Dono do Morro
Dono do Morro é a expressão que atualmente designa o chefe do tráfico de drogas em favelas do Rio de Janeiro. Esta categoria se aplica apenas quando se trata da venda de drogas em territórios controlados por “facções” ou “comandos” criminais, como o Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos. Em algumas áreas de atuação das chamadas “milícias” ocorre também a venda de drogas, mas os patrões desses negócios não são chamados de “donos de morro”.
Autoria: Carolina Christoph Grillo
Introdução[editar | editar código-fonte]
Os “donos de morro” reivindicam não apenas o controle armado dos pontos de venda de drogas – as chamadas “bocas de fumo” – mas também dos territórios que as circunscrevem, interferindo em outras dimensões da vida social local: Impõem-se como árbitros de contendas – os chamados “desenrolos”; frequentemente interferem nas associações de moradores, chegando a impor candidatos e quadros administrativos; podem cobrar taxas sobre diferentes atividades econômicas, como aos comércios locais, transporte alternativo, fornecimento de gás e serviço de TV a cabo desviado; costumam financiar eventos culturais, como bailes funk e shows de pagode; e tradicionalmente engajam-se em práticas assistenciais, como a distribuição de brinquedos para crianças e a compra de remédios para alguns moradores. Como enfatizou Zaluar[1] , eles não substituem o Estado, mas “atuam como patrões no velho estilo da patronagem brasileira” e, assim, “fazem sobreviver uma figura paradigmática de nossa formação social”.
É importante ressaltar que o personagem do “dono do morro” antecede o tráfico de drogas. Ele aparece já nos primeiros relatos sobre as favelas cariocas, como o do jornalista Costallat[2], em que o “valente” Zé da Barra é descrito como o “chefe incontestável da favela”. No entanto, até o início da década de 1980, as lideranças locais estiveram muitas vezes relacionadas ao jogo do bicho, escolas de samba, partidos políticos, órgãos administrativos e associações. Foi somente quando a cocaína passou a ser comercializada nos já existentes pontos de venda de maconha, multiplicando os seus lucros, que o tráfico ganhou poder e seu chefe despontou como “dono do morro”[3].
Organização local do varejo de drogas[editar | editar código-fonte]
Em áreas de moradia de baixa renda do Rio de Janeiro – como favelas e conjuntos habitacionais – propagou-se um modelo específico de gestão do comércio varejista de drogas, que se distingue bastante, por exemplo, do modo como ocorre a venda de drogas nas favelas e periferias de São Paulo[4]. O tráfico de drogas em favelas cariocas é operado por empresas locais do comércio de drogas – chamadas “firmas” –, caracterizadas por relações internamente hierarquizadas, pela fixidez territorial dos pontos de venda, a opulência armada dos traficantes e, finalmente, pela sua articulação “translocal” em comandos.
Contrariando as representações jornalísticas e de senso comum da organização do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, que retrata os comandos como formações verticais, à semelhança das máfias e cartéis; os principais estudos sobre o tema enfatizam que a hierarquia do tráfico é, sobretudo, local. Mesmo os contatos para a obtenção de drogas podem ser independentes da participação dos comandos, de modo que cada dono de morro tem o seu “matuto” (fornecedor) e, se não o possuir, depende de outros donos aliados que o “fortalecem” com a droga[5]. Tais redes desse comércio ilegal tampouco estão diretamente subordinadas a grupos estratégicos do crime organizado[6] .
Nas facções ou comandos criminais do Rio de Janeiro não existe lideranças acima dos donos de morro[7] , pois são elas redes horizontais de proteção mútua entre donos de morro[8]. Se, localmente, as “firmas” do tráfico de drogas organizam-se em estruturas hierárquicas piramidais, no âmbito supralocal, as alianças de que se compõem os comandos são laterais. Essas alianças supralocais são mobilizadas principalmente a partir das prisões, onde se formaram os comandos e onde atualmente se encontra a maior parte dos donos de morro.
