Expansão das milícias no Rio de Janeiro (relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Mapa - A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro
Mapa - A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro

Ao longo das últimas décadas, o poder armado das chamadas “milícias” sobre territórios, populações e mercados vem se expandindo na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana. Tal expansão tem contribuído para alterar a configuração dos conflitos entre grupos armados territoriais no Rio de Janeiro, que se tornaram ainda mais complexos, caracterizando um quadro volátil, não completamente estabilizado. Se, antes, a questão criminal carioca e fluminense estava centrada nas disputas territoriais entre “comandos” ou “facções” do tráfico de drogas e os tiroteios entre esses grupos de traficantes e a polícia, hoje o fenômeno das milícias parece ter crescido em importância. A fim de compreender os processos por meio dos quais as milícias ampliaram o seu poder, o presente estudo buscou formular instrumentos analíticos que permitissem conhecer melhor as bases políticas e econômicas desses grupos no município do Rio de Janeiro.

Autoria: Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles. 

Informações do verbete reproduzidas a partir do relatório "A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados" do GENI/UFF.

A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados (2021)[editar | editar código-fonte]

Introdução[editar | editar código-fonte]

Ao longo das últimas décadas, o poder armado das chamadas “milícias” sobre territórios, populações e mercados vem se expandindo na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana. Tal expansão tem contribuído para alterar a configuração dos conflitos entre grupos armados territoriais no Rio de Janeiro, que se tornaram ainda mais complexos, caracterizando um quadro volátil, não completamente estabilizado. Se, antes, a questão criminal carioca e fluminense estava centrada nas disputas territoriais entre “comandos” ou “facções” do tráfico de drogas e os confrontos armados entre esses grupos de traficantes e a polícia, hoje o fenômeno das milícias parece ter crescido em importância. A fim de compreender os processos por meio dos quais as milícias ampliaram o seu poder, o presente estudo buscou formular instrumentos analíticos que permitissem conhecer melhor as bases políticas e econômicas desses grupos no município do Rio de Janeiro.

Tomamos como referência o período de 2007-2020 –, de notável fortalecimento das milícias e de alcance dos dados levantados –, e utilizamos informações disponíveis em três bases de dados distintas: o Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, a base de operações policiais do GENI/UFF e a base da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) referente aos licenciamentos e legalizações de edificações novas. Esta pesquisa resulta da articulação entre diferentes grupos de pesquisa com a intenção de produzir conhecimento qualificado a respeito dos efeitos da regulação estatal de mercados legais e ilegais sobre o fenômeno de expansão das milícias, visando, assim, subsidiar o debate público acerca das políticas de segurança pública e planejamento urbano.

Até cerca de 15 anos atrás, as milícias eram exaltadas por diversas autoridades públicas como um modelo de segurança comunitária a ser replicado em favelas e bairros populares e eram retratadas pela imprensa como uma alternativa viável e menos violenta ao domínio territorial armado exercido por facções do tráfico de drogas. O atual prefeito Eduardo Paes, novamente eleito nas eleições municipais de 2020, quando ainda candidato ao seu primeiro mandato (2009-2012), chegou a afirmar a respeito de bairros da zona oeste que “a tal da polícia mineira, formada por policiais e bombeiros, trouxe tranqüilidade para a população” (O Globo, 15/09/2006)1. Em dezembro do mesmo ano, o ex-prefeito César Maia classificou as milícias como “autodefesa comunitária” e afirmou que elas representavam um “mal menor” se comparadas ao tráfico de drogas (09/12/2006).2 Hoje, o “mito da pacificação primitiva” (Werneck, 2015, p. 434) que marcou as primeiras narrativas de explicação do fenômeno já não mais encontra espaço na representação das milícias pela imprensa. Se, em março 2005, a reportagem de Vera Araújo ao jornal O Globo misturava narrativas elogiosas às denúncias de existência desses grupos e suas práticas de extorsão; o episódio do sequestro e tortura de uma equipe de repórteres do jornal O Dia por milicianos em 2008 marcou uma importante inflexão na cobertura midiática sobre o tema. Criou-se, finalmente, o contexto propício à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) para apurar a participação de parlamentes nas milícias, atendendo ao requerimento protocolado pelo deputado Marcelo Freixo no ano anterior.

