UPP - A redução da favela a três letras - uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro (resenha): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Estado de exceção: o que é, e para que serve – Blog da Boitempo.
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== Veja também ==
*[[Audiência Pública no Complexo do Alemão (2015)]]
*[[UPP: a falência de um programa para mudar a polícia]]
*[[Circuitos políticos em uma favela pacificada: Os desafios da mediação (artigo)]]
*[[Participação Pacificada]]
*[[Reuniões comunitárias das UPPs]]
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Edição das 22h41min de 1 de agosto de 2022

Autora: Carmen Rosane Costa.

Referência

FRANCO, M. UPP- A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. 2014, 136 f, Tese (Mestrado)- Programa de Pós-Graduação em Administração da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Contextualização

Marielle Francisco da Silva (1979-2018).Mestre em Administração pela Universidade Federal Fluminense(2012 - 2014). Especialização em Responsabilidade Social e Terceiro Setor, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009-2016).Graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro( PUC-Rio,2002 - 2007). Eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) no ano de 2016. Negra, mulher,gay, feminista, criada na favela da Maré.Presidiu a Comissão da Mulher da Câmara, foi defensora dos direitos humanos e das causas LGBTI. No dia 14 de março de 2018, Marielle e o motorista Anderson Pedro Gomes foram executados, até o momento o inquérito policial não foi concluído nem o mandante do crime identificado.

A pesquisadora Marielle Franco demonstra como as Unidades de Polícia Pacificadoras, os megaeventos e a ampliação do mercado se articulam nos moldes da perspectiva da política neoliberal e principalmente, como condiciona a política de segurança pública à serviço do capitalismo nas grandes cidades, tendo o Rio de Janeiro o grande exemplo da dinâmica de articulação inspiradas no planejamento empresarial, no qual os governantes passaram a administrar a cidade como uma empresa.

Principais argumentos

A reflexão do texto parte da análise de como o Estado atua nas favelas a partir da segurança pública por meio das UPPs, que até a finalização do trabalho em 2014, eram 39 unidades em funcionamento. A pesquisa aponta como as UPPs compõem a implementação do projeto Neoliberal, que visa a acumulação de capital e ampliação do mercado consumidor, promovendo assim o processo de mercantilização e de controle da vida, configurando a imposição do Estado Penal estabelecido por meio do cerceamento através da militarização do social.

A tese divide-se em 4 capítulos: Capítulo 1-“Do Liberalismo ao Atual Estado Penal: reflexões teóricas”; Capítulo 2-“O Objeto e o Campo”;Capítulo 3-”A Militarização da Favela” e Capítulo 4- “A Organização Popular e as Resistências" e “Conclusão”.

O primeiro capítulo da obra faz uma recuperação histórica desde o surgimento do liberalismo, como forma de organização do Estado e da Administração Pública,dando continuidade pelas crises subsequentes,pelas investidas de Estado de Bem-Estar, pelos os anos de 1970, quando insurge um novo formato de acumulação do capital, a qual David Harvey conceitua como “acumulação por espoliação”,finalizando com o neoliberalismo e a caracterização do Estado Penal, o qual a autora baseia-se no conceito de Loïc Wacquant. O conceito de Wacquant sobre Estado Penal denota como marca o desenvolvimento do Estado com características elementares ao modelo neoliberal. Assim sendo, a pesquisadora perfaz o percurso histórico do capitalismo a fim de correlacionar o Estado Penal com o desenvolvimento do capital até o período em que ocorre a elaboração da pesquisa. Dentro do recorte histórico a pesquisa aponta o Brasil, inserido no contexto internacional do movimento das reformas neoliberais, a partir da Reforma do Estado em 1995, influenciado por modelos e teorias administrativas estrangeiras ,que segundo a pesquisadora, nortearam todo percurso político até culminar com a criação de modelos empresariais nas organizações públicas os quais o pesquisador e autor, Carlos Vainer, discute sobre “Planejamento Estratégico ou Empresariamento Urbano”. Posto isso, a autora busca demonstrar o conjunto de reformas, por meio das quais o Estado implementou uma política de retirada de direitos sociais e trabalhistas no país, a partir do Plano Diretor da Reforma do Estado, visando inserir no Brasil o circuito neoliberal de poder e gestão. Especificamente sob a análise do estado do Rio de Janeiro a pesquisa mostra, com mais detalhes no capítulo 2, como a segurança pública foi incluída no modelo gerencial,favorecendo a entrada de investimentos privados e outras formas de controle e contratos. A entrada do capital no Rio de Janeiro reforçou não só o processo desigual de tratamento da polícia e da política de segurança em relação às demais áreas da cidade como também impulsionou o aumento prisional. Diante do contexto exposto, o texto analisa a atuação das UPPs, tendo como exemplo de caso a favela da Maré.

Além disso, a tese apresenta como a implantação das UPPs foi favorecida pela prerrogativa da Lei de Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, a pesquisa problematiza a questão da Segurança Pública, não reduzindo-a ao policiamento, armamentos, criminalidade, mas circunscrita em todas as áreas da sociedade considerados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, a questão da Segurança Pública é resultado da articulação de diversas políticas sociais, visando a defesa de direitos, garantia e promoção da liberdade.