Existem donos de morro mais proeminentes do que outros em uma mesma facção, por comandarem firmas do tráfico de drogas mais prósperas e com maior poder armado. Seus posicionamentos têm maior peso nas decisões políticas coletivas das facções, como aquelas referente à formação ou ruptura de alianças, disputas territoriais com outros comandos, protestos no interior das prisões (rebeliões, greves de fome, etc.) e mediação dos conflitos entre donos de morro do mesmo comando. No entanto, esses donos de morro mais poderosos não detêm a prerrogativa de interferir nos negócios locais de outros donos de morro.
Para comandar o tráfico em favelas a partir da prisão ou residindo fora das favelas cujas bocas-de-fumo lhe pertencem, os donos de morro costumam nomear um “gerente-geral”, “frente” ou “responsável” de sua confiança, para chefiar o tráfico em seu lugar. É comum que o “frente do morro” seja chamado também de dono do morro. Ele, por sua vez, nomeia outros “gerentes” ou “responsáveis” por pontos de venda ou cargas de drogas, que organizam o trabalho nas bocas e participam dos lucros obtidos. Através da distribuição desses cargos de confiança, o dono do morro amplia a sua base política local e mantém o fluxo de retorno dos rendimentos do tráfico[9].
Vale ressaltar que a atuação das empresas locais do tráfico, comandadas por donos de morro e vinculadas entre si por meio das facções, está centrada na distribuição de drogas em territórios delimitados e, especialmente, nas práticas de varejo. Segundo Barbosa[10], as redes do tráfico de drogas são compostas por diversas articulações singulares quanto ao seu lucro, riscos e mecanismos de negociação, havendo distintos operadores nos processos de intermediação da droga até chegar ao comércio varejista que, por sua vez, também possui o seu próprio lucro, riscos e mecanismos de negociação. Assim, embora o dono do morro se ocupe também de providenciar junto aos atacadistas o abastecimento de drogas para as suas bocas de fumo, as questões que lhe concernem são principalmente aquelas relacionadas à distribuição de drogas ao nível local.
Em favelas do Rio de Janeiro, a venda de drogas é realizada em pontos comerciais fixos, facilmente identificáveis tanto pelos seus potenciais clientes, quanto pela polícia ou grupos rivais. Essa característica implica a necessidade de articulação de uma defesa armada das bocas de fumo para proteger as drogas e dinheiro, além das vidas e liberdade dos traficantes. Desde que grandes quantias de dinheiro e drogas passaram a ser movimentadas pelo tráfico em favelas cariocas – sobretudo com a comercialização da cocaína –, surgiu a necessidade de investir na segurança dos pontos comerciais contra os ataques de policiais e traficantes rivais. Os donos de morro passaram a investir uma parcela significativa de seu lucro na compra de armamento e, paralelamente, no pagamento de subornos conhecidos como “arrego”, a fim de reduzir a repressão policial. Também parte dos quadros de funcionários da firma foi deslocada para funções estritamente bélicas, o que contribuiu para um considerável aumento no contingente do tráfico.
A formação desses “exércitos” de homens armados é o que permite estabilizar as relações de poder locais e articular a defesa dos territórios pertencentes aos donos de morro e, consequentemente, à facção. A resistência oferecida por traficantes às operações de incursão policial em favelas ou às tentativas de invasão por traficantes de outra facção é chamada “contenção” e é desempenhada pelos traficantes armados que estão de “plantão”, ocupando a posição de “soldados”. Assim, o domínio dos comandos criminais sobre os territórios de favelas se faz evidente principalmente pelo porte ostensivo de armas de fogo – inclusive as de grosso calibre – por traficantes.
Diferentemente dos grupos criminosos conhecidos como milícias, as facções do tráfico de drogas não contam com a participação de políticos e agentes da segurança pública e defesa nacional em seus quadros efetivos. Por mais que possam manter relações espúrias com agentes estatais e até mesmo esquemas sistemáticos de corrupção do aparato policial, sua relação com as instituições encarregadas do controle social está marcada pelo confronto armado com as forças policiais.
A ordem imposta pelos donos de morro[editar | editar código-fonte]
A literatura jornalística[11] sobre as facções do tráfico de drogas no Rio de Janeiro costuma enfatizar os poderes quase absolutos e a multiplicidade de papéis – “ditador”, “prefeito”, “juiz”, “conselheiro”, “delegado”, “carrasco”, etc. – assumidos pelo dono do morro nas favelas. Por certo, a população que vive em territórios controlados por grupos de traficantes armados costuma estar submetida a uma ordem imposta pelas lideranças do tráfico local.
O dono do morro ou os responsáveis por ele nomeados arbitram sobre os conflitos levados até eles e possuem a prerrogativa de optar por soluções pacíficas ou de força, como ordenar a expulsão, espancamento ou execução sumária de partes do conflito. Esses conflitos podem se referir às questões pertinentes aos negócios ilegais locais, como dívidas, acusações de traição e delação, mas frequentemente se referem a brigas conjugais, disputas entre vizinhos e demais contendas sem ligação direta com as atividades do tráfico. A ordem imposta pelos traficantes costuma incluir também a interdição da prática de estupro, pedofilia e furtos e roubos no interior e imediações da favela. Esses procedimentos de mediação de conflitos arbitrados pelo dono ou responsável do morro são chamados “desenrolos”, mas a imprensa costuma se referir a eles como “tribunais do tráfico”.
Pesquisas realizadas com moradores de favelas ressaltam a angústia – ou “asfixia”[12] – daqueles que se veem submetidos aos controles sociais arbitrários de uma ordem em que “não há propriamente um padrão definido e compreensível para os moradores” [13]. Segundo Machado da Silva[14], “todos obedecem apenas porque e enquanto sabem, pela demonstração do fato em momentos anteriores, que são mais fracos, com a insubmissão implicando necessariamente retaliação física quase sempre letal”. A contiguidade territorial com os traficantes coloca os moradores de favela no “fogo cruzado” entre a violência do tráfico e da polícia compondo a experiência do que Machado da Silva e Leite[15] denominaram “vida sob cerco”. Estes autores relatam que o discurso dos moradores de favelas mobiliza distinções claras entre “trabalhadores” e “bandidos”, empreendendo uma tentativa de “limpeza moral” com relação aos traficantes com quem são obrigados a compartilhar o território e cujas normas lhes são impostas pelo uso da força.
A primeira pessoa a assinalar que os “trabalhadores” residentes em favelas construíam as suas identidades em oposição à dos “bandidos” e “vagabundos” foi Zaluar (1985) que, entretanto, observou uma ambivalência nesta relação, pois os moradores avaliavam os “bandidos” “segundo as regras locais de reciprocidade e justiça”[16] , em que crimes como o roubo e o homicídio não eram julgados abstratamente como ruins. Para Leite (2008) o que se apresenta como “ambiguidade” pode ser compreendido como “recursos de diminuição dos danos” associados à contiguidade territorial com o tráfico. Ela distingue entre dois conjuntos básicos de recursos: a não-confrontação dos criminosos e a preservação das possibilidades de contato com eles através dos desenrolos. Segundo a autora: “‘Desenrolar’, neste contexto, face à disparidade de forças envolvidas, significa acionar uma força de ação e um repertório através dos quais moradores tentam evitar que o exercício da força se abata sobre si mesmos, seus familiares e/ou amigos”[17] .
No entanto, sem prejuízo para as separações entre trabalhador e bandido, observa-se que os próprios moradores podem recorrer aos traficantes para buscar soluções para os seus conflitos, seja porque são proibidos de acionar a polícia na favela[18] ou porque não encontram respostas nas demais instituições a que poderiam recorrer. Zaluar (1985) já relatava que moradores de favela solicitavam a ajuda de “bandidos”, “quando eram perturbados por pivetes do local” [19] e, mais recentemente, numa pesquisa em favelas ocupadas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), Menezes[20] constatou um discurso de saudosismo dos moradores com respeito às soluções extralegais do tráfico para casos como furtos, roubos e estupros.
