse trabalho interpretativo a respeito do que estava se passando. Não havia, inclusive, informações oficiais disponíveis sobre o que estava ocorrendo ou sobre o que iria ocorrer. Portanto, ninguém, nem mesmo o governo do Estado, tinha clareza e podia antecipar que naquele momento começava a ser elaborado e testado um projeto que ganharia enorme centralidade no debate sobre segurança pública no país. Menos ainda alguém podia supor que aquela experiência, posteriormente, seria classificada como uma das mais significativas em termos de segurança pública produzidas no Rio de Janeiro e mesmo no Brasil nas últimas décadas. 

Como sintetizou um morador do Santa Marta, no momento que o morro foi ocupado, a sensação era a de estar “entrando num grande túnel escuro, esperando chegar rapidamente do outro lado para ver muita luz”. É possível dizer, portanto, que os habitantes do morro viveram aquele momento como uma “crise” (Shibutani,1966) ou “momento crítico” (Boltanski, 1990; Boltanski e Thévenot, 1991). Dito de outro modo, o início das Upps foi vivenciado pela população desses territórios como uma radical desrotinização momentânea da vida cotidiana, isto é, um evento que produziu uma ruptura com as formas habituais de ação, quebrando com as expectativas que os atores possuíam acerca de sua maneira rotineira de ser, de se comportar, de agir e de pensar. A partir do contato com tal situação indeterminada, os habitantes da favela começaram a realizar um “processo de investigação” (Dewey, 1938), com a finalidade de compreender e tornar inteligível o que estava acontecendo. Tal investigação produziu-se como um processo reflexivo e experimental de reengajamento no “novo” ambiente da favela.  

No caso do Santa Marta, essa investigação teve início quando muitas pessoas o procuraram o presidente da Associação para perguntar a respeito do que estava se passando na favela. Incapaz de dar uma resposta adequada, ele, por sua vez, procurou representantes do poder público, buscando elementos que permitissem ter um entendimento e uma definição da nova situação. De forma semelhante, os jovens envolvidos com o comércio varejista de drogas nessas duas favelas também passaram pelo mesmo processo. Eles narram que, naquele momento crítico, acionaram os contatos de que já dispunham para operações policiais que ocorriam com relativa frequência, mas que quando notaram não mais estar diante de uma “operação policial normal”, ficaram sem saber ao certo como agir. 

O depoimento torna evidente que, naquele momento, era essencial para os jovens envolvidos no “mundo do crime” (Grillo, 2013) buscar informações para que pudessem traçar estratégias minimamente seguras de ação. No entanto, a única informação que tiveram era de que, a partir daquele momento, a polícia ficaria na favela por tempo indeterminado. Foi, portanto, preciso aos traficantes improvisarem uma nova estratégia de ação.  

Como boa parte do que era tomado como óbvio (taken for granted) pelos traficantes tinha deixado de sê-lo de maneira brusca e repentina, eles precisaram iniciar uma busca por uma nova “ação que convém” (Thévenot, 1990). Então, ainda que de modo precário e permeado de riscos, alguns resolveram se esconder dentro da própria favela. Apenas poucos traficantes de áreas específicas, como o Karatê na Cidade de Deus, resolveram enfrentar diretamente a polícia em meio à situação indeterminada. Parte significativa dos traficantes (sobretudo os de alta hierarquia) fugiram temporariamente e se abrigaram em outras favelas não ocupadas pela polícia e, portanto, mais seguras para eles naquele momento. 

Primeiras mudanças pós-"pacificação" [editar | editar código-fonte]

Uma das principais consequências desse momento inicial de indeterminação gerado pela chegada da polícia na favela foi um enfraquecimento temporário do tráfico de drogas ilícitas nas áreas ocupadas. No caso do Santa Marta, poucas semanas após o início da ocupação do morro, foram divulgadas diversas reportagens em jornais cariocas que apontavam não haver mais venda de drogas na favela.  