A autora também discute o discurso ideológico que cria na consciência coletiva a ideia de guerra ao tráfico ou de combate à criminalidade para analisar o objeto da questão da Segurança Pública a partir das UPPs utilizando os conceitos de ideologia a partir das contribuições de Marx, Mannheim e Lowy. Sob esse aspecto ideológico grupos sociais específicos são alvos da política de militarização. Ao produzir no imaginário social a diferenciação de classe, a diferenciação racial e territorial são legitimadas as incursões contra jovens negros, pobres,favelados como se fossem inimigos em potencial do Estado de Direito com a justificativa da “guerra contra o tráfico”. O termo “guerra” orienta as ações da polícia, contrariando as narrativas ideológicas de paz, conforme exemplo das UPPs que em manifestação de controle territorial colocam a bandeira como marca de conquista. Fato que gera não apenas instabilidade territorial como abarca a lógica de que as favelas não são tidas como local de moradia, mas território inimigo. A atitude de demarcação pela bandeira reforça a ideia de guerra e induz grupos criminosos à recuperação do espaço de controle, o que causa o temor permanente nos moradores. E por fim, a criação da ideologia de “guerra”, de “inimigo” sobre as favelas inverte o centro da política para os interesses privados e não para os públicos, favorecendo desta maneira os interesses do capital.

No segundo capítulo, a autora analisa a implementação do programa das UPPs, o papel do Estado e dos territórios, demonstrando a distinção entre as favelas e a cidade , neste caso a favela compreendida como o lugar direcionado à atuação policial no combate aos grupos criminosos armados. Por conseguinte, a pesquisa mostra também o percurso estratégico do poder executivo ao utilizar a prerrogativa administrativa na instituição de decretos visando a consolidação da política, normas e previsão orçamentária. Com isso a investigação exibe o contraditório entremeado na atuação legal do Estado, mediante decretos, lei, programas, políticas e na operacionalização das UPPs com intento de inserir a favela a cidade mediante a promoção do acesso a serviço público, a moradia, ao saneamento, ao comércio e ao transporte, dentre outros.

A autora demonstra que o programa das UPPs compõe a propagação da visão da favela como “anormal”, em oposição ao conjunto da cidade, intensificando percepções de exclusão e estigmatização socioespacial não somente no senso comum,mas também substanciada por órgãos oficiais como fez o IBGE, nos censos de 1990 a 2000 ao denominá-la como “aglomerado subnormal” (IBGE, 2010). São fatos que emolduram a opinião pública,legitimam incursões policiais que atuam de forma diferenciada dos outros territórios da cidade, vistas como área de guerra na totalidade, como se todos fossem um único corpo,agindo da mesma maneira, criminalizando todos moradores, e por fim, não reconhecendo a favela como espaço de manifestação e de representação cultural,a exemplo dos bailes Funks, com rotinas e locais próprios de convivência como as lan houses e de moradia da classe trabalhadora.

O desdobramento da pesquisa constata que não houve os investimentos públicos esperados para as favelas, ocasionados sobretudo pela desconexão referentes às atribuições entre as esferas municipal, estadual e federal. O projeto de “pacificação”, no que se refere à relação entre Estado e as populações nas favelas não promoveu a simultaneidade do processo, deixando as políticas públicas sociais em segundo plano, ocorrendo primeiramente o poder da força reguladora e de “ordem” nas favelas.

A pesquisa exprime como as políticas sociais foram mediadas pelos interlocutores locais com os diferentes agentes de programas e projetos sociais, resultantes de ações sociais públicas e privadas utilizadas para legitimar a aceitação pública das UPPs. Assim entra em cena a UPP Social,inicialmente vinculada à Secretaria Estadual de Direitos Humanos, e posteriormente realocada para a esfera municipal, sendo o órgão responsável pela sua execução o Instituto Pereira Passos, financiado pelo convênio entre Prefeitura e a ONU-Habitat, Programa das Nações Unidas para os assentamentos Humanos. Comumente os moradores das favelas confundiam as questões sociais conduzidas pela UPP Social com as questões promovidas pela UPP, o que os impedia de comparecer às reuniões comunitárias, ocasionadas pelas barreiras de confiança relativa aos policiais.

As UPPs Sociais integravam a política da UPP no âmbito municipal com objetivo de articular as ações sociais em favelas com UPPs por meio da integração das secretarias. O processo de gestão do programa UPP Social sofreu mudanças significativas com a chegada da economista e ex-secretária municipal de Fazenda, Eduarda La Rocque. O novo desenho do programa buscava articular e/ou empreender as ações da prefeitura com investimentos em Educação, Saúde, Habitação, Obras e Conservação visando à integração das favelas ao restante da cidade através das PPPs-Parcerias Público Privada. Contudo, o que ocorreu de fato sobre a integração das favelas à cidade é que esta deu-se, pela implementação de projetos de regularização fundiária e urbanística,gerando processos de gentrificação; pelas tarifas, por cobranças e impostos, custos, que anteriormente não faziam parte do orçamento dos moradores, e pelo outro lado, em decorrência do calendário dos Megaeventos, a especulação imobiliária. Segundo Luiz César Queiroz Ribeiro, diretor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), em entrevista ao Le Monde Diplomatique, "controlar o território é também dar garantias para o capital. É preciso então regularizar e regular a ocupação dos terrenos.”[...] Permitir que o mercado tenha acesso a essas zonas informais e então estabelecer bases jurídicas da propriedade territorial.”

No terceiro capítulo a autora contrapõe a categoria militarização com a ideologia do modelo de Policiamento Comunitário, como questão central das UPPs, apontado em diversos aspectos como :

-Militarização como modelo de orientação tanto na atuação da polícia quanto dos grupos armados.

-Reformulação estrutural a fim de desvincular a relação com o Exército, e nos territórios das favelas e periferias com objetivo de unificar a soberania do estado, desarmando e desarticulando o poder bélico dos grupos criminosos.

-No processo de desumanização na formação de policiais contrastando com o discurso de política humanizada de segurança.

-No processo de ações pré-UPP, a partir de incursões do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) e Forças Armadas.

-No operacional em que se evidencia o estado penal criminalizando ou executando as populações.

-Nas mortes de policiais e dos pobres, negros e faveladas.

-Além dos casos de desaparecimentos em áreas com UPPs.

No quarto capítulo e conclusão a autora mostra como setores organizados apresentam novos projetos de relações humanas e sociais,no que diz respeito a uma cidade de direitos, superando o modelo de cidades de mercadorias. A tese encerra a pesquisa com reflexão sobre como desde a formulação da política das UPPs até a execução, os moradores das favelas como agentes políticos, produtores de conhecimento, de cultura, do próprio espaço em que residem foram ignoradas da construção do projeto pelo Estado, afirmando assim a visão hierárquica e verticalizada que ignora a capacidade e potencial existentes nas favelas. Em resposta, a exemplos das favelas com as UPPs Santa Marta,Maré,Borel, reagiram por intermédio de ações coletivas, visando conscientizar os moradores sobre a favela, impulsionando o ativismo de luta por direitos.

A pesquisadora conclui que para reestruturar a segurança pública a partir da desmilitarização do atual modelo policial são necessárias decisões políticas em vários níveis, citando a Proposta de Emenda à Constituição n° 51, de 2013 que reestrutura o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial.

Ao final do trabalho, a autora sugere que se de fato houvesse uma alteração qualitativa na política de Estado e de Segurança Pública, seria mais adequado denominar as UPPs de “Unidades de Políticas Públicas” e não como “Unidade de Polícia Pacificadora” que configura uma ocupação de regulação pelo Estado em territórios antes regulados pelos grupos criminosos armados. A denominação “pacificação”, portanto, demonstra a política ideológica hegemônica, que ao promover narrativa de paz é concretizada na ação da polícia, na militarização e no simbolismo de conquista em território de guerra como visto ao final de cada ocupação em que são colocadas as bandeiras do Rio de Janeiro e da polícia.

Por fim, a tese termina constatando que a política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro manteve as características de Estado Penal, segundo Loic Wacquant, por meio da ação militarizada da polícia, da repressão aos moradores, da inexistência da promoção e acesso aos direitos sociais e nas remoções para territórios periféricos da cidade, dando continuidade a lógica racista de ocupação dos presídios por negros e pobres, excluindo a favela do direito a cidade.

Apreciação crítica

A autora traz importantes contribuições sobre a identificação do Estado e a função que desempenha ao favorecimento dos interesses da acumulação do capital, que utiliza o aparelho estatal para garantir as condições necessárias, sobretudo através da segurança pública, com o programa das UPPS, caracterizando assim em um Estado Penal que atinge grupos sociais e locais específicos, como as favelas. Assim, a tese desmonta a ideologia criada com o programa da UPP, revelando uma das faces do Estado manifestado em Estado Penal, destinado a manutenção da política neoliberal e dos atores beneficiados. Traz à tona como a UPP integra um sistema de ações que visa garantir a manutenção e acumulação do capital, conforme Carlos Vainer (2002) que define city marketings, isto é, a cidade compreendida como se fossem grandes empresas, tratando a cidade como máquina urbana de produzir renda. Além disso, a pesquisa também dialoga com a discussão do livro “Cidades sitiadas”, de autoria do geógrafo urbano Stephen Graham, que retrata a disseminação da violência política pelos espaços, infra estruturas e símbolos das áreas metropolitanas. Além disso, conclui-se que a tese é rica em temas discutidos no desenvolvimento da obra, dialogando com várias áreas do conhecimento.

Outras referências

Cidades Sitiadas — O novo urbanismo militar - Observatório das Metrópoles (observatoriodasmetropoles.net.br);

PEC 51/2013 - Senado Federal Cidade Mercadoria | Pensar a cidade (wordpress.com);

VAINER, Carlos B. Pátria, Empresa e Mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano;

HARVEY, David. Cidades rebeldes : do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes, 2014.

Estado de exceção: o que é, e para que serve – Blog da Boitempo.

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