Lei de drogas
O livro "Pela Metade: a Lei de Drogas do Brasil" analisa a Lei 11.343 de 2006, que buscava uma política mais equilibrada sobre drogas, mas resultou no aumento significativo da população carcerária devido à falta de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes. A origem social, escolaridade e local de moradia se tornaram fatores determinantes na aplicação da lei, resultando no encarceramento massivo de jovens pobres, negros e residentes em áreas periféricas.
Autoria: Marcelo da Silveira Campos
Publicado originalmente no site Gauchazh - Segurança, sob o título "Política pública sobre drogas é desequilibrada e provoca injustiças, defende pesquisador" em 31 de janeiro de 2020.
Sobre[editar | editar código-fonte]
O livro "Pela Metade: a Lei de Drogas do Brasil", publicado pela Editora Annablume em 2019, marca uma interpretação da atual lei de drogas do Brasil, a Lei 11.343 de 2006, chamada popularmente de Nova Lei de Drogas. A hipótese do livro, fruto de minha tese de doutorado, é a seguinte. Quando o Brasil optou por uma nova política de drogas (o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), duas ideias foram aprovadas no novo dispositivo legal: o fim da pena de prisão para o usuário, estabelecendo um sistema de saúde pública para deslocá-lo da prisão para o sistema de saúde, e, ao mesmo tempo, o aumento da pena mínima para o comércio de drogas com o objetivo, segundo os parlamentares, de reprimir os coletivos criminosos emergentes em meados dos anos 2000.
Foi justamente essa combinação que fez coexistirem uma lógica universal e uma lógica hierarquizante que engendrou o encarceramento massivo de mulheres e homens jovens, pobres, negros e moradores das periferias de centros urbanos. A explosão do encarceramento por drogas gerou, após a nova lei, o aumento percentual de 13% de toda população prisional presa por drogas para 30% de toda população prisional, conforme mostram os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Tal mudança, portanto, pode ser pensada como os efeitos inesperados e contraditórios de uma política que teve um objetivo que era justamente o contrário: diminuir o número de presos por drogas para estabelecer um verdadeiro tratamento de saúde para os consumidores de substâncias consideradas ilícitas.
O livro mostra que, na cidade de São Paulo, as chances de alguém andando nas ruas ser considerado pelo sistema de justiça criminal como traficante, e não usuário, aumentaram quatro vezes, na comparação com o período anterior à entrada em vigor da lei (ano de 2004). O segundo fator estatístico que mais pesa sobre a incriminação de uma pessoa como traficante e não como usuário é a escolaridade: pessoas de menor escolaridade (analfabetos e pessoas com Ensino Fundamental incompleto) têm 3,6 vezes mais chances de serem consideradas traficantes pela Justiça. Por fim, se a pessoa morar num bairro periférico, ela terá duas vezes mais possibilidades de ser considerada traficante e não usuária.
Ainda apresento na obra que a quantidade e o tipo da droga não são fatores significativos para alguém ser incriminado como traficante ou usuário. Para resumir, pode-se dizer que, após a nova lei de drogas, ser considerado um traficante e não um usuário tem a ver, em primeiro lugar, com a origem social da pessoa: se alguém for escolarizado, tiver uma profissão e morar em algum bairro central das metrópoles, muito excepcionalmente será considerado um traficante – apenas 34 pessoas, das 1.256 que analisei em minha tese de doutorado, possuíam Ensino Superior completo ou incompleto. Além disso, também se pode considerar que a própria nova lei de drogas não estabeleceu nenhum critério objetivo para diferenciar um usuário de drogas de um traficante.
Por último, quando analisei a quantidade de drogas das pessoas incriminadas, de um total de 799 registros nos quais contavam exatamente o tipo e a quantidade apreendidos, 404 ocorrências foram de 0,01 até 7 gramas de drogas. Ou seja, prende-se muita gente com ínfimas quantidades e quase exclusivamente das camadas pobres da população, mesmo sabendo-se há muito tempo que há todo um circuito de uso e comércio de substâncias ilícitas nas classes médias e altas dos grandes centros urbanos do Brasil – embora esse circuito de transações nem de longe passe por esse mesmo sistema de Justiça.
Nesse sentido, este verbete é um convite à reflexão dos leitores: uma política de drogas que começava a ser efetivamente mais racional e com foco na saúde pública foi sobreposta pela falta de avanços e investimentos na área e pela dificuldade dos operadores em deslocar efetivamente o usuário para o sistema de saúde e não para o sistema de Justiça. Aliás, com a Lei 13.840/2019, essa situação piorou (e muito).
O resultado é que, no sistema jurídico e nas prisões brasileiras, impõe-se a lógica de que as pessoas não devem ser tratadas igualmente pelas suas infrações cometidas, mas sim desigualmente mediante seu status social. E, mesmo que uma política pública busque, minimamente, avanços em termos de direitos e garantias individuais (como foi a metade de saúde pública da Lei 11.343, de 2006), logo virão os guardiões da ordem para retraduzir a desigualdade social em termos jurídicos, legitimando a política desigual. Feita pela metade, portanto, a lei de drogas teve como sua principal consequência o hiperencarceramento dos pobres nas prisões brasileiras.