No caso da Cidade de Deus, moradores contam que, no início da ocupação policial, em 2008, o tráfico perdeu muita força porque muitos traficantes fugiram da favela e alguns poucos ficaram bem escondidos e passaram a efetuar pouco ou quase nenhuma venda, por temerem os policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). Diversos relatos apontaram que no início da ocupação policial: “a igreja ficou lotada de bandido. […] O negócio ficou salgado. O Bope vinha aí, batia de porta em porta. O Bope só trabalhava de madrugada. Na madruga era corda no pescoço, gravata, cabo de vassoura e pau neles. Todo mundo ficou aterrorizado”.  

Assim que o Bope deixou a favela e foi inaugurada a Upp, os moradores da Cidade de Deus tiveram que se adaptar à nova situação. Aqueles que tinham fugido para outras favelas e voltaram para “casa”, logo notaram que trabalhar no tráfico em uma favela “pacificada” não seria a mesma coisa que antes. Houve também uma drástica redução dos rendimentos e do espaço objetivo de cargos dentro da boca de fumo local. Por isso, vários jovens resolveram procurar um emprego formal. 

Aqueles que decidiram continuar atuando no comércio de drogas ilícitas, tanto na Cidade de Deus como no Santa Marta, entenderam em um primeiro momento que não era plausível retomar por completo o domínio territorial da favela, dada permanência e a superioridade do poder armado do Estado naquele momento. Como também não era possível naquele primeiro momento do projeto das upps estabelecer algum tipo de negociação envolvendo “arrego”, os traficantes perceberam que para subsistir nos territórios teriam que alterar suas condições de existência. Passaram, então, a testar novas estratégias de ação e adaptar o comércio de drogas para que ele sobrevivesse no novo ambiente.  

As principais mudanças no comércio varejista de drogas ilícitas em favelas logo após a chegada da upp foram: (a) a venda se tornou menos “sedentária” (Grillo, 2013) (ou seja, os pontos de venda passaram a variar mais de lugar); (b) os vendedores passaram a trabalhar de forma mais dissimulada e menos ostensiva (já que deixaram de ostentar armas com frequência); (c) grande parte das vendas passou a acontecer através do modo chamado de “estica” (os traficantes deixaram de carregar a droga nos bolsos ou em mochilas e passaram a deixar pequenas “cargas” escondidas em algum lugar próximo de onde estavam); (d) houve um aumento da utilização de menores de idade como vendedores de droga; (e) também ocorreu um aumento no número de pessoas trabalhando como “olheiros”. 

O comandante da Upp da Cidade de Deus descreveu essa mudança como uma “adaptação dos traficantes ao novo ambiente”. Em uma entrevista, ele destacou que a presença de menores no tráfico se intensificou de forma considerável, passando a dificultar muito o trabalho da polícia na favela. Um jovem envolvido com o comércio de drogas ilícitas na Cidade de Deus apontou durante uma conversa que o uso dessa mão de obra era necessário naquele momento, pois “os meninos que já tiveram passagem pela polícia ficam pichados. Os policiais conhecem até pela tatuagem. Tatuagem esverdeada de cadeia, aí os caras já olham. ‘Opa, vem cá’”. Por isso, na visão do próprio jovem, nesse contexto de “pacificação”, “o que funciona mais é menor vender, porque se pegarem o menor não vai dar em nada mesmo. Vai e volta, vai hoje e volta depois de amanhã”.  

O mesmo jovem destacou também que, depois da “pacificação”, foi necessário aumentar o número de olheiros ou “atividades” atuando na favela. Como as “fronteiras tácitas” entre as áreas de atuação do tráfico e da polícia tornaram-se mais borradas e fluidas após a chegada da Upp (Grillo, mimeo.), os métodos utilizados para proteger aqueles que realizavam a venda de drogas – assim como as “cargas” e o material bélico existente na favela – também tiveram que mudar. Enquanto antes da upp os dispositivos de vigilância concentravam-se principalmente na região fronteiriça entre o asfalto e o morro, de modo que os traficantes pudessem monitorar qualquer aproximação de policiais ou facções rivais em relação ao território, após a “pacificação” eles passaram a voltar-se sobretudo para o interior da favela.  