Desde a chamada CPI das Milícias, tornou-se amplamente conhecida a participação de agentes públicos dos órgãos de segurança e ocupantes de cargos eletivos nesses grupos criminais armados que atuam em territórios de moradia de baixa renda, onde controlam ilegalmente ou cobram taxas extorsivas sobre os mercados de serviços essenciais como água, luz, gás, TV a cabo, transporte e segurança, além do mercado imobiliário. Sabe-se que tais controles são exercidos de maneira arbitrária, por meio de ações coercitivas como espancamentos, tortura e homicídios. Sabe-se ainda que as milícias se envolvem em disputas territoriais violentas – entre si e com “comandos” do tráfico de drogas – e que em diversas áreas elas também lucram com a venda de drogas. Nas palavras do delegado Marcos Vinícius Braga: “É mentira que miliciano não trafica drogas, é mentira que não rouba carga, que não rouba carros. Faz tudo o que o traficante faz” (Agência Brasil, 26/22/2019)3. A principal diferença entre os grupos de milicianos e as facções criminais já não reside tanto nos mercados que fornecem as bases econômicas para a sua reprodução – visto que eles são cada vez mais próximos – e sim nos tipos de atores que integram essas organizações. O que caracteriza uma milícia enquanto tal é sobretudo a participação de agentes públicos – como membros do Judiciário, parlamentares e policiais civis e militares da ativa e reserva – em seus quadros, algo que muito dificilmente ocorre nos comandos do tráfico. Como será visto, essa ambígua relação entre milícias e Estado parece estar relacionada à capacidade desses grupos de se multiplicar e ampliar sua influência, ocupando territórios cada vez mais extensos e elegendo cada vez mais representantes de seus interesses para importantes cargos políticos.

A pesquisa conduzida por Cano e Duarte (2012) sobre a evolução das milícias entre 2008 e 2011, isto é, nos anos imediatamente posteriores à CPI, concluiu que estavam ocorrendo o: “a) enfraquecimento do controle social e da capacidade das milícias de geração de renda; b) mudança no estilo de operar, adotando um estilo mais discreto e um perfil mais baixo” (p.63). Dez anos depois, deparamo-nos com milícias que de fato operam de modo distinto dos primeiros grupos de “polícia mineira”, mas agora com uma capacidade aumentada de geração de renda. O Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro – produzido em parceria pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), o datalab Fogo Cruzado, o Disque-Denúncia, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) e a plataforma digital Pista News –, revelou que as milícias controlam 56,8% do território da cidade do Rio de Janeiro, onde uma população de 2.178.620 pessoas (33,9% da população total) reside sob o domínio armado desses grupos.

No livro “A república das Milícias”, Manso (2020) descreve o processo de formação de alianças entre milicianos, policiais, parlamentares, bicheiros e traficantes que contribuiu para o fortalecimento das milícias nos últimos anos. O autor segue a trajetória de alguns notórios milicianos e, dentre eles, os policiais Fabrício Queiroz e Adriano da Nóbrega, que mantinham relações com a família do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, chegando a trabalhar ou empregar seus parentes como assessores parlamentares do atual senador Flávio Bolsonaro. Queiroz e Adriano – que, por recomendação de Flávio, recebeu a Medalha Tiradentes enquanto cumpria pena no Batalhão Especial Prisional em 2005, mas terminou assassinado na Bahia em 2019 – são apontados por Manso como importantes peças na formação das alianças que colaboraram para transformar as milícias na principal ameaça à democracia no estado do Rio de Janeiro.

Não há novidade na afirmação de que a participação de agentes públicos em grupos criminais milicianos constitui uma vantagem em relação aos demais grupos criminais armados e um dos maiores empecilhos no combate às milícias. Investigações conduzidas pela Polícia Civil frequentemente chegam a incriminar policiais e parlamentares e não raro esbarram em interferências políticas, como o afastamento de delegados, trocas de chefia e demais formas de obstrução de investigação. O presente estudo, contudo, buscou ir além dessas afirmações e analisar como ocorre o favorecimento estatal às milícias. Não se trata aqui de identificar os indivíduos e grupos que usurpam suas funções públicas para favorecer as milícias e sim as políticas públicas e práticas governamentais que são mobilizadas pelas milícias para ampliar o seu poder político e econômico. Por meio dessa abordagem que interpela não o dolo individual, mas sim as práticas de governo, pretendemos indicar que, é possível um enfrentamento eficaz das milícias através da ação política em geral e de outros direcionamentos das políticas públicas.

Para compreender as bases políticas e econômicas da expansão das milícias, a pesquisa baseou-se no mapeamento dos grupos criminais armados no Rio de Janeiro, elaborado com base em denúncias ao Disque-Denúncia, e utilizou, como variáveis chave, dados sobre (1) operações policiais e (2) atividade imobiliária. Como será visto, os resultados desta pesquisa apontam que, em comparação com os outros grupos armados do Rio de Janeiro, as milícias estão presentes em territórios nos quais o enfrentamento armado com as forças estatais foi bastante reduzido e a atividade imobiliária foi mais intensa. Os dados apresentados adiante sustentam a hipótese da pesquisa de que o direcionamento do uso da força pelo Estado e a regulação e fiscalização municipal do mercado imobiliário favoreceram o crescimento das milícias.

REALIZAÇÃO:

Equipe: Daniel Veloso Hirata, Adauto Cardoso, Carolina Christoph Grillo, Orlando Santos Jr., Diogo Lyra, Renato Dirk, Rodrigo Ribeiro, Daniela Petti, Julia Sampaio. / Apoio: Fundação Heinrich Böell, FAPERJ e CAPES.

Acesse o relatório na íntegra[editar | editar código-fonte]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Chacinas no Rio de Janeiro

Chacina do Jacarezinho

GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos)