Saulo Benício - Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País
Verbete produzido a partir das reflexões de Saulo Benício feitas no evento Marielle Vive! Favelas na Reconstrução do País, organizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco em 2023.
Autoria: Saulo Benício.
Resumo[editar | editar código-fonte]
"Marielle Vive! Favelas na reconstrução do país" foi um evento organizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco e realizado na Biblioteca de Manguinhos, na Fiocruz, no dia 13 de março de 2023. O objetivo do evento é repercutir e rememorar os 5 anos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, não elucidados até hoje e pensar a reconstrução do país sob a ótica das lutas das favelas e das populações e grupos discriminados.
Fala de Saulo Benício na íntegra[editar | editar código-fonte]
Primeiramente, queria saudar o espaço. Tô muito feliz de estar aqui compondo essa mesa maravilhosa com camaradas mulheres que eu admiro muito, que eu me espelho: a nossa Mônica Cunha, Mônica Francisco, Renatinha. Eu sou Saulo Benício, eu sou entregador de aplicativo e sou cotista de história da UERJ.
Eu sempre tenho trazido uma reflexão quando nas mesas que eu participo que é uma pergunta, né, para vocês pensarem também: hoje, quais são as opções da nossa juventude preta, pobre, favelada e periférica? Bom, tudo da onde eu vim, né, Nilópolis, Baixada Fluminense, elas se passam pelo militarismo, pelo trabalho informal e precarizado, a tentativa de uma profissionalização, né, técnica, é a universidade pública, sendo esse caso aí o mais difícil para nós, e no pior dos casos, o crime.
Tem alguém aqui que é da Baixada Fluminense, de Nilópolis? Tranquilo, é isso, é isso. Que se você tivesse falado de Nilópolis, eu falaria da-lhe Beija-Flor, mas tá tranquilo, cara. Quando nessa vivência de Baixada Fluminense, né, quando eu era criança, o meu pai falava sempre para mim: Saulo, evita andar na rua de boné, sem camisa, entrar nos estabelecimentos dessa forma, né, e assim, é muito difícil uma criança entender porque que ela deve se portar dessa forma. Quem mora na baixada sabe o cenário de violência que a gente vive, e também sabe que quando acontece alguma tragédia, primeiro a gente tem um silêncio enorme e depois a gente tem pessoas na rua para saber o que aconteceu.
Eu lembro até hoje, né, era criancinha mesmo, eu tava dormindo e aí na esquina da rua onde eu morava, teve muito barulho de tiro, muito tiro mesmo, e aí essa vivência da Baixada, a gente sabe que é assim. A minha mãe teve a ideia de me levar lá para ver sobre o que se tratava, assim como diversas pessoas na vizinhança, né, acho que isso é comum, né, em algum grau. Quando eu cheguei na esquina, tinham quatro jovens negros mortos pelo crime de fumar maconha e eu lembro até hoje que o pai, o pai de um deles, falava assim: “ah, eu sempre disse para ele não andar com essas pessoas, para ele não tá nesses espaços e tal”. Lamento de um homem negro que perde seu filho, né.
Assim como nós vivemos cotidianamente, e isso é muito marcante para mim em relação à vivência, porque isso diz muito sobre o sujeito negro na periferia das periferias, que é a baixada fluminense, que sobra para nós, quais as opções que sobram para nós, enquanto negros, favelados e periféricos.
Antes dos 18 anos, eu perturbava muito meu pai. Pai, me dá R$1 real. Não!? Também, na época, era o Fernando Henrique, funcionalismo público, e aí eu ficava perturbando. Meu pai: minha mãe, arruma alguma coisa para fazer, né? Sempre estudei também. E aí, meu primeiro trabalho informal foi fazendo x-tudo e tal, e por aí foi, né? Vendi cartão, outras coisas, até que dei outro passo, das opções que nós temos, né? Passei no concurso de fuzileiros navais. Entrei para o militarismo, onde eu permaneci por dois anos. Após a saída do militarismo, como eu já tinha uma certa autonomia, né? Não fazia sentido depender das asas do meu pai, né? Então, entrei no mototáxi na cidade de Nilópolis.
Os pontos de mototáxi são dominados por pessoas que têm relação direta com o assassinato covarde da nossa camarada Marielle Franco. E ali no mototáxi, eu pude entender também um pouco do que é a realidade do trabalho precarizado, né? Só para ter um passar rápido por isso, como funciona os pontos de mototáxi: você tem que pagar uma diária de R$30, na minha época, né? As sextas, era R$35. Você inicia o dia já sabendo que tem uma diária. Aí, você faz uma soma, né? A diária, a gasolina. Quando você vai ver, lá para as quatro ou cinco da tarde que você conseguiu fazer a diária que você vai dar para uma pessoa que não representa a prefeitura e você vai ter que trabalhar nesse horário aí até você aguentar para você levar alguma coisa para casa.
E eu fiquei um tempo no mototáxi, depois fui para as entregas. No início, eu fazia entregas para restaurantes, essas coisas, né? E então, após isso, eu me tornei entregador de aplicativo. E é muito significante também o quanto eu aprendi dentro dessa categoria de entregadores, né? Tanto em relação a tudo que a gente tem que passar dentro desse trabalho sem direitos e precarizado, mas também no sentido de se reconhecer enquanto trabalhador também, né?