Se antes a dinâmica da própria vigilância do tráfico em favelas era marcada por expectativas que deslizavam entre oposições rígidas – a ausência e ou a presença da polícia na favela –, no período pós “pacificação”, ela se refinou e passou a estar relacionada com “gradações de presença” potencial da polícia no território. As fronteiras deixaram de ser extensas e bem demarcadas e tornaram-se intensivas e variáveis (DeLanda, 2010). Isso porque, a partir de 2009, novos instrumentos e estratégias de monitoramento das mobilidades passaram a ser utilizadas para que os traficantes pudessem investigar e mapear constantemente o fluxo de circulação tanto de pessoas, quanto de objetos e de informações pelo território. Tal mapeamento tornou-se essencial para que eles pudessem tentar mensurar da forma mais precisa possível as intensidades da presença de policiais da Upp nas mais variadas partes dos territórios “pacificados” – a recíproca sendo verdadeira. 

O “bom traficante”  [editar | editar código-fonte]

Em resumo, é possível dizer que com “processo de investigação” que teve início após a chegada da upp, uma nova “educação da atenção” (Gibson, 1979; Ingold, 2000) foi requisitada, isto é, uma nova modalidade de afinação do sistema perceptivo dos jovens envolvidos com o “mundo do crime” e com o ambiente foi necessária para “navegar” (Vigh, 2009) na ecologia sensível da favela pós-“pacificação”. Nesse sentido, o mapeamento do território das favelas “pacificadas” tornou-se essencial para que os traficantes – assim como os policiais da upp – pudessem traçar estratégias de ação ajustadas ao novo ambiente.  

Nesse processo de mapeamento do novo ambiente da favela, nos primeiros anos depois da inauguração da upp, a força “sedentarizante” do fuzil passou a dar lugar à observação atenta dos olheiros e à comunicação “flexibilizante” dos celulares e radinhos usados para monitorar os fluxos de circulação de pessoas, objetos e informações que ocorriam nos territórios com Upps. Desse modo, os dispositivos de monitoramento que antes eram usados mais na vigilância das fronteiras entre o morro e o “asfalto”, passaram a ser utilizados em todo o território da favela e ganharam uma maior centralidade na atuação cotidiana dos traficantes.  

A lógica do “tá tudo dominado” que guiava o ideal de ação dos traficantes no período pré- Upp perdeu um pouco de sua força dando lugar, sobretudo, à lógica do “tá tudo monitorado” do contexto pós-“pacificação”. Isso porque, após a Upps, os traficantes entenderam que não podiam mais ter – e, em certo sentido, também não mais precisavam de – o domínio de todo o território da favela para continuar a venda de suas mercadorias. Contudo, eles tiveram, para isso, que transformar sua forma de vida para se adaptarem ao ambiente pós- Upps. E, nessa nova lógica, o “bom traficante”, isto é, a normatividade imanente do “traficante ideal” deixou de ser apenas pautada pela valorização do “ethos guerreiro” (Zaluar, 1996) e da disposição para o confronto ou para matar passando a ser também avaliado, em grande medida, por sua capacidade de manter-se “na atividade”, ou seja, permanecer vigilante e sempre atento àquilo que está acontecendo ao seu redor. Ao dizer isso, não afirmo que esta segunda lógica não existisse antes ou o que a primeira tenha deixado de existir. Sustendo apenas que a dimensão da vigilância assumiu uma maior centralidade no modus operandi do tráfico no contexto pós-“pacificação”, dando relevo e intensificando essa capacidade de “estar em atividade” em detrimento daquela da “disposição para o confronto”.  