A percepção dos moradores a respeito da ordem imposta pelos traficantes varia de uma favela para outra, dependendo do modo como o dono do morro exerce o seu poder. Uns são mais arbitrários e outros procuram preservar maior respeito aos moradores. Misse (2003) observou que a prisão de lideranças do tráfico desencadeou um processo de “juvenilização do tráfico”, propiciando a disseminação de modos tirânicos de dominação em favelas Rio de Janeiro.
“Guerras” e “golpes de Estado”[editar | editar código-fonte]
Existem no Rio de Janeiro diferentes comandos ou facções que disputam entre si pelo controle da venda de drogas em áreas de moradia de baixa renda, ocasionando conflitos armados a que muitos se referem como “guerra”. Os comandos mais conhecidos são o Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA). Como colocado acima, essas organizações são formadas por redes de aliança entre donos de morro e, portanto, a autoridade do dono do morro sobre a favela é respaldada pela facção à qual ele pertence. Segundo Grillo[9], os comandos autenticam a posse do dono do morro sobre os pontos de venda de drogas numa determinada área, de modo que a alienação dessa posse implica necessariamente a ruptura com a facção à qual o dono do morro é aliado. Nos casos de conflito armado pelo controle do tráfico numa região, donos de morro aliados podem disponibilizar seus “soldados” para conter tentativas de invasão ou retomar territórios.
A destituição de um dono de morro ocorre por meio de invasão armada da favela por grupos de traficantes de uma facção rival ou de uma traição articulada por altos funcionários da firma local do tráfico – conhecida como “golpe de Estado” –, que também tende a desencadear conflitos armados. A dinâmica das invasões favorece a extensão da base territorial de um único dono, colocando sob o seu domínio territórios descontínuos[21] , que abrangem várias favelas, em vez de apenas os territórios contínuos de uma única favela ou “complexo” de favelas . As lideranças que encontram êxito em agregar novos espaços ao seu domínio passam a despontar como lideranças também nos processos decisórios internos ao comando. As guerras colocam em movimento os mecanismos de coesão faccional e reconfiguram as relações poder existentes, podendo levar alguns donos de morro a despontarem como lideranças políticas de maior projeção dentro das facções.
Já as traições chamadas de golpes de Estado costumam decorrer de conflitos entre o dono e o frente do morro referentes à parcela dos rendimentos do tráfico que cabe ao dono. Ocorre de o gerente-geral que comanda o tráfico na ausência do dono do morro se articular com uma facção inimiga para assumir o comando integral do tráfico numa determinada área, destituindo o dono de sua posição. O comando a que o dono do morro original é aliado costuma apoiá-lo em sua campanha contra o frente do morro que o traiu. No entanto, exceções podem ocorrer quando há quebras de aliança entre os donos de morro de uma mesma facção.
Este é o caso, por exemplo, da história narrada por Glenny[22] de ruptura dos traficantes da Rocinha com o Comando Vermelho no ano de 2004. O autor atribui o assassinato de Diego, “dono” da Rocinha, ocorrido dentro da prisão, à “cúpula” do Comando Vermelho. Lulu, sucessor nomeado por Diego, embora continuasse ligado ao Comando Vermelho, acabaria entrando em conflito com Dudu, que assumira a posição de “frente do morro” durante a sua ausência. Contrariando a tendência mais comum nos comandos de apoio aos donos de morro aliados, o CV apoiou o frente do morro Dudu na disputa, de modo que Lulu procurou respaldo na facção inimiga Amigos dos Amigos. Lulu foi assassinado por policiais do BOPE, mas seus sucessores, que se ligaram ao ADA, obtiveram êxito na disputa pelo controle do tráfico na Rocinha. Mais recentemente, no ano de 2017, o tráfico na Rocinha passou novamente ao controle do Comando Vermelho, após um novo golpe de Estado
Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]
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