Infelizmente, tivemos duas contra-reformas nos últimos anos, né? Uma reforma trabalhista que dizia que nós não precisamos de direitos para trabalhar, reforma da Previdência que dizia que, além de não termos direitos, nós iríamos trabalhar até a morte. E começou, então, o movimento que, para mim, é muito uma fagulha de uma reorganização de luta de classes, né? Já que nenhum de nós aqui pisamos mais no chão da fábrica, estamos precarizados, estamos sem direitos e ainda cortaram os que tinham, né? E a gente foi ocupar as ruas em 2020, no breque dos aplicativos.
A gente sabe que na pandemia, quem mais se ferrou, né, foram os trabalhadores precarizados, os enfermeiros, técnicos de enfermagem e também os entregadores de aplicativo. Já que todos nós deveríamos ficar em casa, né, mas para muitos de nós isso não foi permitido, né, tão pouco incentivado pelo governo genocida que felizmente nós derrotamos. A gente teve que sair às ruas e fazer uma paralisação nacional, porque em plena pandemia a Uber ela não dava máscaras para a gente, não dava o gel para gente, não dava equipamento de segurança. Até hoje nós não temos pontos fixos para carregar celular, para ir ao banheiro, são coisas mínimas, mas que nós não tínhamos. Se nós não tivéssemos lutado, nós não teríamos conquistas.
Após esse movimento, que foi, por exemplo, a questão da máscara, do álcool gel, a Uber passou a dar um auxílio para a gente comprar, a questão dos bloqueios indevidos diminuíram e também a Uber deu um auxílio para quem se contaminava com Covid. Então, assim, se a gente pensar, quando eu digo que seria do que a gente ainda tem luta de classe, né, a gente conseguiu, assim mesmo que pouco, se organizando e se mobilizando, mobilizando a sociedade, foram conquistas, né.
Tem uma frase que a Marielle dizia que é: "Eu sou porque nós somos", né? E para mim, Mariele é um grande exemplo de como ocupar espaços de poder, né? Eu acho que é sempre importante lembrar que, como nós fomos falsamente libertos, de escravizados para homens e mulheres livres, a classe dominante tentou nos botar no lugar que eles achavam que nos pertencia. Quando nós fomos libertos, nós fomos largados nús, sem profissionalização, sem formação, no centro do Rio. E assim, a gente ocupou as favelas e as periferias. As classes dominantes, elas odiavam e ainda odeiam tanto, gente que, na época, elas preferiram a mão de obra imigrante do que a nossa, para exatamente diminuir a nossa nação. Seja por igualdade, por liberdade, por oportunidade, hoje, 134 anos após acontecer a abolição, a gente ainda se vê acorrentado, né, pelo cano do fuzil, pelo desemprego, pela fome, pelo genocídio negro.
É importante dizer que Marielle dizia "eu sou porque nós somos", porque ela tinha total consciência de que se não fosse um trabalho coletivo que estivesse por trás dela, ela não estaria ali naquele espaço. Assim como se não fosse a luta de outros, que teve sangue, teve suor, teve lágrimas, teve dor, antes de nós, nós nem estaríamos aqui nessa mesa.
Então, essa é uma disputa que eu faço questão de fazer. Eu acho que cada um e cada uma deve fazer. Quando dizem para nós, dentro da hegemonia neoliberal, e conseguem convencer grande parte dos nossos, é que nós devemos vencer sozinhos, que nós somos patrões de si mesmo, de que nós somos empreendedores e que nós, e que nós somos empresários. Enquanto tiver um irmão nosso passando fome, eu acho que nenhum de nós está alimentado. Enquanto a maior parte da nossa população, que é negra e pobre, tiver presa sem estar transitado em julgado ainda, é grave contra os direitos humanos. Isso, nenhum de nós tá liberto. Enquanto houver injustiças aí, nenhum de nós somos vencedores como querem nos vender.
O legado de Marielle, para mim, se passa na forma de ocupar os espaços de poder. Marielle fazia política com a gente e não para a gente, de uma forma horizontal, de uma forma que não é de cima para baixo, como a gente vê hoje, inclusive no campo progressista, no campo de esquerda, né? Marielle estava no Parlamento e eu defendo que essa deva ser a forma de se importar de todos os parlamentares de esquerda. Ela estava no Parlamento para defender e ecoar as vozes da classe trabalhadora, as vozes dos oprimidos, as vozes de quem todo dia se depara diante da violência do estado e, mais importante ainda, Marielle fazia isso num horizonte capitalista anti-racista e anti-neoliberal. Tem uma frase para finalizar que Marielle dizia: "quem sobe puxa o outro", né? Essa frase não é sobre pretos estarem no topo, não é sobre a favela vencer. Essa frase é sobre a gente ir de encontro a esse sistema opressor que a cada dia nos violenta, nos mata pelo racismo, pela fome, pelo desemprego. É muito importante que eles percebam que nós, enquanto sementes, jamais seremos impedidos de florescer e que a memória de Marielle, o trabalho que Marielle fazia e até hoje faz, a gente vai levar para frente até que a gente consiga um horizonte que seja melhor para todos nós. Marielle vive. Muito obrigado.