Vale notar que a lógica do monitoramento não tem a sua importância restrita ao tráfico, mas também à própria Upp. No início do processo de “pacificação”, os policiais também passaram a monitorar todos os “movimentos suspeitos” dentro das favelas. Isso tornou-se essencial para que a polícia, pouco a pouco, mapeasse “quem é quem” e descobrisse as formas de atuação dos traficantes locais; além disso, era necessária a intensificação do monitoramento para que os pms pudessem escolher o melhor momento para “dar o bote” e capturar os “inimigos” em uma espécie de “jogo de gato e rato” (Menezes, 2015).  

Com o jogo de “gato e rato” – uma expressão nativa, diga-se de passagem –, enfatizo o fato de que a lógica do confronto direto saiu de cena e assumiram o protagonismo as táticas de engano e a lógica das armadilhas. Pois o que estava em jogo nesse contexto do “gato e rato” da favela no início do processo de “pacificação” era menos a força bruta do confronto e mais a ação calculada que antecipa o erro de percepção e de atenção do outro. Era na boa dissimulação de seus próprios movimentos e na capacidade de fazer o outro ter uma percepção equivocada sobre a sequência de eventos que a lógica da captura se fundamentava. Daí porque a antecipação “do que o outro espera” (e “do que o outro espera que eu espere”; “do que o outro espera que eu espere do que ele espera” e assim ad inifinitum) se intensificava e uma espécie de hiperreflexividade calcada em antecipações emergiu. Uma nova configuração da reciprocidade de expectativas passou a fazer parte da fenomenologia do habitar dos territórios pacificados. Com isso, uma considerável acentuação da tensão psicológica se estabeleceu.  

Ao tentar definir o que mudou com o processo de “pacificação”, um jovem envolvido com o comércio de drogas ilícitas na Cidade de Deus afirmou que “agora a adrenalina tá na mente, cara!”. Mais importante do que o confronto armado e direto, seria, segundo este traficante, a estratégia mental, o raciocínio rápido e a capacidade de estar constantemente “na atividade”. Outro jovem envolvido com o tráfico na Cidade de Deus, corroborando essa ideia, afirmou: “É, agora o negócio é mental […] Se você não tiver na atividade, eles vão te pegar, porque eles já estão dentro [da favela], eles já estão infiltrados ali. Eles também conhecem o território e sabem por onde você pode circular. Então, não dá para relaxar, tem que estar sempre de olho aberto. É atividade o tempo todo!”. 

Em entrevista feita em 2013, esse mesmo jovem comparou as vantagens e as desvantagens de atuar como traficante antes e depois da Upp . Em sua visão, após a chegada da upp, quem vendia droga havia deixado de ser definido como “bandido” e tinha se tornado sobretudo um “comerciante” ou “vendedor”. A vantagem dessa mudança, segundo ele, consistiria no fato de que o risco de morrer passara a ser menor, ainda que, por outro lado, tenha tido como contrapartida um aumento de um outro tipo de “pressão psicológica”. 

 

A rotinização da upp, o (re) fortalecimento do tráfico e a (re) formatação dos “arregos” [editar | editar código-fonte]

Se no momento da inauguração das primeiras upps, ninguém sabia ao certo como o projeto seria desenvolvido e que resultados poderia gerar, passados os primeiros dois anos de “pacificação”, o projeto conseguiu criar um “consenso” em torno de seus êxitos. Com a redução da letalidade, apoio dos moradores das favelas e do asfalto, notícias midiáticas que ventilavam as benesses do projeto, amparo do empresariado com fornecimento de suporte financeiro, além dos apoios dos governos nos três planos (municipal, estadual e federal), o “milagre” das upps passou a ser amplamente celebrado. Naquele momento, os que ousavam criticar o projeto ou eram imediatamente reduzidos à condição de defensores dos traficantes ou eram tratados como, para dizer o mínimo, desarrazoados. 

Nos primeiros anos da implementação do projeto, pouco (ou quase nada) era dito na grande mídia sobre a presença do tráfico nas primeiras favelas “pacificadas”. Contudo é importante ressaltar que, embora o tráfico de drogas no Santa Marta e na Cidade de Deus tenha se enfraquecido nesses primeiros anos, em 2011 moradores apontavam indícios de que os traficantes começavam a se fortalecer novamente nessas favelas. 

Entre 2011 e 2012, circulavam rumores e apareciam relatos de que traficantes estariam voltando a andar armados pelas favelas com Upp – sobretudo nos bailes. No caso do Santa Marta, ninguém nunca afirmou ter visto, de fato, um traficante armado no morro naquele período, mas muitos moradores com quem conversei a respeito disseram já ter ouvido boatos de que “os meninos estariam andando de pistola”. Enquanto conversávamos sobre o tema, alguns moradores acionaram outro rumor, apontando que traficantes não estariam andando armados nem enfrentando a polícia (como já acontecia em outras favelas, como a Cidade de Deus), porque o “dono do morro”, preso na penitenciária de Bangu, queria evitar problemas com a polícia na favela para não correr o risco de ser transferido para um presídio de segurança máxima em outro estado do país.  

Um rumor parecido também circulou pela Cidade de Deus, onde pessoas diziam que em uma área da favela não tinha enfrentamento armado porque o tal “dono” que comandava a venda de drogas na região proibia os bandidos de trocarem tiro dentro do território sob sua jurisdição. Já em outra área, com outro dono, a ordem seria inversa, a saber, seria para que bandidos atirassem em policiais que estavam “causando problemas” para o tráfico. 

Em 2012, contudo, surgiram relatos de que em todas as áreas da Cidade de Deus os “meninos” da boca de fumo estariam voltando a confrontar a polícia com o uso de armas de fogo. Um morador da Cidade de Deus afirmou que algumas “dinâmicas” que existiam no passado estariam voltando e a violência começava a “se naturalizar novamente”.  

Relatos apontavam, entre 2012 e 2013, ter havido um afrouxamento da regulação e da evitação do uso da força física nas favelas “pacificadas”. Moradores comentavam que se logo após a chegada da polícia os traficantes evitavam dar uma surra em alguém que “vacilou”, para não atrair a atenção da polícia “pacificadora”, agora eles pareciam já não ter mais qualquer medo de empregar ações violentas – e isso até mesmo no caso do Santa Marta, considerada “favela-modelo”. 

Moradores da Cidade de Deus relataram que casos de agressões cometidas por traficantes também passaram a ocorrer com mais frequência a partir de 2013. E, além do crescimento dos casos de agressão, rumores começaram a apontar que os assassinatos e desaparecimentos estavam aumentando. 

Como a fala dos moradores evidenciava em 2013, parecia estar tornando-se mais intensa a percepção, entre a população das áreas “pacificadas”, de que, naquele momento, os policiais da upp estavam fazendo “corpo mole” e não estavam se empenhando para evitar que ocorressem crimes nas favelas. É interessante notar que, por um lado, os policiais da upp associavam o aumento da venda de drogas e a volta do fortalecimento do tráfico a um processo de “adaptação” dos traficantes ao novo contexto pós-“pacificação”; por outro, muitos moradores associavam o fato de o tráfico estar ganhando força com um outro processo que estaria simultaneamente ocorrendo nas favelas com upp: a volta da corrupção.  

Vale lembrar que no início da Upp o discurso oficial apontava que a maior parte do efetivo que atuaria em áreas “pacificadas” seria composta por policiais recém- -formados. A utilização de policiais novatos, como indicam Siqueira e Rodrigues (2012), além de decorrer da necessidade de efetivo suficiente para as unidades, estava “associada à expectativa de que os novos policiais não compartilhassem dos mesmos ‘vícios’ daqueles que já praticavam as formas tradicionais de policiamento no Rio de Janeiro” (2012, p.11). Havia uma aposta de que a utilização de policiais recém-formados no projeto poderia ajudar a combater a corrupção dentro da upp. E, inicialmente, não apenas bradava-se nos principais meios de comunicação carioca como os próprios moradores tinham a percepção de que a upp tinha conseguido gerar um “maior controle social, interno e externo, sobre a corrupção e o abuso de poder praticados por policiais” nos territórios ‘pacificados’” (Musumeci et al., 2013, p. 1).  

No caso do Santa Marta, quando a major Priscilla Azevedo, a primeira comandante de uma favela “pacificada”, deixou o comando da upp começaram a circular rumores de que os policiais estariam pedindo propina para “afrouxar” o policiamento do morro. Entre o final de 2010 e o início de 2011, quando um novo capitão assumiu a primeira upp da cidade, muitos moradores começaram a notar que os policiais já não faziam mais rondas pelos becos e que só ficavam sentados dentro das viaturas ou parados em pontos fixos. Como apontou um morador da favela de Botafogo: “se os caras estão voltando a mostrar arma, isso porque o policial da Upp dá motivo […]. O cara vai vender escondido, não vai botar fuzil, não vai botar pistola. Mas se não tiver, se tiver a possibilidade de mostrar a arma, a droga, ele vai mostrar”. 

Na Cidade de Deus, os moradores narravam sua percepção de que o policiamento fora “afrouxando” depois de mais ou menos dois anos que a ocupação da favela teve início. Meus interlocutores associavam tal “afrouxamento” a diversas modalidades de negociações financeiras entre policiais e traficantes que, pouco a pouco, começaram a ocorrer em áreas “pacificadas”. Alguns desses arranjos – que fazem parte do que Misse (2006) chama de mercados de proteção agenciados pelas forças policiais – envolveram: (a) pms pedindo “gorjetas” para comerciantes e “produtores culturais” para permitirem a realização de festas na favela, de modo que, assim, não houvesse um encerramento da atividade no horário imposto pelo comando local ou mesmo fiscalização a respeito do que estaria ocorrendo durante esses eventos; (b) policiais “capturando” ou “sequestrando” meninos da boca e pedindo “resgate” para que não fossem levados para delegacia11; (c) policiais “forjando flagrantes” com frequência; (d) pms “comprando x9” (dando drogas, por exemplo, para “viciados” darem pistas sobre funcionamento do tráfico) e “vendendo x9” (pedindo dinheiro para traficantes para entregar quem passou informações sobre o tráfico para upp); (e) arranjos de arrego por guarnição ou por turno e mesmo “arrego por rua”; (f ) acerto de “arrego por cima”.  

De forma resumida, é possível afirmar que, passados os primeiros anos após a inauguração das Upps, parece ter havido redefinições nas negociações de “mercadorias políticas” (Misse, 2007) em áreas “pacificadas”. Se antes traficantes de uma certa favela conseguiam pagar para ter o “alvará de funcionamento” (Barbosa, 2012) de todas as bocas de fumo de uma favela e, consequentemente, ter a liberdade de atuar por todo o território “arregrado” por um certo período de tempo (por uma semana por exemplo), passados os primeiros anos de “pacificação”, essas negociações pareciam acontecer muito mais no varejo (dependendo do plantão) e serem mais circunscritas espaço-temporalmente, isto é, relativas a uma porção muito bem deli mitada dentro do território, como uma rua específica, e a um determinado período bem delimitado de horas. Durante uma entrevista realizada no início de 2016, um PM apontou que as negociações de “arrego” além de acontecerem “por baixo” (negociados diretamente com os “praças” de cada turno), mais recentemente também voltaram a acontecer, como antes da Upp, “por cima” (negociados com “oficiais”). Embora custasse mais caro, o “fechamento por cima” seria mais vantajoso porque o comandante ofereceria uma estrutura de trabalho melhor para os traficantes. Isso porque, tendo autonomia para “congelar” todas as viaturas da favela, o comandante não permitirá que policiais circulassem e atuassem em nenhuma área de determinado território “pacificado”. 

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Veja também[editar | editar código-fonte]